Tempo Saquarema

Imagem: Mehmet Turgut Kirkgoz

Por JALDES MENESES*

As fronteiras do chamado Centrão são móveis e mutantes, abrangendo, na prática, todo o espectro conservador até uma franja de centro-esquerda

O Tempo Saquarema no século XXI

O sistema político brasileiro, esse curioso laboratório de contradições, produz um paradoxo revelador: a proliferação de partidos oligárquicos que se apresentam sob rótulos como “progressistas”, “republicanos” ou “socialistas”, mascarando sua natureza conservadora. As fronteiras do chamado Centrão são móveis e mutantes, abrangendo, na prática, todo o espectro conservador – da extrema direita aos neoliberais –, incluindo o núcleo duro dos partidos de direita e centro-direita, até uma franja de centro-esquerda.

Os três principais partidos desse bloco hoje – Progressistas, Republicanos e União Brasil – carregam em seu DNA as marcas da ditadura militar, mas sua influência se estende sem constrangimentos até os remanescentes do antigo “partido orgânico” da burguesia paulista, o PSDB, cuja maioria migrou para o PSD de Kassab, agora convertido em base municipalista do governo Tarcísio Freitas em São Paulo.

Alguns poucos tucanos tidos “mais ideológicos”, como Aloysio Nunes Ferreira ou Jose Aníbal, buscaram um diálogo com o PT, mas, no geral, essas forças sociais constituem o arcabouço do Estado brasileiro em sua profundidade – um aparato sob “ordem unida” que engloba tanto os partidos da ordem quanto os estamentos militar, diplomático e judiciário.

Nesse cenário de conjuntura armado pela história pregressa, a esquerda brasileira, que se formou nas lutas sociais dos séculos XX e XXI, surge sempre como um intruso no baile do poder: mesmo quando ‘e tolerada e assume o papel de governo, continua sendo um corpo estranho dentro do aparelho de Estado realmente existente – as chamadas “carreiras de Estado”, que mais funcionam como mantos das classes dominantes do que como um serviço público republicano em moldes confucionistas (Forças Armadas, Itamaraty e Poder Judiciário).

Essa situação reiterada expõe um enigma: por que, apesar de todas as concessões, os governos petistas ainda enfrentam uma desconfiança crônica por parte dos setores dominantes e uma adesão residual da burocracia estatal?

A explicação mais plausível reside no liberalismo histórico peculiar de nossas elites (que está longe de ser uma ideia fora do lugar). Elas são alérgicas a qualquer projeto que cheire, mesmo que minimamente, a um processo de formação e construção de uma “burguesia de Estado”. Nem precisa ser outra classe antagonista, proletária. Basta uma mutação nacional, démodé ou remodé, de um ornitorrinco, como um “capitalismo organizado” (Habermas, 1994; Offe, 1994), “tardio” (Mandel, 1985), ou outras denominações paleontológicas de “capitalismo burocrático”, surgidas no debate brasileiro pelo menos desde os anos 1960 (Prado Jr., 2014).

Quem cantou essa bola na transição da ditadura para a nova república no Brasil foi Fernando Henrique Cardoso (Cardoso, 1975; Meneses, 2020). Portanto um termo e um debate que veem de longe, tão de longe que foi esculpida – por mais que se esconda a origem da expressão – por Mao Zedong visando outros objetivos, a crítica das muitas inflexões capitalistas de países do Terceiro Mundo, no século XX em situação revolucionária. E, para piorar a assombração, a imagem do Anticristo se avoluma quando esse projeto é conduzido por lideranças carismáticas, como Lula.

A chamada “grande” (e rebaixada, em termos de qualidade intelectual) imprensa liberal brasileira – que Antonio Gramsci (Coutinho, 1994: 56) denominaria de um dos mais importantes “aparelhos privados de hegemonia” – criticou todas, sem exceção, as estatais desde sua criação, como demonstram os arquivos dos jornais.

A sombra de um “Vargas” que ressurge imaginariamente nas tentações de um “Lula” permanece como um fantasma a assombrar. Pode parecer piada, mas é sério. Além disso, há a questão do “partido” (ora vejam, o PT), que, ainda que de forma pálida, remete, nas assombrações da Casa Grande, a formas caudilhistas e populistas (peronistas, cubanas e chavistas), europeias (socialdemocratas), soviéticas e… até chinesas de poder.

Qualquer análise que limite a função do Centrão à simples negociação de emendas orçamentárias – embora isso explique sua função imediata como base de sustentação governamental (tão dependente do Executivo quanto este depende dela para formar maiorias legislativas) –, desprovida desse arcabouço classista, revela-se insuficiente. A verdadeira natureza do Centrão, muito além do ramerame das conjunturas governamentais – expressão do conservadorismo brasileiro em sua totalidade –, deve ser buscada na burguesia brasileira e em seus interesses mais complexos, que se manifestam de maneira peculiarmente (anti)nacional e paradoxalmente ultraliberal (que prescinde de modas teórico-políticas internacionais).

Uma evolução fundamental ocorrida nos anos mais recentes merece destaque: os deputados eleitos nos rincões do país exercem hoje um mandato de representação de interesses muito mais complexo que seus antecessores coronelísticos. O “político do interior” contemporâneo, há muito tempo, rompeu com o modelo originário da República Velha, quando cada representante era basicamente um delegado de suas bases locais, destacando o papel do município no regime representativo do Brasil. Na atualidade, um parlamentar do Nordeste pode articular, sem conflito de interesses, tanto a representação da aldeia quanto do capital financeiro ou da cadeia globalizada do agronegócio.

Isso ajuda a explicar por que figuras como Arthur Lira (Alagoas) e Ciro Nogueira (Piauí) são assíduas nos círculos da chamada “Faria Lima”. Parafraseando Décio Saes (2024), eis a confirmação: a república é do capital. O Centrão atual representa, assim, a enteléquia política do capital em sua forma brasileira – síntese desigual e combinada com o capitalismo global.

Não se trata de mera adaptação, mas da realização plena de um poder oligárquico que, longe de se fossilizar, atualizou-se como potência: absorve as dinâmicas do século XXI – especialmente a financeirização da riqueza e as consequentes dinâmicas de acumulação rentística – enquanto cristaliza, em sua enteléquia, os mecanismos clássicos de dominação. Aqui, o passado não é vestígio – é essência ativa. Eis o Tempo Saquarema em sua enteléquia contemporânea: onde o arcaico e o moderno não se contradizem, mas se consumam.

*Jaldes Meneses é professor titular do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Para ler o primeiro artigo dessa série clique em https://aterraeredonda.com.br/o-retorno-do-tempo-saquarema/

Referências


CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994.

HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1994. 

MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural (2ª ed.), 1985.

MENESES, Jaldes. “Entre Gramsci e Tocqueville”. In: Serviço Social & Sociedade. São Paulo: Cortez: Ano 25 [n. 80], 2004.

________________“Florestan Fernandes – viagem redonda”. In: A terra é redonda, 17/10/2020. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/florestan-fernandes-viagem-redonda/

OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1994.

PRADO JR., Caio. A revolução brasileira/A questão agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SAES, Décio. República do capital. Capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2024.


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