Terceira via, a hipocrisia

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Por LUIZ MARQUES*

A conciliação entre neoliberalismo e social-democracia fracassou, destampando o esgoto da antipolítica e reforçando ilusão de que mercado não tem responsabilidade com iniquidades

Em inglês, a palavra “direita” (right) celebra a lei e o respeito pela lei. Em alemão, Recht significa tanto “direita” quanto “lei”. Nas línguas latinas, “esquerda” é um significante controverso. Gauche está ligada à gaucherie, “desordem”. Sinistra, aplicada à política conota “um distúrbio”. Izquierda, “o lado oposto ao direito”. Não se sabe como tais significados colaram na utilização terminológica cotidiana. Os termos têm um sentido de direcionamento nítido e um conteúdo moral embaçado.

Conta a lenda que um rabino eleito à Câmara da província da Galécia em 1848, sob Império Austro-Húngaro, ao entrar no plenário sentou-se à esquerda. Um parlamentar cristão perguntou o que fazia um homem religioso em uma topografia identificada com a ideia de revolução. Ao que ouviu: “Os judeus não têm direita/direitos. A negação dos direitos bloqueia as tendências de direita”.

A tirada perdeu a graça. Israel recende o nazifascismo pelo genocídio na Faixa de Gaza, à revelia de orações pela paz no Vaticano, das condenações pela ONU (Organização das Nações Unidas) e protestos dos torcedores do PSG (Paris Saint-Germain Football Club). Agora a boutade se aplica aos palestinos.

Atualmente a direita encampa o ódio humanitário, ambiental, geopolítico. Vide o apoio da imprensa ao voto de André Mendonça, no STF (Supremo Tribunal Federal): “Não é possível responsabilizar a plataforma sem prévia decisão judicial, quando se está diante de ilícito de opinião”. O ministro não procura garantias para o exercício da soberania popular, sem interferências externas. Revela, sim, a submissão aos medias nativos e às Big Techs.

Deixa tudo como está em benefício dos monopólios tecnocráticos, onde os algoritmos decidem sobre o destino da informação pública. O artigo 19 do Marco Legal da Internet vira inconstitucional por blindar os negócios dessas empresas de exceção.

O fracasso do Iluminismo, calcado na razão universal, sugeria uma volta à tradição para equacionar os problemas. Como o tradicionalismo não é confiável, o novo tempo exige respostas criativas.

A globalização limita os objetivos democrático-sociais. A competitividade internacional dificulta altos níveis de tributação e a proteção social e trabalhista. A desregulamentação gera o vácuo legislativo para potencializar o monumental lucro das plataformas digitais. Foram mais de R$ 300 milhões para impulsionar candidatos com recursos públicos do Fundo Eleitoral, no último pleito municipal.

As pedras do caminho

A posição “liberal” subentende a tolerância lockeana e a crença aristotélica na virtude como ponto de equilíbrio. Ou então o conhecimento dos intelectuais equidistantes das ideologias, na versão de Karl Mannheim; a autoproclamação transfere imunidade às influências subjetivas e, idem, à fórmula “científica” do capitalismo ideal; leia-se de acordo com o paradigma do livre mercado.

Os Prêmios Nobel de Friedrich Hayek (1974) e Milton Friedman (1976) e o Consenso de Washington (1989) coroam o jogo de cena. O vilão é condensado na expansão dos Estados totalitários dos anos trinta, à direita. E no mal que o Estado de bem-estar pós-guerra desenrola de modo embrionário, à esquerda.

O premiê do Reino Unido (1997-2007), Tony Blair, expõe o “projeto da terceira via” cuja antessala cobrava uma definição do que são a primeira e a segunda alternativas: o liberismo econômico e as intervenções estatais. O contexto era de uma erosão das “grandes narrativas” ou “metanarrativas”, conforme os anúncios. A realidade fragmentada em valores, interesses, e não estruturada a partir de uma concepção ampla da natureza humana, sobre as instituições e/ou o alcance das ações políticas.

