Transgressão ou barbárie

Imagem: Grupo de Ação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DÉMERSON DIAS*

Aqueles que são condescendentes com os erros, dúvidas e descaminhos da esquerda acabam por justificar a barbárie como estágio da realidade “em si”

“Se for preciso faz a guerra, / Mata o mundo, fere a terra … canta um hino / Louva à morte … vai à luta / Capoeira” (Marcos e Paulo Sérgio Valle, Viola enluarada).

Sem transgressão a esquerda não vai a lugar algum, exceto para a direita. O que tem paralisado, e também inibido a esquerda, em parte, descende da negligência em relação tanto a uma crítica radical sobre a realidade, mas também a uma prática radical. Sobretudo, cumpre entender que não existe transformação no conformismo e também que é preciso ter uma prática coerente, consistente e condizente com essa constatação.

E aqueles que são condescendentes com os erros, dúvidas e descaminhos da esquerda acabam por justificar a barbárie como estágio da realidade “em si”, quando deveriam encará-la como o que, de fato, é: resultado dos insaciáveis processos de opressão, os quais não ocorrem por perversidade moral da burguesia, mas porque a destruição generalizada é tendência estrutural e estável no capitalismo.

Não cabe nesta reflexão a complementação dialética desse raciocínio, porque não se trata de destruir tudo o que passou a existir em decorrência do capitalismo, do contrário seríamos devolvidos a formas primitivas de produção.

Mas as esquerdas, ao contrário, vão longe demais validando os modos de reprodução capitalistas, como se pertencessem à “natureza humana”, ou correspondessem a condições inerentes da prática social da espécie. O capitalismo não é ontológico, mas constituído historicamente.

Em parte, isso tem raízes na forma como a URSS organizou seus modos de produção, em especial seu gestor, o Estado. Parece que, por não ter conseguido ainda conformar uma perspectiva de vida social sem um Estado opressor, as esquerdas acreditam nas “forças da ordem” capitalista.

As práticas internas das organizações de esquerda sugerem essa incapacidade de superar o autoritarismo e opressão como forma de mediação social, o que não é inconcebível, mas já deveria ser evidente, quando se coloca em perspectiva uma organização comunista da sociedade como efetiva superação do capitalismo. Ou seja, uma sociedade organizada sem a necessidade de um órgão opressor e onipresente que tenha como tarefa tutelar as vontades e disposições gerais das sociedades.

Aceitamos e naturalizamos o papel das forças opressoras. Como se diz, “damos de barato” que os aparelhos de repressão possuem o monopólio do uso da força. A esquerda se contenta com o papel  de uma necessária expressão de paz. Ao fazê-lo não apenas colabora com as forças da opressão capitalista, como censura e renega as frações da sociedade que recorrem à contraviolência, uma condição que só faz sentido quando a ação violenta indiscriminada e totalitária da ordem, nos introjetou a concepção de cidadania como solução superior à luta de classes.

Não raro, as esquerdas conformadas, ou remediadas, se apropriam e reproduzem elementos da moral burguesa que justificam que “pobres que recorrem ao uso da força”, seja na forma defensiva, seja expropriando valores para garantir sua subsistência, estão “fora da justa razão”. Essa noção está tão arraigada que mesmo áreas contíguas como expressões de sexualidade, consumo de opiáceos, custam para serem autenticados por setores da esquerda.

Nesse cenário, por mais que a autoproclamação queira garantir o contrário, a ação das esquerdas fica aquém dos postulados da desobediência civil, esse desdobramento de comportamento limítrofe, admitido pelo pensamento liberal.

Quando o poder constituído determina restrições aos direitos de manifestação, a esquerda protesta veementemente, e aquiesce. Ao fazê-lo valida e reconhece a autoridade do opressor sobre suas formas de luta, ou seja, admite que não possui protagonismo decisivo.

Um dado que não é secundário e está sendo explicitado ad nauseam pelo bolsonarismo, é exatamente o absoluto descompromisso com pactos sociais elementares de tolerância e convivência pacífica. É preciso muita ingenuidade para não perceber que Jacarezinho, encomendada na véspera por Bolsonaro, não seja um eloquente discurso de insujeição e desqualificação da corte máxima no país. Ou seja, de todo, absolutamente todo, ordenamento jurídico em vigor. O que mais é preciso afrontar para nos convencer que o governo anseia e patrocina a anomia absoluta? E nossa resposta até o momento é que seremos os heroicos responsáveis por restaurar a ordem burguesa diante de seu dejeto fascista.

