Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Ricardo Ramos Filho
Um homem caminha pelas ruas de São Paulo. Observa, reage, interage, tem idade suficiente para refletir sobre as grandezas e miudezas da vida com algum ceticismo. Já viveu muito, mas continua inconformado. Uma natureza-morta jogado na calçada acaba mudando o roteiro de seu cotidiano, talvez de sua existência.
Este é o ponto de partida do romance Toda poeira da calçada. O autor, Ricardo Ramos Filho, tem numerosa obra dedicada à literatura infanto-juvenil e dois volumes de crônicas, mas só agora publica uma narrativa longa.
Escrito em primeira pessoa, é muito fácil confundir o personagem, um escritor chamado Rodrigo Ferreira Ferro, com o escritor Ricardo Ramos Filho. A escrita fluente, concisa, revela uma visão irônica e desencantada que coincide com a do cronista que conhecemos. A relação com o pai também escritor, descrita como se fosse ficção, reforça essa suspeita.
É como se o processo de escrever crônicas, desenvolvido por Ricardo Ramos Filho, fosse aos poucos consolidando um meta-argumento que desemboca na narrativa longa. As crônicas-afluentes vão catando as impurezas da rua, os personagens urbanos, os objetos abandonados, as reflexões cotidianas, e jogando nas águas do romance-rio.
Obviamente não é possível construir uma narrativa desta forma sem domínio da técnica narrativa e consciência clara de onde se quer chegar. Ricardo Ramos Filho demonstra toda sua experiência de contador de histórias, e constrói um entrecho envolvente e contemporâneo. É o mundo do século XXI que desfila sob nossos olhos, e o advento da pandemia, “personagem” marcante da segunda parte de Toda poeira da calçada, apenas confirma este fato.
Quando Walter Benjamin observou que “o sentido da vida” é o centro em torno do qual se articula o romance, acrescentou que “essa questão não é outra coisa que a expressão de perplexidade do leitor quando mergulha na descrição dessa vida”.[1]
O personagem de Ramos Filho incorpora essa perplexidade enquanto transita pela urbe, e sua relação com a mulher, com o trabalho, com a terapeuta, com os filhos distantes, com a pintora russa da natureza-morta, com o governo de extrema-direita e, finalmente, com a pandemia avassaladora, nos coloca frente a uma conclusão perturbadora: ao falar de si, está falando de nós, seres errantes em tantas ruas do planeta. Ao ler o mundo, se coloca como personagem a ser lido.
Na terceira parte, quase um epílogo, o autor acende uma luz esperançosa em meio ao “livro cinzento” que escreveu. Não se trata de uma concessão à pieguice, mas de um necessário alento. Precisamos seguir em frente, mesmo em tempos áridos. Não é lição, mas reconhecimento de que a incapacidade de mudar a realidade não pode embotar nossos melhores sentimentos, por mais que estejam permeados de angústia.
Toda poeira da calçada, com seu apuro formal e despojamento estético, nos diz mais que dezenas de exercícios ficcionais pretensamente filosóficos e supostamente criativos que giram em torno do tema do “escritor em crise”, tão comum em autores iniciantes. É obra de mestre que sabe o que diz.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência

Ricardo Ramos Filho. Toda poeira da calçada. São Paulo, Editora Patuá, 2025, 174 págs. [https://amzn.to/3SJsT4i]
Nota
[1] BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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