Trilha sonora para um golpe de Estado

Sixto López-Reine, Pensamentos noturnos, 2016
image_pdf

Por JOÃO LANARI BO*

O filme de Johan Grimonprez trata-se de uma recusa cabal de duas conhecidas linearidades, a da história e a da linguagem documental

Mark Twain é conhecido, além dos saborosos livros que escreveu, por ter sido um frasista contumaz, irônico e agudo. Certa vez, disse: “a história não se repete, mas muitas vezes rima”. Do outro lado do oceano, o belga Johan Grimonprez, cineasta e curador, levou ao pé da letra a assertiva e realizou o voraz Trilha sonora para um golpe de Estado, ode musico-libertária sobre descolonização, Guerra Fria, Congo, Patrice Lumumba e, sobretudo, ilações jazzísticas.

Trata-se de uma recusa cabal de duas conhecidas linearidades, a da história e a da linguagem documental. O resultado, que céticos e vassalos do alfabeto irão contestar, é um filme altamente informativo e sobejamente aprazível – construído em cima de descontinuidades que se agrupam e dispersam no compasso sincopado da bateria de Max Roach.

Um modo de usufruir desses 150 minutos de sons e imagens, fonte plural em estado de permanente inovação, é imaginar o autor (ou os autores: Grimonprez e colaboradores) como dotado de uma espécie de subjetividade digital, que vê a história como espaço de dispersão e recusa princípios de causalidade, de analogia e de homogeneidade.

Ao intercalar elementos e personagens díspares tendo o ritmo staccato do jazz como guia e estrutura, Trilha sonora para um golpe de Estado privilegia a descontinuidade como eixo fundamental de análise, desmontando de passagem visões essencialistas e lugares de verdade (e os poderes neles investidos) que povoam os discursos do conhecimento. Esse conceito, exarado pelo filósofo Michel Foucault, encontra eco na afirmação do cineasta sobre seu propósito autoral – uma tentativa de dar sentido aos destroços causados pela história.

Afinal, do que se trata? Como belga, Johan Grimonprez conhece a desastrada incursão colonialista de seu país na África, Congo – uma rápida consulta ao oráculo da internet indica: “Leopoldo II foi rei dos belgas de 1865 a 1909 e é especialmente lembrado pela colonização do Congo Belga, que chegou a ser sua propriedade particular. Nesse período a Bélgica decepou mãos, braços e matou mais de 10 milhões”.

Corta para Louis Armstrong, Nina Simone, Duke Ellington, Dizzie Gillespie. Amstrong foi designado embaixador cultural ou coisa que o valha, para circular na África. Dizzie Gillespie, debochado e sardônico, lançou-se candidato à presidência dos EUA em 1964.

Corta para Nikita Khrushchev, Fidel Castro, Dwight Eisenhower, Allan Dulles, Nehru, Nasser, Andrée Blouin: o líder soviético vocifera contra as potências coloniais na ONU, tirando o sapato e batendo na mesa. Fidel Castro, talvez em seu melhor momento midiático, é expulso do hotel em Manhattan que se hospedara com a delegação cubana e convidado por Malcom X – esse, de uma inteligência fulgurante – a instalar-se no Hotel Theresa, no Harlem, epicentro da black America. Naquela época Malcom X chegou a propor intervenção da ONU em seu próprio país, Estados Unidos, diante das violações dos direitos humanos dos negros: “Se fazem isso mundo afora, porque não aqui?”.

Colonialismo é brutalidade, como se sabe: mas os belgas se superaram, se é que é possível falar em superação diante de um quadro como esse. A história avançou, dispersou, e no final da década de 1950 atingiu um paroxismo que mesclava urânio, descolonização pós-segunda guerra, polarização global, CIA e assassinatos de líderes incômodos.

Patrice Lumumba, Primeiro-Ministro congolês eleito em 1960 – mas que ocupou o cargo apenas por 12 semanas – inaugurou uma liderança que desagradava os colonialistas belgas, sempre interessados em dividir e instigar as rivalidades étnicas. Se tem urânio à vista, em especial na província de Catanga – de lá saíram toneladas para as bombas atômicas que devastaram Hiroshima e Nagasaki – entra em cena o poderio norte-americano, para “ajudar” o decadente entreposto europeu.

Trilha sonora para um golpe de Estado alterna entre outras imagens de home vídeos, cinejornais, textos acadêmicos e, em especial, discursos de Patrice Lumumba, alguns até pouco tempo considerados perdidos. Intelectual autodidata e leitor ávido, entrou na política e logo se destacou – foi eleito com 34 anos, e assassinado com 35. Relegado a prisão domiciliar após três meses de mandato, tentou fugir, mas terminou capturado em dezembro de 1960. Foi transferido para Catanga, onde foi torturado e morto por mercenários e tropas rebeldes. Seu corpo, e dos colaboradores que estavam com ele, nunca foram encontrados.

