Por RICARDO SEQUEIRA BECHELLI*
A guerra na Ucrânia faz ver que a história, a geopolítica e o poder desmentem a tese de que conflitos se reduzem a diferenças culturais e religiosas
1.
No final do Século XX, o pesquisador americano Samuel P. Huntington apresentou uma tese que provocou uma grande polêmica mundial – a de que o principal motivador dos conflitos mundiais não seria mais de natureza econômica, territorial ou política, mas sim o de choque de civilizações.
Samuel P. Huntington chegou a esta conclusão após o final da Guerra Fria, no qual ele via como sendo um momento em que as ideologias perderam o seu significado enquanto motivador de conflitos, com a derrocada da União Soviética e do bloco comunista.
Polêmicas à parte, é válido dizer que alguns eventos que se seguiram ao final da Guerra Fria deram voz a Samuel P. Huntington: a guerra do Golfo (Iraque e Kuwait), os acordos de Oslo entre palestinos e israelenses e a dificuldade da obtenção da paz no Oriente Médio; a guerra da Bósnia com a dissolução da antiga Iugoslávia, os problemas imigratórios nos EUA, principalmente de pessoas oriundas da América Latina; o ataque de 11 de setembro, entre outros eventos.
Porém estes mesmos eventos acabaram contradizendo as ideias de Samuel P. Huntington: o mundo continuou a ser o placo de conflito de interesses, sejam eles políticos, estratégicos ou econômicos; como a questão do Petróleo na guerra do Golfo ou a política de limpeza étnica adotado em vários conflitos, com o único objetivo o de conquista territorial.
As teorias de Samuel P. Huntington começaram a ser cada vez mais questionadas e invalidadas. Talvez um dos pontos mais questionáveis de toda a análise de Huntington seja a de qualificar a “América Latina”, como sendo uma civilização própria, distinta da Ocidental, simplesmente por conta da sua formação religiosa.
Samuel P. Huntington considerou como um dos assuntos mais relevantes para a sua análise a desintegração da União Soviética. Para ele, a desintegração política do país em vários Estados, criou uma situação no qual os Estados estavam mais inclinados ao Ocidente (por questões históricas ou culturais) se separariam da área de influência do que ele chamou de “civilização ortodoxa e russa”; já o restante dos Estados se juntaria ou iria se manter dentro da órbita da Rússia.
2.
Samuel P. Huntington define na sua interpretação a Ucrânia como uma peça-chave. Segundo ele, a Ucrânia esteve na maior parte de sua história moderna controlada por Moscou, com exceção do breve período de 1917 a 1920, durante a guerra civil russa, no qual o país se estabeleceu como um Estado independente.
É salutar que Samuel P. Huntington ignore deliberadamente o uso da violência, por parte da Rússia, como uma forma de manutenção do poder sobre a Ucrânia ao longo do tempo. Seja nos séculos anteriores quando foi incorporada à Rússia czarista, seja, ao longo do século XX, a história da Rússia com a Ucrânia sempre foi a da conquista, opressão e domínio territorial.
Porém Samuel P. Huntington não aborda esta questão, abordando o que ele vê como primordial, ou seja, a questão civilizacional. Para ele a Ucrânia é um país rachado, com duas culturas distintas, separados por uma fratura civilizacional entre o Ocidente e a “Ortodoxia”. Ele salienta que a Ucrânia Ocidental em alguns momentos do passado fez parte da Polônia, Lituânia e do Império austro-hungaro[i] e assim reconhecem a autoridade do Papa.
Já a parte Oriental, conforme ele descreve, as pessoas falam o ucraniano e em grande parte falam o russo, sendo, portanto, cristãos ortodoxos, lembrando anda que a Criméia é predominante russa e fez parte da Federação Russa até 1954.
Para Samuel P. Huntington, a divisão “civilizacional” da Ucrânia poderia levar a três situações.
A primeira situação abordava por Samuel P. Huntington se refere as questões legadas da Guerra Fria: as armas nucleares, da esquadra do mar Negro, da Criméia, dos direitos dos russos da Ucrânia e das relações econômicas, que poderiam levar a um conflito aramado entre a Rússia e a Ucrânia. Curiosamente, Huntington não acredita na hipótese de uma guerra, defendendo que, “Entretanto, se o que conta é a civilização, a probabilidade de violência entre ucranianos e russos deve ser baixa”.[ii]
E explica a sua conclusão ao dizer que: “são dois povos eslavos, basicamente ortodoxos, que tem um relacionamento íntimo há séculos e são comuns os casamentos entre eles”.[iii]
Além disso, ele salienta que a eleição em 1994 de um presidente ucraniano alinhado com a Rússia, reduziu a possibilidade de um conflito entre os dois países.
O segundo cenário apresentado por Samuel P. Huntington se refere a possibilidade da Ucrânia se dividir entre duas entidades separadas, sendo que a oriental poderia se fundir com a Rússia. Esta hipótese, baseada na sua visão da civilização, seria separar a Ucrânia conforme o modelo que defendia como sendo de duas civilizações diferentes.
Vale ressaltar que uma parte da Ucrânia ligada ao Ocidente seria bastante complicada, uma vez que que implicaria na necessidade de um apoio substancial do Ocidente. Como ele diz: “Entretanto, tal pedaço remanescente de uma Ucrânia uniata e orientada para o Ocidente só seria viável se tivesse um apoio forte e eficaz do Ocidente. Por um lado, esse apoio só teria possibilidade de se concretizar se as relações entre o Ocidente e a Rússia se deteriorassem seriamente e viessem a se parecer com as que existiam na época da Guerra Fria.[iv]
O terceiro cenário aventado por Samuel P. Huntington e de que a “Ucrânia permanecerá unida, permanecerá rachada, permanecerá independente e, de modo geral, cooperará estreitamente com a Rússia”[v].
Para ele, assim que as questões militares e econômicas forem resolvidas a Ucrânia se voltará para Rússia “cuja solução será facilitada por uma cultura particularmente compartilhada e por íntimos laços pessoas.”[vi]
Citando John Morrison, Samuel P. Huntington compara que o relacionamento russo-ucraniano no mundo ortodoxo, seria o mesmo que o relacionamento franco-alemão representou na estabilidade da Europa. Assim ele conclui que “da mesma forma que este constituiu o núcleo da União Europeia o primeiro é o núcleo essencial para a união do mundo ortodoxo”[vii].
3.
É importante salientar que os fatos decorrentes mostraram que as teorias de Samuel P. Huntington não teriam qualquer sustentação. Primeiramente Huntington ignorou por completo temas básicos da história das relações da Ucrânia e a Rússia.
Um exemplo é da própria dissolução da União Soviética em 1991. A Ucrânia, assim como as demais repúblicas que compunham a URSS e os países do Leste Europeu, foram construções derivadas dos ajustes de fronteiras após a II Guerra Mundial (como exceção já mencionada sobre a Criméia fazer parte da Federação Russa até 1954). As fronteiras e mesmo a distribuição da população foram totalmente redefinidas, sendo que a Polônia perdeu o seu leste (que se tornou parte de Belarus e Ucrânia), mas ganhou territórios da Alemanha, como dois terços da Prússia Oriental, a Pomerânia, parte de Brandenburgo e a Silésia.
A movimentação das fronteiras foi acompanhada por uma política expulsão e reassentamento das populações. Portanto a distribuição da população nos Estados do leste Europeu não se refletiu apenas por conta da evolução histórica das regiões, mas também pela nova configuração do leste no pós-1945.
Um ponto que Samuel P. Huntington também ignora na sua análise é avaliar se a Ucrânia esteve de fato unida com a Rússia por questões “civilizacionais” ou por meio da opressão e conquista. O antigo Império Russo tratou a Ucrânia de uma forma repressora e violenta, para impedir que houvesse um movimento nacionalista. A Ucrânia sempre interessou aos russos, sejam pelas suas terras sejam pelos seus portos no mar Negro, que dava acesso ao Mediterrâneo.
A derrocada do Império czarista, em 1917 e a Revolução Russa acabaram por dar a oportunidade a Ucrânia (assim como a Polônia) de declarar a sua Independência. Mas ao contrário da Polônia, que conseguiu se estabelecer como país, a Ucrânia foi tomada durante a guerra civil e fazendo parte do novo país, a União Soviética.
