Por Luiz Carlos Bresser-Pereira*
Enquanto, desde 2008, o neoliberalismo está em crise
econômica no mundo rico, e, desde 2016, em crise política, sob ataque de um
nacionalismo de direita, no Brasil existe hoje um hoje um estranho casamento
entre o neoliberalismo e esse tipo de nacionalismo. A crise de 2008 marcou o
fracasso de 40 anos de reformas econômicas neoliberais que prometiam um tempo
novo e maravilhoso para o capitalismo.
Oito anos depois, ela se transformou em crise também
política. A eleição de Donald Trump e o Brexit indicaram o surgimento, no
coração anglo-saxão do neoliberalismo, de uma reação nacionalista de direita.
No mundo rico os líderes nacionalistas de direita são chamados de “populistas” e
são vistos como uma ameaça à “democracia liberal”, embora, como argumento neste
ensaio, eles estão atacando o neoliberalismo e seu projeto, a globalização. No
Brasil, o governo Bolsonaro é um governo neofascista que ataca não apenas a democracia,
mas também o Estado do bem-estar social, os direitos republicanos e o meio ambiente.
No entanto, ao invés de se opor ao neoliberalismo como acontece no Norte, a ele
se associa. Como explicar essa confusão que assola tanto o mundo rico quanto o
Brasil?
A virada neoliberal – a
virada de um regime de política econômica keynesiano ou desenvolvimentista para
um regime neoliberal – ocorreu no mundo rico em 1980. No Brasil, ocorreu dez
anos mais tarde, em 1990, ano em que o Brasil abriu a sua economia no plano
comercial e, logo em seguida, no plano financeiro. No centro do capitalismo,
nos quarenta anos seguintes, os resultados da virada neoliberal foram baixo
crescimento, alta instabilidade financeira, e radical aumento das
desigualdades.
No Brasil, a virada liberal
a partir de 1990 resultou em forte desindustrialização, quase-estagnação
econômica, e alta instabilidade financeira. Não significou, porém, aumento das
desigualdades. Pelo contrário, entre o Plano Real, de 1994, até 2014, o Brasil
experimentou grande redução da pobreza e razoável diminuição das desigualdades.
Esse bom resultado derivou do Pacto Democrático-Popular que levou o Brasil à
transição democrática em 1985, da aprovação de uma Constituição progressista em
1988, do controle da alta inflação inercial em 1994, e da eleição de um governo
de centro-esquerda comandado pelo Partido dos Trabalhadores em 2002.
Do desenvolvimentismo ao neoliberalismo
Por que, depois de 50 anos
de sucesso do desenvolvimentismo, ocorreu a virada neoliberal? Por que ela
fracassou tanto no mundo rico quanto no Brasil? E por que o nacionalismo de
direita que derivou desse fracasso se voltou contra o neoliberalismo e a
globalização no mundo rico, enquanto no Brasil tratou de se associar ao
neoliberalismo?
Para responder a estas
questões vou me valer da economia política e da teoria econômica novo-desenvolvimentista
que nestes últimos dezoito anos um grupo de economistas brasileiros vem
desenvolvendo. Uma teoria que se apoia na teoria keynesiana e na teoria desenvolvimentista
clássica, e se contrapõe às teorias liberais: neoclássica e austríaca.
O Novo Desenvolvimentismo
considera o mercado uma maravilhosa instituição regulada pelo Estado, que é
insubstituível na coordenação dos setores competitivos da economia, mas julga
necessária a intervenção do Estado nos setores não-competitivos da economia e
nos preços macroeconômicos (taxa de juros, taxa de câmbio, taxa de salários,
taxa de inflação e taxa de lucro) que o mercado é incapaz de manter
equilibrados ou certos.
Sem uma política
macroeconômica ativa, principalmente uma política cambial, é impossível
assegurar às boas empresas existentes no território nacional condições de
igualdade na competição com as empresas dos demais países. Já as teorias
liberais entendem o mercado como uma espécie de mecanismo providencial, capaz
de coordenar de maneira quase ótima o sistema econômico, devendo o Estado se
limitar a garantir a propriedade e os contratos e a manter as contas públicas
equilibradas (deveria também defender a competição contra monopólios e carteis,
mas isto é feito apenas retoricamente).
Para o Novo
Desenvolvimentismo o capitalismo é
desenvolvimentista quando, além da intervenção moderada do Estado, pratica
nacionalismo econômico igualmente moderado, e conta com o apoio político de uma
coalizão de classes desenvolvimentista, geralmente formada por empresários
industriais, trabalhadores e burocracia pública. O capitalismo é liberal quando
pratica o laissez faire. Destas definições podemos distinguir no
capitalismo duas formas históricas de coordenar as ações dos agentes econômicos e assim
organizar o capitalismo: a forma desenvolvimentista e a liberal.