Numa manhã fria de fevereiro de 1961, o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se para discutir a crise no Congo. Invadem o recinto, para protestar contra a omissão da organização pelo assassinato de Patrice Lumumba, um grupo de ativistas negros liderados pela cantora Abbey Lincoln, o baterista Max Roach e a escritora Maya Angelou. Gritos, xingamentos e socos ilustram a cena, a melhor de um filme cheio de cenas boas e fortes.

No ano 2000, um ex-policial belga confessou que os corpos de Patrice Lumumba e assessores foram dissolvidos em ácido. Não restou quase nada, apenas alguns dentes: um deles foi guardado como troféu. Em 2022, o procurador belga Frederic Van Leeuw entregou aos familiares de Patrice Lumumba uma pequena caixa azul que continha um dente — tudo que restou do herói assassinado — numa cerimônia transmitida pela televisão.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência


Trilha sonora para um golpe de Estado (Soundtrak to Coup d’Etat)
Direção: Johan Grimonprez.
Bélgica, 2024, documentário, 150 minutos.
Elenco: Marie Daulne, In Koli Jean Bofane, Patrick Cruise O’Brien, Abbey Lincoln, Dizzy Gillespie, Duke Ellington, Dwight D. Eisenhower, Fidel Castro


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
Não aos “intervalos bíblicos”
13 Nov 2025 Por MARCO MONDAINI: O avanço dos projetos de lei confessionais faz soar o alarme contra a perda da separação entre política e religião, ameaçando os fundamentos estruturantes da escola pública, como a cientificidade e a pluralidade
2
O jantar da CONIB
11 Nov 2025 Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: O manto de uma solenidade comunitária pode esconder a farsa perigosa que une o supremacismo de um Estado estrangeiro ao projeto autoritário da extrema direita local
3
Lô Borges
07 Nov 2025 Por TALES AB’SÁBER: Lô Borges ensinou que o sagrado na arte não se revela na repetição vazia, mas no encontro único que atravessa o sujeito e transforma a escuta em uma experiência de vida irreprodutível
4
O conivente silêncio sobre o agronegócio
11 Nov 2025 Por MIGUEL ENRIQUE STÉDILE: A ostentação de uma riqueza que devasta e empobrece depende, sobretudo, do pacto silencioso que a sustenta e a absolve
5
Outros atos e maneiras de escrever
09 Nov 2025 Por AFRÂNIO CATANI: O ato de escrever é indissociável da vida concreta, da disciplina, das limitações e das ferramentas utilizadas, transformando a experiência em forma, seja ela uma resistência política ou uma cura pessoal
6
COP 30 – sucesso ou fracasso?
07 Nov 2025 Por LISZT VIEIRAl é capaz de impor uma transição justa à inércia catastrófica do business-as-usual
7
O que os coaches não te contam sobre o futuro do trabalho
12 Nov 2025 Por CARLOS JULIANO BARROS & LEONARDO SAKAMOTO: Introdução dos autores ao livro recém-lançado
8
O agente secreto
13 Nov 2025 Por GUILHERME COLOMBARA ROSSATTO: Comentário sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
9
Álvaro Vieira Pinto
14 Nov 2025 Por GABRIEL LUIZ CAMPOS DALPIAZ & KAUE BARBOSA OLIVEIRA LOPES: O polímata Álvaro Vieira Pinto uniu a dialética platônico-hegeliana e o marxismo para conceber o subdesenvolvimento como um problema a ser superado pela industrialização e a razão científica
10
Da China, com inveja
14 Nov 2025 Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.: O despertar chinês ensina que a verdadeira soberania nasce de um projeto próprio: rejeitar receitas alheias para construir, com pragmatismo e orgulho civilizatório, um palco onde o Estado conduz e os agentes atuam
11
Zohan Mamdani escolhe a tradição de Eugene Debbs
13 Nov 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: A vitória de Zohan Mamdani em Nova York revive a esperança de Richard Rorty em uma "Nova Velha Esquerda", que une as lutas de minorias e trabalhadores na tradição socialista e democrática de Eugene Debbs e Luther King
12
João Carlos Salles, coragem e serenidade
12 Nov 2025 Por EMILIANO JOSÉ: Coragem e serenidade em meio à procela: a liderança de João Carlos Salles se agigantou no claro-escuro da crise política, transformando-se na voz firme da resistência acadêmica ao regime dos ataques
13
O agente secreto
15 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: A genialidade do filme está em sua forma desalinhada, que espelha o arbítrio de uma época onde crime e Estado se confundiam numa realidade fantasmagórica e irracional
14
Zohran Mamdani – a virada que desafia o império
11 Nov 2025 Por MANUELA D’ÁVILA & ORLANDO SILVA: No coração do império, a política do cuidado e do dissenso vital devolve uma palavra proscrita ao vocabulário do possível: o comum
15
Contra o fiscalismo e o quietismo
12 Nov 2025 Por VALERIO ARCARY: A verdadeira coragem política reside em navegar a tensão necessária: usar a frente ampla como trincheira tática sem nela se aprisionar, mantendo a estratégia de transformação antineoliberal como bússola
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES