Por ARACY P. S. BALBANI*
Como médica do SUS, testemunho diariamente o preço físico e mental da exploração. Um sistema de saúde público forte precisa de pacientes saudáveis, isso começa com trabalho digno. A PEC 8/2025 não é só uma pauta trabalhista: é uma questão de saúde coletiva
1.
As audiências públicas sobre a PEC 8/2025, que propõe a redução da jornada de trabalho para quatro dias semanais, e o Movimento Vida Além do Trabalho (VAT) deram voz a milhões de pessoas inconformadas com a exploração do trabalho no Brasil.
Passados 137 anos da assinatura da Lei Áurea, a escravidão não foi abolida de fato no País. Homens e mulheres de várias idades; de áreas rurais ou urbanas; trabalhadores informais, profissionais liberais, assalariados ou servidores públicos; analfabetos ou pós-graduados, os explorados não mais aguentam essa desumanidade.
Evidentemente, as mulheres são as mais afetadas. Para a maioria de nós, a escala de trabalho é 7×0, ou seja, não há descanso semanal. Quando não exercemos a atividade profissional, nos dedicamos ao trabalho – afetivo, não remunerado e exaustivo – de cuidar da família e administrar a casa.
Cozinhar, limpar, pagar contas, fazer compras, providenciar reparos domésticos, cuidar de idosos, crianças e animais de estimação: as tarefas brotam em todos os cantos e em todos os momentos da nossa suposta folga semanal.
Agravante: sempre há alguém com espírito de porco pronto para apontar uma unha quebrada, o cabelo despenteado ou as olheiras comentário como sinais de… desleixo da mulher. Haja ansiolítico e antidepressivo para tolerar críticas desse tipo!
A pandemia de COVID-19 acentuou os efeitos nocivos da exploração do trabalho no Brasil. Uma pesquisa da Fiocruz entrevistou cuidadores de idosos em 2021. Revelou que cerca de 91% dos cuidadores eram do sexo feminino, sendo 60% negros e 38,6% na faixa etária de 50 a 59 anos. Esse perfil coincidiu com o das empregadas domésticas brasileiras. O mais alarmante: dentre os cuidadores, 73,6% trabalhavam todos os dias da semana.
A pandemia terminou, mas essa exploração não. Com o desemprego elevado na era Jair Bolsonaro, o envelhecimento da população e o aumento do número de idosos que dependem dos cuidados de terceiros, muitas pessoas passaram a se dedicar à atividade profissional de cuidadoras.
A remuneração nem sempre é satisfatória, a jornada de trabalho supera facilmente as 10 horas diárias, e o esforço físico para dar banho ou movimentar um idoso obeso pode provocar lesões de coluna nos cuidadores.
Quando a cuidadora contratada é uma familiar do idoso, comumente os demais membros da família acham-se no direito de não efetuar o registro profissional em carteira, pagar salário abaixo do piso da categoria e exigir trabalho noturno ou nos feriados sem pagamento de adicionais em razão do próprio parentesco da cuidadora.
A falta de cuidados com quem cuida de pessoas vai muito além disso. Profissionais liberais e assalariados que adotaram o teletrabalho desde a pandemia, e não apenas nas profissões de saúde, queixam-se de chamados ou de clientes ou da chefia fora do expediente, o que pode resultar em até 18 horas de trabalho diárias.
2.
A gestão de pessoas não anda ruim somente no setor privado.
Servidores públicos de carreira de muitos estados e municípios começaram a contagem regressiva para a aposentadoria ou necessitaram de afastamento para tratamento de saúde nos últimos cinco anos em consequência das condições precárias de trabalho, senão do assédio moral explícito. Suicídios matam mais policiais civis e militares brasileiros do que os confrontos armados com criminosos.
De motociclistas de aplicativos a servidores públicos de alto escalão; homens, mulheres ou indivíduos transgênero, todas as pessoas merecem condições dignas de trabalho, que lhes preservem a saúde física e mental.
Nesse sentido, o trabalho deve ser um substantivo bem feminino: cuidadoso com a vida e a saúde de quem trabalha. Isso impacta, também, em quem se beneficia daquele trabalho.
Trabalhadores adoecidos ou esgotados; privados de lazer, cultura e esporte, de momentos de convívio familiar/social, de descanso e de espiritualidade, são muito prejudiciais a si mesmos, às suas famílias, aos colegas de trabalho e à sociedade.
Para quem ainda tem medo de aderir à mobilização pública pelo fim da escala 6×1, fica o incentivo do caso relatado numa revista científica médica norte-americana há muitos anos. Um jovem executivo, obeso, sedentário, estressado, frustrado, que roncava e tinha síndrome da apneia obstrutiva do sono conseguiu se curar de todos esses problemas ao deixar o trabalho onde era explorado e se tornar… jardineiro.
Cultivar coragem, serenidade e felicidade no trabalho e fora dele faz muito bem à saúde.
*Aracy P. S. Balbani é médica. Atua como especialista exclusivamente no SUS no interior paulista.
Referências
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Fiocruz). Cuida-COVID: pesquisa nacional sobre as condições de trabalho e saúde das pessoas cuidadoras de idosos na pandemia – principais resultados, 2021. Em: https://www.covid19.cuidadores.fiocruz.br/ e https://www.youtube.com/watch?v=ZSXPifEZlb4
Instituto de Psicologia da USP. O silencioso adoecimento psíquico de policiais no Brasil. 2023. Em: https://www.ip.usp.br/site/noticia/o-silencioso-adoecimento-psiquico-de-policiais-no-brasil/
Agência gov. Pressão extrema aumenta depressão e suicídio entre trabalhadores de segurança e saúde. 2024. Em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202410/pressao-constante-e-exposicao-a-situacoes-extremas-aumentam-os-casos-de-depressao-e-suicidio-entre-os-profissionais-de-seguranca-publica-e-saude.
Morelli TM. O impacto da saúde mental dos policiais no desempenho profissional e na vida pessoal: a importância do apoio psicológico. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 8, n.2, p. 01-15, mar./apr., 2025. Em https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/78446/54326
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