Transformação ecológica

Imagem: JJ Jordan

Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Utopia ecológica sem regressão: O desafio de reinventar o futuro sem negar a modernidade

1.

Utopia (do grego ou-topos: “não lugar”) é, classicamente, uma crítica projetiva na qual não se descreve apenas “um futuro ideal”, mas expõe, por contraste, as contradições, injustiças ou insustentabilidades do presente. Quando aplicamos isso às utopias ecológicas, encontramos uma tensão entre a crítica legítima ao sistema capitalista de crescimento infinito e o problema de reversibilidade histórica.

A crítica ambiental é embasada, sobretudo, diante as evidências de colapso ecológico, devido às mudanças climáticas, à perda de biodiversidade, à escassez de recursos etc. Porém, a história não é uma linha reta de vai-e-volta, mas é sim irreversível em muitos sentidos.

Por exemplo, os novos hábitos de consumo (internet, aviação comercial, mobilidade urbana, comida industrializada), os novos arranjos sociais (urbanização, longevidade, diversidade cultural) e as novas tecnologias (digitalização, energia elétrica em massa, redes globais de informação) mudaram profundamente o ser humano e suas necessidades básicas.

De maneira pragmática – e não ideológica –, deve ser reconhecer a impossibilidade de retorno. Propor a sociedade humana “voltar” a uma estrutura localista, pré-industrial ou de baixa escala é praticamente impossível sem uma ruptura catastrófica extrema, por exemplo, um colapso climático, uma guerra nuclear ou grandes pandemias prolongadas.

Na realidade, as expectativas culturais de consumo, mobilidade e autonomia pessoal estão profundamente enraizadas. Daí há um limite estrutural diante as propostas de regressão: mesmo tecnologias de comunicação como o smartphone e a internet são agora percebidas como direitos fundamentais por grande parte da população.

Logicamente, a “volta ao passado” implicaria em perda de direitos conquistados. Seria politicamente e socialmente inviável sem autoritarismo severo.

A utopia ecológica é extremamente importante como crítica e alerta contra os riscos da atual trajetória civilizatória. Contudo, não pode ser aplicada como “projeto de retorno ao passado” – precisa sim ser pensada como uma transformação inovadora, capaz de articular novos hábitos, novas tecnologias e novos valores sem romper abruptamente com as conquistas culturais, econômicas e sociais modernas.

O desafio real é: como inovar na civilização contemporânea sem destruir as bases construídas pela modernidade? Essa grande questão histórica ainda permanece aberta.

2.

Pensadores contemporâneos estão tentando enfrentar exatamente esse problema de uma forma não regressiva. Muitos diante da crise ecológica reconheceram exatamente o problema levantado: não é possível “voltar ao passado” – é preciso reinventar o futuro a partir da realidade já transformada pela modernidade.

Entre os pensamentos ecológicos mais importantes estão a proposta de abandonar a oposição entre natureza e sociedade, característica da modernidade. Não existe um “mundo natural puro” para o qual possamos retornar. Tudo já foi “hibridizado” pela ação humana.

Sua ideia central é precisarmos construir uma nova política (“terrestre”) baseada na reconexão entre humanos e não-humanos (clima, solos, oceanos, florestas etc.) sem pretender apagar o já feito. Essa proposta seria criar coletivos político-ecológicos locais e globais capazes de aceitarem o mundo híbrido como ele é – e redesenharem práticas econômicas e sociais sem fantasias regressivas.

Outro pensamento reconhece a crise climática desafiar as bases da história moderna, mas não tenta abolir a história. Ele propõe pensar “o duplo pertencimento”: somos cidadãos de Estados nacionais (com suas fronteiras, economias, culturas), mas também somos membros de uma espécie biológica (descendentes de homo sapiens), necessitados de agir em escala planetária.

Nessa proposta, é preciso articular política nacional e política planetária sem destruir as conquistas democráticas e sociais modernas, mas sim expandindo-as.