Em todos os países a revolução industrial e
capitalista – o momento fundamento na afirmação de uma Nação – aconteceu no quadro do desenvolvimentismo. Em países
como o Reino Unido e a França (que realizaram cedo essa revolução industrial), seu
capitalismo tornou-se liberal em meados do século XIX, voltou a ser
desenvolvimentista no após-guerra, na sua Era Dourada, e regrediu para o
neoliberalismo a partir dos anos 1980.
Já nos países que realizaram sua revolução industrial
mais tarde, como foi o caso dos EUA, em meados do século XIX, e do Brasil, já
no século XX, o capitalismo se tornou liberal respectivamente nos anos 1980 e nos
anos 1990.
Hoje somos levados a crer que o capitalismo nos
Estados Unidos foi sempre liberal, mas isto é falso. O capitalismo americano só
se tornou liberal a partir de 1980. Antes, o peso do republicanismo assim como o
nacionalismo econômico foram grandes nos Estados Unidos desde os Founding
Fathers; o país manteve elevadas tarifas alfandegárias até 1939, o papel do
Estado foi sempre crucial no desenvolvimento tecnológico, e o Banco Mundial,
controlado pelos Estados Unidos, foi o maior centro de irradiação do
desenvolvimentismo até 1980. Com a dominação neoliberal e individualista que
ocorre a partir de então, o republicanismo foi colocado de lado e teve início a
crise moral e política, e a divisão radical da sociedade americana, que até os
anos 1960 era impressionantemente coesa.
O papel dos
economistas
Nesta conversão para o
neoliberalismo o papel dos economistas foi importante. Como a ciência econômica
é a ciência dos mercados, os economistas tendem a professar o liberalismo
econômico. Foi assim com os economistas clássicos, e é hoje assim com os
economistas da escola austríaca e os da escola neoclássica. São eles os
economistas ortodoxos que, com suas teorias abstratas, hipotético-dedutivas, se
sentem legitimados em sua defesa do mercado e de uma ciência pura.
Nos anos 1930, porém,
graças à revolução representada pela teoria keynesiana e ao surgimento, na
década seguinte, do desenvolvimentismo clássicos, a profissão se tornou pela
primeira vez dominantemente desenvolvimentista. E tivemos então os acordos de Bretton Woods e a Era Dourada do
capitalismo. Um grande momento de crescimento, estabilidade financeira,
impostos fortemente progressivos e diminuição das desigualdades. A partir,
porém, da virada neoliberal, a escola neoclássica voltou a ser dominante.
No Brasil, a revolução
industrial e capitalista ocorreu entre 1930 e 1980. A renda cresceu
extraordinariamente, a uma taxa por habitante de 4% ao ano, a economia
brasileira se industrializou, e o catching up se tornou realidade na
medida que a distância da renda por habitante brasileira em relação à dos
países ricos diminuiu. Os políticos e o economistas brasileiros tinham então
como lema a mudança estrutural, a industrialização.
Por outro lado, o fato de
nos países centrais a macroeconomia keynesiana – uma teoria desenvolvimentista
porque defensora de uma intervenção moderada do Estado – haver se tornado
dominante reduziu a pressão da ideologia do laissez faire sobre as
elites econômicas e os políticos e economistas brasileiros. Possibilitou também
que o centro imperial – que sempre se opusera à industrialização da periferia –
abrandasse essa pressão, favorecendo o desenvolvimento do Brasil.
Depois da Era Dourada
A Era Dourada do
capitalismo terminou em meados dos anos 1970, quando as economias ricas,
principalmente a americana e a britânica, enfrentaram uma crise de baixo crescimento
e queda da taxa de lucro.
Surge, então, uma nova e
estreita coalizão de classes neoliberal formada por rentistas e financistas –
um pacto político informal que contou, naturalmente, com o apoio dos
economistas portadores de doutorado nos Estados Unidos e no Reino Unido, os
novos intelectuais orgânicos do capitalismo. A nova narrativa neoliberal –
formulada por intelectuais eminentes, principalmente economistas – revelou-se
uma narrativa forte que criticava os erros cometidos pelos governos
desenvolvimentistas anteriores, atendia aos interesses da coalizão
financeiro-rentista, e foi propelida pelo colapso do projeto comunista e da
União Soviética.