A terceira via obrigava-se a demonstrar a quadratura do círculo ao reduzir o governo e o Estado, isto é, ao recuar a jurisdição dos poderes políticos sem alargar o abismo entre as classes sociais; façanha ingrata. Não aconteceu. O significado de um governo e um Estado enxutos, com baixa intensidade administrativa, conduz à rotina dos serviços públicos precários, hospitais fechados, etc.

A avaliação dos desgovernos de vetor monetarista atesta a deterioração do IDH (Índices de Desenvolvimento Humano) no que tange o tripé da saúde, educação, renda. O vento levou as declarações de princípio.

Se a justiça social é o valor-guia dos progressistas, a terceira via abjura uma equiparação social. Sua preferência recai sobre o laissez-faire mercadológico, privatizações, arrocho salarial, afrouxamento das leis de preservação do ambiente natural, rendição à acumulação a qualquer custo, desmonte dos órgãos de controle e dos canais institucionais de participação cidadã para a elaboração das políticas públicas. Na guerra de todos contra todos, só vencedores comemoram; aos perdedores, as batatas.

O direito à resistência

No Brasil, o discurso para fugir à polarização é um embuste. Oculta o denominador comum aos que postulam o pseudo caminho do meio. A corporação midiática encobre uma identidade orgânica do extremismo de direita com o fetiche do “centro”. O programa econômico de Romeu Zema, Ronaldo Caiado, Ratinho Júnior, Eduardo Leite e Tarcísio Freitas é idêntico ao de Paulo Guedes, nomeado “mente brilhante” por pares no Fronteiras do Pensamento. Melhor chamar o think tank dissimulado Rodeio de Fake News, com alguns convidados para distrair o reiterado desrespeito ao contraditório.

Rejeitar as planificações. Repassar a decisão sobre as taxas de juros às agências financeiras. Crer no remédio que mata o paciente de ajustes fiscais na austeridade. Recrudescer a linha de separação da política com a economia. Sequestrar as prerrogativas da cidadania. Apostar na demagogia que trai o compromisso redistributivo em negociações com castas privilegiadas. Engessar a soberania popular. Restaurar o voto censitário por debaixo dos panos – equivale a abdicar da sensatez. Tal condição dá motivos para uma digna resistência à tirania da plutocracia e ao labirinto sem saída do antropoceno.

A conciliação entre o neoliberalismo e a social-democracia fracassou. A fusão destampou o esgoto da antipolítica e reforçou a ilusão de que o mercado não tem responsabilidade com as iniquidades, fruto das milhares de ações individuais sem intencionalidade na difusão de um desigualitarismo. E sem intenção, ensina o direito, não há crime apesar do risco de lesões letais. Hoje a experiência só é plausível numa esquete farsesca. Quando Fernando Henrique Cardoso importou a bizarrice europeia para a nação brasileira, trouxe junto o descrédito com a política e o desencanto com a res publica.

Resumo: “Os neoliberais estruturam um forte argumento em prol do mercado e uma crítica intensa do governo e da burocracia, em conjunto com uma rejeição completa da ideia de justiça social, que se pressupõe que os governos social-democratas asseverem. Por outro lado, os social-democratas possuem mais confiança no governo e em suas capacidades, estando mais atentos aos limites morais do mercado e ao impacto do mercado no resto da fábrica da sociedade”, sublinha Raymond Plant, no artigo “Será que existe uma terceira via?”, em um livro coletivo publicado pela Universidade Católica Editora, de Lisboa, em 2007, Direita e esquerda? Divisões ideológicas no século XXI.

Lutar o bom combate

A batalha dos “social-democratas” a que alude o intelecto-militante do Partido Trabalhista inglês, Barão Plant de Highfield, ex-membro da Câmara dos Lordes (1992-2024), é tarefa da esquerda no Sul Global. Construir o socialismo na sociedade contemporânea e a vitória da contra-hegemonia do trabalho na relação com o capital é apenas uma possibilidade dentre outras perante a grave crise da democracia e da hecatombe climática.

Inexiste um télos, uma causa final para a história. A única certeza é a de que precisamos “lutar o bom combate”, enfrentando os desafios e a hipocrisia que sobrecarrega um dos pratos da balança com a porcaria neoliberal e o totalitarismo da mercadoria.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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