Outra corrente criou o conceito de “hiperobjetos”: coisas tão vastas no tempo e no espaço (como o aquecimento global) a ponto de haver a impossibilidade de serem “compreendidas” de modo tradicional. A resposta ecológica não pode ser um “sacrifício” ou uma “mea culpa” religiosa, mas sim um novo tipo de convivência estética, ética e prática com um mundo já irreversivelmente alterado.

Portanto, trata-se de abandonar a ideia de pureza ecológica e construir práticas mais realistas de coexistência com as contradições do mundo atual.

Na verdade, nenhum dos pensadores relevantes ou respeitáveis, hoje, defende uma “volta” a uma sociedade pré-industrial. A proposta científica é uma inovação civilizatória, onde as tecnologias sejam reconfiguradas (não abolidas), os valores culturais mudem em direção à coexistência sustentável, e as instituições políticas evoluam para incorporar as novas realidades ecológicas.

3.

O ponto de partida crítico é simples: a história não retrocede – o desafio é inovar, não regredir.  No debate público, percebe-se uma tensão filosófica muito profunda e real no movimento ecológico contemporâneo. Por isso, é necessário o analisar com cuidado e rigor sistêmico.

Existe um paradoxo estrutural. O ativismo ecológico, especialmente, o mais radical, costuma combinar idealismo filosófico e negação (ou subestimação) das determinações materiais.

Possuem a crença de a consciência, a educação, a mobilização de vontades conseguirem transformar estruturalmente a sociedade industrial, capitalista e poluidora. Supõem a mudança da “consciência ecológica” dos indivíduos e coletividades levar, automaticamente, a uma nova ordem socioeconômica sustentável.

Assim, ignoram infraestruturas produtivas globais, cadeias energéticas fósseis, padrões de consumo urbano-industrial, dependências tecnológicas e financeiras, todas materialmente enraizadas. Subestimam as barreiras lógicas, tecnológicas e históricas para a mudança de sistema: a própria reprodução das sociedades atuais depende de bases materiais sem possibilidade de mudar por pura força de vontade.

Em termos filosóficos mais clássicos, o idealismo acredita a mudança de ideias (cultura, mentalidade) provocar a mudança da realidade material. O materialismo histórico (como em Karl Marx) entende serem as mudanças materiais (tecnologias, modos de produção, crises econômicas) as determinantes do espaço possível das transformações ideológicas.

Assim, o ativismo ecológico idealista deseja a transformação, mas ignora ou minimiza os limites estruturais impostos pela infraestrutura material. Há muitos exemplos concretos dessa contradição como na mobilidade urbana: prega-se abandonar automóveis, mas as cidades são materialmente desenhadas para carros com zonas suburbanas longínquas, falta de transporte público eficiente etc.

A alimentação orgânica é defendida com a proposta de agricultura local e orgânica em larga escala, mas a logística urbana, o acesso a alimentos e a segurança alimentar nas cidades globais dependem da produção massiva industrializada.

Quando à redução de consumo de energia, clama-se por reduções drásticas de consumo energético, mas toda a infraestrutura de comunicação digital (internet, servidores, redes, Inteligência Artificial) exige crescentes quantidades de energia elétrica.

A crítica é justa, mas a proposta de transformação é muitas vezes inviável sem rupturas catastróficas ou sem novos saltos tecnológicos ainda inexistentes.

Existe sim um idealismo ecológico paradoxal: crê na força da consciência para mudar o mundo material e não considera a rigidez material, tecnológica e histórica dos sistemas sociais atuais. Portanto, sem considerar seriamente as condições materiais e estruturais, o ativismo ecológico corre o risco de se reduzir a moralismo simbólico (greenwashing emocional ou político) sem impacto real.

Alguns pensadores, inclusive marxistas ecológicos e críticos sistêmicos, tentam enfrentar esse dilema ao propor formas mais realistas de transformação ecológica sem cair em utopias idealistas.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]


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