Três anos de uma guerra bicentenária

Imagem: Kagan Bastimar
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Por MATEUS MENDES*

Entre 2004 e 2005 Moscou amargou quatro avanços da OTAN: três ex-repúblicas soviéticas foram palcos de revoluções coloridas e a OTAN incluiu sete países, entre eles a Estônia, Letônia e Lituânia.

1.

A melhor forma de não entender a Guerra da Ucrânia é iniciar a leitura a partir de 24 de fevereiro de 2022. Por isso é que a mídia oligopolista e seus analistas prediletos o fazem. Quando não, salvo exceções que só servem para confirmar a regra, estendem a análise até, no máximo, a retomada da Crimeia, em 2014.

No entanto, sem querer entrar na discussão acerca da Rússia de Kiev, do Grão-ducado da Lituânia ou qualquer ponto na Idade Média, seria prudente ampliar o foco. Meio dos anos 1990, quando a Otan se expande sobre os antigos Estados socialistas? Fim da Guerra Fria? Guerra Fria? Revolução de 1917? Arrisco dizer que, sob o prisma dos ciclos de longa duração, seria interessante retrocedermos ao início do século XIX, afinal, nesses pouco mais de duzentos anos, os dois únicos momentos em que o Ocidente (ou seu protótipo) deixou de ter a Rússia como principal inimigo foram as duas vezes em que uma aliança contra a Alemanha foi necessária.

Em 1815, quando o Tratado de Viena encerrou as guerras napoleônicas, houve uma enorme simplificação do sistema interestatal europeu. Por razões compreensíveis, na escola brasileiras ensinam que Portugal e Espanha foram rebaixadas ainda mais. Porém, pouco se fala do que houve no Leste Europeu. Lá, Áustria, Prússia e Rússia dividiram o espólio da comunidade polaco-lituana. O outrora poderoso Estado, que se estendia do Báltico até a poucos quilômetros da Crimeia, fora destroçado por Napoleão em 1795.

O que viria a se chamar de Ocidente começou a se desenhar naquele momento. Não sem algumas mudanças. (Para não falar da entrada dos EUA, cuja pretensão imperial da Doutrina Monroe não seria mais que palavras ao vento não fosse o consentimento europeu…). A França era poderosa demais para ser posta no mesmo balaio dos ibéricos, e logo foi reabilitada. A Áustria cairia na insignificância um século mais tarde, não sem antes perder parte de seu território para o Piemonte-Sardenha na unificação italiana. Também a Prússia lhe tomou território, assim como fez com a Dinamarca e a França, a fim de promover a unificação alemã.

Já o Reino Unido estava acima das potências continentais e tinha na Rússia seu principal inimigo. Começava o Grande Jogo, conjunto de movimentos geopolíticos de Londres para evitar a expansão de São Petersburgo na Ásia Central. É nesse contexto que ocorre a invasão britânica ao Afeganistão, em 1838, e toda uma série de eventos por toda a Eurásia.

O ponto alto da rivalidade anglo-russa, porém, foi em 1853. Liderado pelo Reino Unido, esse protótipo de Ocidente se aliaria aos turcos contra a Rússia na Crimeia. Certamente os cruzados britânicos, franceses e italianos se reviraram no túmulo por causa dessa heresia de seus tataranetos.

2.

Mas a Terra é redonda, e a Ásia é muito grande. No Extremo Oriente, o menino pródigo dos europeus promovia sua primeira humilhação aos japoneses. Face à ameaça, Tóquio concluíra que seria melhor copiar o desenvolvimento europeu do que sucumbir como a Índia e a China. Firmava-se assim a parceria nipo-britânica que possibilitou a Era Meiji. Da parte do Japão, se tratava de aproveitar as rivalidades entre as potências europeias e promover o desenvolvimento acelerado por meio de um catching up. Da parte do Reino Unido, não só criava um porto seguro para os investimentos, mas também uma possível nova frente contra a Rússia.

Quarenta anos depois do início da Era Meiji, em 1905, o Japão começa seu expansionismo na Ásia continental e chega às fronteiras da Rússia. A vitória japonesa sobre os russos é anunciada com a primeira derrota de um país europeu para um país não europeu, algo que só é verdade até a página dois. Embora não seja um país europeu, o Japão que derrotou a Rússia mimetizara o projeto industrial-militar do mais poderoso dos países europeus, e o fizera por concessão estratégica do Reino Unido.