Nos anos 1990 o
neoliberalismo se tornou hegemônico – a terra, agora, “era plana”, uma única
verdade valia agora para todo o globo terrestre. E continha, naturalmente, uma
promessa. As “reformas” trariam ao mundo a prosperidade, a estabilidade e o
bem-estar.
Os modelos matemáticos da
teoria neoclássica (a principal escola liberal de economia) deram justificativa
“científica” para as reformas neoliberais – a liberalização comercial e
financeira, as privatizações de monopólios públicos, a desregulação
generalizada dos mercados. Reformas que em pouco tempo mudaram o regime de
política econômica do mundo rico. O qual, sob o comando dos Estados Unidos, não
teve dúvida em procurar impô-las aos países periféricos como o Brasil. Para isso
usaram como instrumentos o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, e a
Organização Mundial do Comércio, e se valeram da debilidade desses países causada
pela crise da dívida externa dos anos 1980.
O neoliberalismo no Brasil
O Brasil se rendeu à nova
verdade em 1990. Nesse ano realizou a reforma comercial, em 1992, a reforma
financeira, em 1995, as privatizações dos serviços públicos monopolistas, e, em
1999, a flutuação do Real, que até então obedecia ao regime de
minidesvalorizações. Dessa maneira, seu regime de política econômica mudou de
desenvolvimentista para liberal. Algo que aconteceu também em toda a América
Latina e na África. A grande exceção foram os países do Leste da Ásia, que,
como não exportavam commodities, já eram economias voltadas para a exportação
de bens manufaturados.
Estava então ocorrendo um
processo real de globalização causado pela diminuição dos custos dos
transportes e das comunicações, enquanto os países periféricos de renda média
como o Brasil estavam fazendo sua transição para a democracia. Os Estados
Unidos, exercendo seu papel de líder do Ocidente, transformou os dois fatos em
dois projetos: o projeto da “globalização” através do qual todas os mercados
nacionais se abririam e os Estados-nação perderiam relevância, e o projeto da
“democracia liberal” que tornaria todos os países democráticos
independentemente de seu grau de desenvolvimento econômico.
Os dois projetos eram
irrealistas e fracassaram. O mundo rico estava certo que seria o grande
vitorioso da globalização, mas os verdadeiros vencedores foram a China e, mais
recentemente, também a Índia. Quanto à proposta de tornar a democracia liberal
dominante no mundo periférico, os Estados Unidos a adotaram em torno de 1980
como uma estratégia para evitar o surgimento de líderes políticos
nacionalistas. Também fracassaram. Continuaram a surgir lideres nacionalistas
na periferia, e alguns deles, como Lula no Brasil, os Kirchner na Argentina,
Erdogan na Turquia, Evo Morales na Bolívia, e Rafael Correa no Equador foram
razoavelmente bem-sucedidos. Houve também grandes fracassos como o ocorrido na
Venezuela de Chávez e Maduro.
Os países periféricos mais
desenvolvidos como o Brasil lograram fazer a transição para uma democracia
razoavelmente consolidada, mas o fizeram a partir de suas próprias capacidades.
Quando aconteceu o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, esse grave ataque à
democracia teve o apoio dos Estados Unidos mostrando como é vazia sua proposta
de democratização. Muitos países mais pobres, que ainda não completaram sua
revolução capitalista, também se tornaram democráticos, mas sua democracia se
mostrou instável, antes fruto de uma pressão externa do que de uma demanda
interna.
No Brasil, onde a transição
democrática ocorreu em 1985, tanto os
governos de centro-direita quanto de centro-esquerda não lograram retomar o
crescimento que havia sido interrompido em 1980. A transição democrática foi
beneficiada pelas crises da dívida externa e da alta inflação inercial
iniciadas em 1980, mas o governo Sarney (1985-1990), marcado por um
desenvolvimentismo incompetente, foi incapaz de resolver os dois problemas.
A eleição de um governo neoliberal, no final de 1989,
marcou o fracasso desse populismo fiscal e a mudança do regime de política
econômica para o liberalismo econômico. Desde 1990 esse regime de política
econômica é dominante no Brasil.
Nos anos de governo do Partido dos Trabalhadores
(2003-2016), ainda que se tenha procurado adotar políticas industriais e se
promoveu o aumento necessário naquele momento do salário mínimo, o liberalismo
econômico continuou dominante. Houve apenas uma tentativa, em 2011, de retornar
ao regime desenvolvimentista, mas foi uma tentativa mal concebida e logo
abandonada.
