Trilogia de Copenhagen

Heather Dornan Wilson, Uma hesitação honesta, 2016
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Por ANOUCH KURKDJIAN*

Considerações sobre o livro de Tove Ditlevsen

Escritos originalmente no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, os três volumes que compõem a Trilogia de Copenhagen, da escritora dinamarquesa Tove Ditlevsen, foram publicados em 2019 nos Estados Unidos e ganharam repercussão mundial a partir de então, tendo sido publicados no Brasil no final de 2023.

Embora ao longo de sua vida a autora tenha escrito mais de 20 livros, entre poesia, romances, contos e ensaios, foi com essa trilogia memorialística que ela foi redescoberta pelo mercado editorial no início do século XXI e anunciada como uma predecessora na linhagem de escritoras contemporâneas de grande ressonância como Elena Ferrante e Annie Ernaux.

São autoras que adotam formas literárias muito distintas entre si – enquanto a obra em questão de Tove Ditlevsen é um livro de memórias relativamente tradicional, Elena Ferrante opta pela forma canônica do romance realista para sua tetralogia napolitana, ao passo que Annie Ernaux reconstrói suas memórias pessoais em vinculação estreita com a história social e orientada por um esforço de objetivação informado pela sociologia das classes de Pierre Bourdieu – mas cuja matéria narrativa comum gira em torno da trajetória de mulheres oriundas da classe trabalhadora que buscam adentrar o universo literário ou intelectual, tradicionalmente vedados a elas por serem predominantemente masculinos e burgueses.

A trilogia memorialística de Tove Ditlevsen destaca-se pela beleza e pelo lirismo de sua narrativa, principalmente nas duas primeiras partes: “Infância” e “Juventude”. A última, “Dependência”, mais sombria em virtude dos acontecimentos extremos em que a autora se vê envolvida, é paradoxalmente a parte em que a escrita da autora parece ter menos força, como se a elaboração literária ficasse em segundo plano diante dos fatos em si mesmos (o que talvez seja compreensível, afinal).

Antes disso, é bonito ver o desejo de escrever, tão forte que daria mesmo pra falar em necessidade, manifestando-se em Tove Ditlevsen desde muito cedo – várias vezes ao longo do livro ela relembra como desde pequena “palavras longas e bizarras” brotavam na cabeça dela o tempo todo e eram como uma “membrana protetora da alma”; “ondas luminosas”, as palavras eram um respiro, uma proteção diante dos conflitos familiares ou no ambiente de trabalho, um apoio para suportar a alienação que sentia em seu próprio mundo de origem.

Formular frases mentalmente, escrevê-las num diário ou na máquina de escrever, ler, eram atividades que a organizavam subjetivamente e, mais tarde, seriam o caminho pelo qual ela encontraria algum lugar no mundo: “Todo mundo gosta do meu irmão, e muitas vezes penso que a infância dele combina mais com ele do que a minha comigo. Ele tem uma infância sob medida, que se expande harmonicamente com seu crescimento, enquanto a minha foi feita para uma menina inteiramente diferente, para a qual estaria adequada. Quando tenho esses pensamentos, minha máscara fica ainda mais tola, pois é impossível falar desse tipo de coisa com qualquer um – e sempre sonho encontrar uma pessoa misteriosa, que me ouça e me entenda. Sei, pelos livros, que esse tipo de pessoa existe, só que não há nenhuma na rua da infância”.

A dignidade que a escrita de Tove Ditlevsen dá para detalhes mínimos do cotidiano, pequenas impressões fugidias e acontecimentos aparentemente corriqueiros, recorrendo a metáforas e adjetivos inusitados, esse olhar atento, franco e perspicaz, dotado de um frescor próprio da infância e da juventude (e aqui é impossível não se lembrar de Marcel Proust e de sua busca incessante por ver as coisas como se fosse pela primeira vez, escapar da prisão do hábito e do seu correspondente subjetivo, o embotamento da sensibilidade e da inteligência) tem como efeito nos fazer prestar mais atenção nos detalhes e na dignidade de nossa própria vida e é a marca da vocação literária e mais especificamente poética da autora – ainda que tenha escrito romances, contos e ensaios, Tove Ditlevsen inicia sua vida literária escrevendo poesia, gênero que a acompanharia por toda a vida.

Assim, numa primeira visada, embora seja memorialístico e não ficcional, o livro pode ser lido como um romance de formação de artista [Künstlerroman], com a especificidade do artista em questão ser uma mulher – algo ainda pouco usual na Dinamarca da primeira metade do século XX (e não só lá) – e, mais raro ainda, uma mulher vinda da classe trabalhadora, com todas as barreiras sociais que esses dois pertencimentos, de gênero e de classe, pressupõem: dificuldades que vamos conhecendo ao longo do livro e que incidem sobre a sobrevivência material, a inserção social, o acesso à educação e à cultura, além das opressões mais sorrateiras de gênero. Contudo, nada disso é tematizado de modo panfletário no livro, aparecendo antes de maneira viva, como parte da experiência formativa de sua autora.

Todos esses obstáculos, que Tove Ditlevsen aparentemente consegue superar na juventude e na primeira metade da vida adulta, ao se estabelecer como escritora, parecem retornar na última parte da trilogia, como que condensados na sua dependência de analgésicos e também em certo traço de dependência recorrente em suas relações amorosas – não à toa é dentro de uma relação literalmente “tóxica” (para usar um termo da moda) que seu vício em remédios começa – aliás, a palavra “Gift“, em dinamarquês, é usada tanto para se referir a alguém que é casado, quanto a veneno.

Não deixa de ser curioso também que a fase mais conturbada da sua vida pessoal aconteça quando ela finalmente se estabelece como artista e passa a viver uma vida tipicamente burguesa – compra uma casa no subúrbio, onde mora com o companheiro e os filhos, afasta-se dos amigos mais boêmios, tem dinheiro de sobra e uma empregada doméstica, entre outros marcadores sociais de ascensão.

Nesse sentido, o tom trágico do final de sua trajetória parece indicar o caráter algo precário dessa sua ascensão social e os limites da emancipação individual de uma mulher em uma sociedade ainda machista em sua estrutura. O que vemos ao final da narrativa é como os anseios mais profundos de Tove Ditlevsen, aparentemente realizados em uma carreira literária de sucesso, são ao menos temporariamente esmagados pelo mundo social – ao modo daquele tipo de romance a que György Lukács chamou de romance de desilusão – resultando em grande sofrimento subjetivo.

Isso fica patente em certos conflitos enfrentados por Tove Ditlevsen e exacerbados nessa fase de sua vida, como a dificuldade para equilibrar a vida familiar e a atividade literária, a necessidade de sempre estar casada ou numa relação amorosa, sem as quais sua vida parecia se inviabilizar, tanto em termos materiais, quanto em termos afetivos, além da presença constante e pervasiva de um profundo sentimento de inadequação. Como antecipei, talvez o rasgo de inexpressividade da prosa na última parte do livro tenha sua justificativa literária, portanto.

Seja como for, mais do que a simples exposição das dificuldades que Tove Ditlevsen teve que enfrentar ao longo de sua trajetória para enfim se tornar uma escritora, a força do livro parece mesmo residir na tensão, tornada palpável pela capacidade literária da autora, entre sua relação sensível, genuína, íntima e necessária com as palavras (entre seu desejo de escritora, afinal) e os obstáculos para a realização desta sua vocação em um mundo hostil ao seu gênero e à sua classe.

Assim, ainda que a política e a história não sejam temas explícitos do romance – uma vez que elementos como a relevância e as contradições da social-democracia na Dinamarca, a ascensão de Hitler na Alemanha, a ocupação nazista de Copenhagen e as violências de gênero aparecem de maneira aparentemente episódica, antes como componentes da experiência cotidiana de uma jovem escritora do que como objetos de análise ou de reflexão metódica – a leitura da obra não deixa de evocar o sentimento, politicamente relevante, de que embora muitas coisas tenham mudado desde a época em que o livro foi escrito, outras tantas ainda estejam à espera de uma transformação mais radical.

*Anouch Kurkdjian é doutora em sociologia pela USP.

Referência


Tove Ditlevsen. Trilogia de Copenhagen: infância, juventude e dependência. Tradução: Heloisa Jahn e Kristin Lie Garrubo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, 392 págs. [https://amzn.to/4gQ73qi]


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