A derrota para os japoneses foi o réquiem para o absolutismo russo. Alguns dos pilares das duas revoluções de 1917 foram lançados na Revolução de 1905. Na Revolução de fevereiro, o projeto ocidental – governo representativo, direito civil burguês e um governo ilustrado – parecia anunciar a grande e final vitória político-ideológica franco-britânica. No entanto, a roda da história não parou no ponto em que as burguesias europeias ansiavam, e deu mais um passo. Esse giro extra atraiu, mais que a atenção, a ira das burguesias ocidentais: não só os territórios russos tomados pelos alemães durante a guerra não foram devolvidos, como os ocidentais enviaram soldados para se somar ao Exército Branco na Guerra Civil (1918-1921).

Vencida a guerra civil – que, dado o grau de envolvimento de potências estrangeiras, há que se questionar se o termo “civil” é realmente aplicável –, vieram a fundação da União Soviética, a NEP e os planos quinquenais. Além de desconhecer a crise de 1929, a União Soviética promoveu um espantoso desenvolvimento industrial, cujo crescimento médio nos anos 1930 foi de 16,5%.

A União Soviética era caracterizada por uma economia planejada centralmente, marcada pela escassez de capital e pela propriedade estatal dos meios de produção, incluindo a coletivização agrícola. A produção estava orientada pelo valor de uso e não pelo de troca, ou seja, sua função era atender às necessidades sociais, em vez de buscar lucro. Nos seus primeiros anos de existência, a estratégia de desenvolvimento adotada pelo Estado soviético, que controlava todo o comércio exterior, foi vender matéria-prima e comprar as máquinas que seriam os alicerces de sua indústria.

Agora, à variável geopolítica se somavam as variáveis política, econômica e ideológica. A consciência de que a União Soviética era persona non grata no concerto das nações fez com que o complexo industrial-militar assumisse a centralidade do planejamento econômico.

A história não tardaria a demonstrar o acerto das escolhas. A capitulação da França e do Reino Unido em Munique (1938) deixou claro que havia setores em Paris e Londres que não achavam problemática uma expansão da Alemanha nazista para o leste, afinal, é lá que estava a União Soviética.

Mesmo quando Washington e Londres se aliaram a Moscou para derrotar Berlim, o fizeram com ressalvas. Prova disso é que Franklin D. Roosevelt segurou ao máximo a entrada dos estadunidenses e britânicos na região oriental da Europa a fim de aumentar o custo militar e humano que os soviéticos pagariam.

Depois, com a morte de Roosevelt, com Truman a relação piorou muito. De largada, o novo presidente se fez de desentendido e transformou em palavras ao vento a promessa do seu antecessor em ajudar na reconstrução da União Soviética. Em 1947, lançou a política de contenção. Em 1949, criou a Otan. Para além de “manter os russos fora, os estadunidenses dentro e os alemães para baixo”, a Otan estruturou o protetorado informal dos Estados Unidos sobre a Europa e serviu de instrumento para suas ambições geoestratégicas.

Nos anos 1970, os movimentos de Washington mostram que a questão ideológica poderia ser relativizada e que o cerco à Rússia continuava a ser uma das principais diretrizes geopolíticas. Em 1972, os Estados Unidos se aproximaram da China comunista, rifando seus aliados taiwaneses. Entre 1977 e 1981, Jimmy Carter e Brzezinski recuperam Mackinder e sua teoria do Heartland e insuflaram o surgimento do fundamentalismo islâmico nas franjas da União Soviética, que se atolou na defesa dos aliados laicos no Afeganistão.

3.

Com a vitória ocidental na Guerra Fria, a Rússia, agora um Estado capitalista, esperava que, uma vez que não houve uma derrota militar em stricto sensu, seria respeitada em sua condição de potência geopolítica. A primeira década pós-Guerra Fria mostrou que essa expectativa não passava de ilusão.

A liberalização da economia destruiu econômica e socialmente o país: as privatizações arruinaram o Estado de bem-estar e o ataque especulativo do capital internacional colocou o país de joelhos.

Na dimensão geopolítica, a humilhação foi ainda maior. Belgrado, aliado histórico de Moscou, viu seu território não apenas ser retalhado como bombardeado e ocupado pela Otan duas vezes. Foi nessa década também que um compromisso internacional de um presidente estadunidense se mostrou não mais que palavras ao vento: a Otan iniciou sua expansão sobre os países do entorno estratégico de Moscou.

A prova de que tal ofensiva não foi um capricho deste ou daquele ocupante da Casa Branca e sim uma deliberação estratégica é que, salvo Bush pai e uma vez iniciada a expansão sobre o espólio soviético, todos os presidentes estadunidenses promoveram alguma ampliação da Otan.

Entre 2004 e 2005, Moscou teve que amargar ainda quatro revezes. Nesse período, três ex-repúblicas soviéticas foram palcos de revoluções coloridas (Geórgia, 2003; Ucrânia, 2004/05; e Quirguistão, 2005) e viram governos alinhados à Rússia serem substituídos por governos pró-Ocidente. Em 2004, ocorreu a maior expansão da Otan – sete países foram incluídos –, com o detalhe de que pela primeira vez essa expansão incluía países que compuseram a União Soviética – Estônia, Letônia e Lituânia – e fazem fronteira com a Rússia.

Em abril de 2008, a Otan convidou a Geórgia e a Ucrânia para ingressarem na aliança militar. Em agosto, contando com a retaguarda do Ocidente, a Geórgia invadiu a Ossétia, região georgiana autônoma de maioria étnica russa. Porém, dessa vez, a Rússia não deixaria passar.

Sob liderança de Vladimir Putin, ocorreram a reorganização tanto das elites política e econômica do país quanto do próprio Estado russo, que se preparou para exigir que sua condição de potência geopolítica fosse respeitada. Assim, desde 2000, Moscou abandonou as políticas liberais e reestruturou seu complexo industrial-militar: restabeleceu o controle estatal sobre o setor energético e iniciou um programa de pesquisa, desenvolvimento e inovação que a tornaria a vanguarda em aviões de combate, mísseis e sistemas antiaéreos. Assim, a Rússia estava pronta para reagir à provocação, e o fez, forçando Tiblíssi a capitular em cinco dias.

A próxima provocação do Ocidente redundaria na inevitabilidade do conflito que agora faz três anos e tem seus desdobramentos bem conhecidos. Descontente com o governo pró-Rússia, o Ocidente estimulou mais uma revolução colorida na Ucrânia, apoiando-se em grupos abertamente fascistas como o Pravy Sektor e o Batalhão Azov. Ato contínuo à Eutomaidan (nov.2013-fev.2014), a Rússia anexou a Crimeia (março de 2014) – onde fica fundeado o grosso de sua esquadra – e equipou os separatistas em Donetsk e Lugansk.

Até fevereiro de 2022, a Rússia sinalizou diversas vezes que não admitiria a entrada da Ucrânia na Otan e exigiu que Kiev se abstivesse de agredir as minorias etno-russas do Donbass. Face à intransigência do Ocidente em manter o cerco à Rússia e à anuência da Ucrânia em ser um instrumento na manobra, restou à Rússia pouca margem de manobra: ou iniciava a guerra, ou veria a Otan estabelecer uma enorme fronteira a poucos metros de Moscou.

4.

Agora, nada adianta ficar demonizando a Rússia ou dizer que a culpa é de Vladimir Putin. Quem acha que Vladimir Putin é um autocrata megalômano e alucinado não entendeu nada: ele é a pessoa que conseguiu canalizar o descontentamento da elite russa com mais de dois séculos de cercos e ofensivas. Tampouco pode ter fruto envernizar e edulcorar neonazistas como Navalny ou dizer que Vladimir Putin e as elites russas não têm apegos às pautas liberais que seduzem a esquerda no Ocidente e em parte da América Latina.

Outra análise simplória é pôr Vladimir Putin no mesmo balaio que Donald Trump e a extrema direita europeia. A Otan é a maior ameaça à segurança russa, e a esquerda institucional europeia nunca cogitou desmobilizá-la ou frear suas expansões. Além disso, se a extrema direita desestabiliza a Europa e os Estados Unidos e se foi a estabilidade dos governos de centro-direita que promoveram a expansão da Otan, é plausível acreditar que, com a extrema direita nesses países, a Rússia, ao menos no curto prazo, tem maiores chances de ter sua segurança preservada. Em outras palavras, com dificuldades internas, o Ocidente ameaça menos a Rússia.

Finalmente, Donald Trump de fato promoveu uma guinada na posição estadunidense. A decisão de rifar a Ucrânia e se pôr ao lado Rússia no conflito não encontra paralelo. Não obstante, ainda é cedo para dizer se tal inflexão será um momento excepcional ou um novo paradigma da política externa estadunidense.

O que é seguro dizer é que, termine nas próximas semanas ou nos próximos anos, o conflito que ora completa três anos é parte de uma guerra que já dura dois séculos.

*Mateus Mendes é doutorando em economia política internacional na UFRJ. Autor, entre outros livros de Guerra híbrida e neogolpismo: geopolítica e luta de classes no Brasil (2013-2018) (Expressão Popular).

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