O regime de política
econômica liberal que preside o Brasil desde 1990 foi caracterizado pelo
populismo econômico – algo diferente do populismo político. O populismo
político implica a existência de um líder político que logra estabelecer uma
relação direta com o povo sem a intermediação das ideologias e os respectivos
partidos políticos. O populismo econômico significa gastar irresponsavelmente
mais do que se ganha. Se quem gastar for o país como um todo, haverá déficits
crônicos em conta-corrente e o populismo será cambial. Se for o Estado que
gasta de forma irresponsável e incorre em déficits públicos crônicos teremos o
populismo fiscal.
Em consequência dessas duas
formas de populismo, dos dois respectivos déficits, e do fato que a abertura
comercial em 1990 desmontou o mecanismo que neutralizava a doença holandesa, o
país ficou preso em uma armadilha de juros altos e de câmbio apreciado que
tornaram as empresas industriais não-competitivas e inviabilizaram seus
investimentos. Em consequência apenas dos déficits públicos, que também se
deveu à captura do Estado de um lado por rentistas e financistas e, de outro,
por uma burocracia pública privilegiada, a poupança pública que existia nos
anos 1980 foi transformada em despoupança, e os necessários investimentos
públicos na infraestrutura do país deixaram de ser realizados.
Os resultados econômicos da dominação neoliberal foram
lamentáveis para o Brasil. Entre 1980 e 2019 a taxa de crescimento por
habitante foi de apenas 0,8% ao ano, enquanto no conjunto dos países
periféricos foi de 3%. Nos países ricos, foi de 1,9%. Os bens manufaturados
representavam 62% do total das exportações; hoje representam apenas 30%.
Depois da
crise de 2008
Eis senão quando a crise
financeira global de 2008 joga água fria na ortodoxia liberal. De repente o
capitalismo nos países centrais, que desde meados dos anos 1990 comemorava “a
grande moderação”, se se via diante de uma crise que a teoria dominante dizia
“não poder acontecer”. Os governos, pragmáticos ou sem alternativa, reagiram
com forte expansão fiscal. Evitou-se, assim, que a crise assumisse um caráter
incontrolável.
Em seguida, porém, os
governos se retraíram, voltaram à ortodoxia fiscal, e as economias centrais
passaram a crescer lentamente. Quem respondeu
de forma radical à quase-estagnação foram os bancos centrais. Os bancos dos
Estados Unidos, do Reino Unido, da Europa e do Japão passaram a emitir moeda
comprando títulos públicos e privados – e os
mercados financeiros usaram um eufemismo para denominar essa emissão: quantitative easing. Não houve, porém,
qualquer aumento da inflação.
Ao mesmo tempo, diante da armadilha da liquidez,
baixaram mais e mais as taxas de juros, que, no caso do Japão, do Banco Central
Europeu e de vários outros países ricos se tornaram negativas. Mas as taxas
negativas de juro tiveram pouca influência em aumentar os investimentos e levar
os países ricos a crescer. Apenas os Estados Unidos, onde as taxas de
crescimento continuaram razoáveis, não recorreram aos juros negativos. Já a
Europa foi profundamente abalada pelo equívoco que foi a criação do euro. Um
erro tão grande quanto foi um grande acerto ter criado a União Europeia.
Desde 2008 a economia
mundial está em “estagnação secular” – uma palavra que não significa zero
crescimento, mas demanda agregada frouxa, taxas de juros baixas, e taxas de
investimento e de crescimento igualmente baixas. Agora significa também emissão
de moeda sem inflação e taxas negativas de juros.
Os rentistas, tanto os
pequenos quanto os grandes, estão pagando o custo da crise de 2008 com os juros
negativos que já alcançam cerca de um terço dos ativos financeiros das
famílias. Os pequenos rentistas e os aposentados protestam; os grandes
rentistas estão sendo obrigados a rever sua fé no liberalismo econômico radical
que apoiaram nos últimos 40 anos. Um capitalismo que nesse período se tornou um
capitalismo financeiro-rentista, estabeleceu o liberalismo econômico como
religião, o combate à inflação como the only game in town,e
tornou os muito ricos ainda mais ricos. De repente, porém, não obstante a
prioridade que sempre deram a taxas nominais de juros relativamente altas e a
inflação baixa para lograrem o aumento dos juros reais, estes se tornaram
negativos.