A política e o discurso de ódio, em realidade, não são juízos morais, mas expressão desse descompromisso. Ou seja, são a linha de intervenção que renega qualquer pacto civilizatório, desses com que as esquerdas ainda se iludem.

Na base da rejeição que a esquerda empreende em relação a essas práticas está a suposição de que a mera existência, abstrata e formal, de um documento constitucional é suficiente para cumprirmos “com o nosso dever cívico”. Mesmo que essa civilidade seja permanentemente violentada, agora, pelo próprio presidente da república.

Impossível que a mensagem da burguesia seja mais clara. Ainda assim, há esquerdas demais colocando-se como fiadoras de um pacto social mais que moribundo. A civilidade brasileira apodrece sob o peso de meio milhões de assassinados pela negligência premeditada do poder central.

E o resultado dessa adesão a um pacto já extinto pela burguesia, corresponde exatamente à dificuldade que algumas esquerdas possuem em incorporar prontamente, como deveria ser, as pautas feministas, da negritude, de artistas e mesmo de profissionais do sexo, tidos igualmente como marginais, por uma esquerda que não apenas é utópica, mas convictamente alienada.

Notadamente essas esquerdas  ficam aquém, em termos de compreensão da realidade social, até mesmo dos postulados do cristianismo primitivo, que corrigia perspectivas autoritárias do judaísmo.

Todas as estruturas que justificam e reproduzem a ordem capitalista precisam ser decididamente desconstruídas, bem entendido, destruídas em sua funcionalidade reacionária e opressora. Nesse aspecto, até mesmo a desmilitarização das polícias é pauta insuficiente, fora dos marcos dos próprios profissionais de segurança.

As esquerdas que não são capazes de ir além dos postulados éticos do liberalismo clássico, nem sequer são utópicas. São esquerdas que justificam e trabalham em favor da ordem. E o contexto organizacional das esquerdas sugere que ainda não existe no país alguma organização relevante que possa reivindicar propriamente o caráter revolucionário.

O abuso da truculência e da violência institucional na ação política reacionária, não são uma exceção na política brasileira. O Brasil republicano sempre foi um conflito de classes com prevalência de táticas de guerra. Nós é que nos permitimos entorpecer e negar a guerra civil que foi transposta à realidade do país praticamente logo no nascedouro da república.

Por isso nos custa enxergar a explicitude do discurso institucional do assassinato em jacarezinho. Mas não só ali. Também em Brumadinho, Pinheirinho e inúmeras versões mais tênues ou contundentes. Mesmo a extinção formal da etnia Juma é expressão da luta de classes patrocinada pela burguesia.

No entanto, somos tolerantes com a barbárie. Apesar de nossos discursos, nossa prática se subordina à lógica de que a burguesia tem o monopólio da violência, “graças a deus”, porque nós somos virtuosos.

Entendemos a luta de classes como categoria de análise não como expressão da realidade política. Talvez nos imobilize o fato de que o braço  opressor pertence à mesma classe que é oprimida e, dessa forma, vítima e opressor fossem indistinguíveis.

Evidentemente esse não é o centro da questão da luta de classes, mas enquanto a esquerda seguir insistindo numa luta de classes sem luta efetiva ela será única vítima. Ou melhor, ela não, mas o povo efetivamente oprimido, porque a maior parte das esquerdas são acomodadas nas classes remediadas. O centro da questão é que as esquerdas não praticam uma luta insurrecional, e não existe revolução sem insurreição, sem transgressão da ordem.

As esquerdas podem conseguir pautar uma ruptura por outras vias? Isso é possível em algum futuro. O que está dado, neste momento, é que não haverá transformação real no Brasil que não seja banhada em sangue. E essa é uma imposição dos opressores, não um desejo dos oprimidos. Por enquanto, só o lado opressor está praticando, impunemente, suas chacinas e a isso ainda dão o nome de justiça. Ao fazê-lo, não apenas distorcem e invertem o sentido de justiça, mas estão também afirmando que qualquer rebeldia está fora dos parâmetros civilizatórios aceitáveis por eles.

Por enquanto seguimos concordando com isso. E o resultado é que somente um dos lados tem seu sangue vertido pelas ruas, rincões e guetos. Seguimos bestializados.

*Démerson Dias é funcionário público.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Sergio Amadeu da Silveira Rodrigo de Faria Dennis Oliveira Leda Maria Paulani Francisco Fernandes Ladeira Antonio Martins Ricardo Musse Ricardo Fabbrini Annateresa Fabris Valerio Arcary Vanderlei Tenório José Raimundo Trindade José Luís Fiori Carla Teixeira Chico Whitaker Gabriel Cohn Érico Andrade Slavoj Žižek Marcos Silva Osvaldo Coggiola Bento Prado Jr. João Carlos Salles Vladimir Safatle Denilson Cordeiro Marcus Ianoni José Micaelson Lacerda Morais Kátia Gerab Baggio Manchetômetro Luís Fernando Vitagliano Juarez Guimarães Marcelo Guimarães Lima Jean Pierre Chauvin Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Claudio Katz Andrés del Río Remy José Fontana Berenice Bento Flávio Aguiar Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Dirceu Fábio Konder Comparato Everaldo de Oliveira Andrade André Márcio Neves Soares Bruno Machado Tadeu Valadares Luiz Marques Yuri Martins-Fontes Gilberto Maringoni João Sette Whitaker Ferreira Ladislau Dowbor Renato Dagnino Eleutério F. S. Prado Rafael R. Ioris João Feres Júnior Salem Nasser Alysson Leandro Mascaro Luciano Nascimento Eleonora Albano José Machado Moita Neto Milton Pinheiro Rubens Pinto Lyra Airton Paschoa Anselm Jappe Ronaldo Tadeu de Souza Michel Goulart da Silva Ronald León Núñez Fernão Pessoa Ramos Francisco Pereira de Farias Daniel Brazil Luis Felipe Miguel Ricardo Abramovay Bernardo Ricupero Plínio de Arruda Sampaio Jr. Antônio Sales Rios Neto José Geraldo Couto Jean Marc Von Der Weid Eugênio Trivinho Mário Maestri Daniel Costa Alexandre de Freitas Barbosa Ronald Rocha Fernando Nogueira da Costa Luiz Renato Martins Elias Jabbour Luiz Carlos Bresser-Pereira Ari Marcelo Solon Gilberto Lopes Jorge Luiz Souto Maior Luiz Bernardo Pericás Luiz Werneck Vianna Heraldo Campos Liszt Vieira Eliziário Andrade Andrew Korybko Leonardo Sacramento Jorge Branco Gerson Almeida Luiz Eduardo Soares Valerio Arcary João Adolfo Hansen Atilio A. Boron Chico Alencar Ricardo Antunes Daniel Afonso da Silva Luiz Roberto Alves Julian Rodrigues Alexandre Aragão de Albuquerque Dênis de Moraes Paulo Martins Celso Frederico Carlos Tautz Armando Boito Francisco de Oliveira Barros Júnior Henry Burnett Paulo Fernandes Silveira Paulo Nogueira Batista Jr Manuel Domingos Neto Marjorie C. Marona Lincoln Secco Tales Ab'Sáber Marilia Pacheco Fiorillo Marcos Aurélio da Silva Flávio R. Kothe Thomas Piketty Matheus Silveira de Souza Leonardo Avritzer Marcelo Módolo Samuel Kilsztajn Lucas Fiaschetti Estevez Eugênio Bucci André Singer João Carlos Loebens Otaviano Helene Igor Felippe Santos Lorenzo Vitral Priscila Figueiredo Paulo Sérgio Pinheiro Caio Bugiato Sandra Bitencourt João Paulo Ayub Fonseca Michael Löwy Michael Roberts Benicio Viero Schmidt José Costa Júnior Afrânio Catani Celso Favaretto Antonino Infranca Maria Rita Kehl Tarso Genro Boaventura de Sousa Santos Vinício Carrilho Martinez Walnice Nogueira Galvão Mariarosaria Fabris João Lanari Bo Leonardo Boff Paulo Capel Narvai Eduardo Borges Marilena Chauí Henri Acselrad Alexandre de Lima Castro Tranjan

NOVAS PUBLICAÇÕES