Da mesma forma, é importante salientar que durante o período soviético foi bastante repressor para a Ucrânia. Nos anos 1930, por conta da coletivização dos campos, aliados a outras políticas do governo soviético, já sob Stalin, processou uma grande fome em toda a Ucrânia, destruindo regiões inteiras e matando milhões de pessoas. A Ucrânia sofreu pesadamente com a ocupação nazista, com milhões mortos; já o pós-guerra não representou a paz para a Ucrânia, com a retomada da repressão stalinista.
A independência da Ucrânia também não conseguiu estabelecer uma política própria, sendo o país ainda controlado indiretamente por Moscou, com presidentes eleitos alinhados à Rússia. Em 2014, quando a revolta popular provocou a remoção do presidente Viktor Ianukovytch e um alinhamento ao Ocidente, a Ucrânia se tornou alvo da Rússia, seja através da tomada de áreas na região do Donbass por forças pró-russas, assim como a anexação da Crimeia, através de um plebiscito sem qualquer respaldo legal.
4.
Em consonância a esta situação, após a pandemia do Covid 19, em 2022, foi realizada a invasão em larga escala da Ucrânia, provocando a maior crise de segurança na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, com o envolvimento indireto da OTAN e dos EUA (através de recursos financeiros e armas) e o risco iminente e de um conflito mundial, algo jamais visto desde o final da Guerra Fria.
Voltando a análise de Samuel P. Huntington, é verdadeiro dizer que se a sua tese choque de civilizações tivesse sustentação, esta guerra jamais teria acontecido. É verdade que existe uma ligação cultural, religiosa e linguista entre a Ucrânia e a Rússia. Mas fazer parte da “mesma civilização” nunca foi o bastante para impedir uma guerra. Sempre existiram e existirão muitos outros interesses, sejam geopolíticos, ideológicos, econômicos e militares envolvidos nos conflitos.
A Rússia de Vladimir Putin jamais aceitaria uma Ucrânia que estivesse fora de sua zona de influência; vendo-a como “fantoche nazista” do Ocidente, dizendo que nem deveria existir enquanto Estado, vendo-a como parte integrante da Rússia.
Se algo da história entre a Ucrânia e a Rússia nos diz é que a existe uma triste coerência nesta guerra com o passado entre os dois países. A guerra que estourou em 2022 e que está em curso é mais um infeliz evento repetitivo do relacionamento entre os países.
A conclusão da guerra ainda é incerta; existem muitas variáveis e forças em conjunto. Desde um governo americano que sob Donald Trump se mostrou pró-russo em várias ocasiões (como sugerir a Ucrania que ceda territórios do seu país a Rússia), a uma União Europeia que vê a Rússia como uma nova ameaça a sua existência e aos fatores econômicos que a guerra está mobilizando e que podem comprometem a estabilidade econômica da Europa.
Dos três cenários apresentados por Samuel P. Huntington, o segundo cenário se apresentou mais realista, com uma guerra em curso e possibilidade real da divisão do país. Mas lembrando que esta divisão – se vier de fato a acontecer ao final do conflito – foi marcada pela maior guerra em solo europeu desde 1945 e não por fatores “civilizacionais”.
Concluindo podermos perceber que a maior falha de Samuel P. Huntington foi de não perceber que existem mais do que fatores “civilizacionais” envolvidos nos relacionamentos entre países e que os conflitos continuam a existir pelo choque dos interesses entre as partes envolvidas, o que uma análise da violenta e conturbada história da Ucrânia e a Rússia pode prover.
*Ricardo Sequeira Bechelli é pós doutor em história social pela USP.
Referência
Samuel P. Huntington. O choque de civilização e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 1997.
Notas
[i] Huntington, Samuel P. O choque de civilização e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro. Ed. Objetiva, 1997, página 207.
[ii] Op.cit, página 208
[iii] Op.cit. página 208
[iv] Op.cit. página 209
[v] Op.cit. página 209
[vi] Op.cit. página 209
[vii] Op.cit. página 210
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