Muitos ainda se sentem
surpreendidos pelo caráter não inflacionário da emissão de moeda, porque
acreditam ainda na fábula conhecida pelo nome de “teoria monetarista da
inflação”. Uma teoria que se tornou dominante com a virada neoliberal de 1980, mas
os bancos centrais, que são mais comprometidos com a realidade e precisam
apresentar resultados, logo a abandonaram. Substituíram a teoria monetarista
por uma estratégia pragmática de metas de inflação, e voltaram a aumentar a
taxa de juros toda vez que a demanda se aquece e a inflação ultrapassa a meta. Diante
deste fracasso teórico, os economistas neoclássicos deixaram de falar na teoria
monetarista, literalmente a esqueceram, mas preservaram o coração neoclássico
de sua visão da teoria econômica (o modelo do equilíbrio geral e o modelo das
expectativas racionais) e sua política macroeconômica – a ortodoxia liberal –
voltada para a austeridade fiscal.
A revisão da teoria econômica
Estagnação secular, emissão
de moeda sem causar inflação, juros negativos; a economia capitalista e a
teoria econômica estão de pernas para o ar. Torna-se hoje necessário rever a
teoria econômica. Os neoclássicos com seu liberalismo econômico radical não têm
uma explicação. Os desenvolvimentistas keynesianos, que defendem intervenção
moderada do Estado na economia, veem confirmada a tendência à insuficiência de
demanda que existe no capitalismo, mas isto não explica juros tão baixos.
Os marxistas, que não fazem
propostas de política econômica, mas fazem análises muitas vezes instigantes do
capitalismo, lembram que a taxa de juros é o preço que os capitalistas ativos
estão dispostos a pagar aos rentistas pelo empréstimo do seu dinheiro. Mas
nesses termos as taxas de lucro deveriam ter caído para que as taxas de juros
tivessem caído como caíram. E não foi isso que aconteceu. As taxas de lucros no
capitalismo desenvolvido continuam satisfatórias, não obstante a insuficiência
de demanda. Isto é possível porque as grandes empresas não param de realizar
fusões e aquisições e seu poder de monopólio é hoje enorme.
Os novos-desenvolvimentistas têm uma explicação: o
excesso de capitais, a brutal profusão de capitais que caracteriza hoje o
capitalismo financeiro-rentista. John K. Galbraith teve uma intuição desse fato
quando, em seu grande livro, O Novo Estado Industrial (1967), afirmou
que o capital deixou de ser o fator estratégico de produção porque se tornara
abundante e estava sendo substituído pelo conhecimento técnico-organizacional.
Mas a causa maior para a profusão de capitais de hoje
é um fato histórico novo: os dois mecanismos que extinguiam os capitais – as
grandes crises e as grandes guerras – não acontecem mais desde 1929 e 1945. Desde
então o estoque de capitais não para de crescer pela simples acumulação de
ativos financeiros. Ativos supostamente líquidos que não são mais expressos na
propriedade de fábricas, plantações, edifícios, equipamentos de infraestrutura,
de ativos tangíveis, mas através de títulos de crédito dos mais variados tipos.
Um capital móvel, que não tem qualquer valor em si
mesmo, que vale pelo que rende a cada momento, serve de base para a
financeirização, para o aumento do poder dos financistas e o aumento da
participação das empresas financeiras na renda nacional. Um capital que não
está mais sujeito à desvalorização que geralmente ocorria devido ao
envelhecimento dos empresários e a incompetência dos herdeiros. Nesses
capitalismo financeiro-rentista, os herdeiros ou rentistas continuam
incompetentes, mas suas empresas não se depreciam mais porque são absorvidas
pelas corporações e geridas por administradores profissionais.
Nesse capitalismo os lucros
são altos, porque são lucros monopolistas. Não obstante, as empresas investem
pouco, porque não existem boas oportunidades de investimento voltados para a
expansão da demanda. Tanto assim que elas não reinvestem seus lucros no próprio
negócio, ou em algum setor paralelo no qual tenham competência, mas compram
suas próprias ações ou distribuem dividendos, deixando o problema da aplicação
dos recursos para os acionistas.
O
nacionalismo de direita
No mundo rico a crise política do neoliberalismo ou da
globalização como projeto tornou-se clara em 2016, oito anos depois da crise
global. Como explicar essa crise? As elites neoliberais e seus economistas
estão essencialmente equivocados a respeito. Eles dizem que o governo Trump e o
Brexit, assim como o nacionalismo de direita em países periféricos como a
Polônia e a Hungria são manifestações de um “populismo” que ameaça a democracia
liberal.
Eu prefiro entender esses líderes e os movimentos
políticos que lhes dão suporte como nacionalistas de direita. São nacionalistas
econômicos nos Estados Unidos e no Reino Unidos, nacionalistas também étnicos
na Polônia e Hungria; são conservadores porque pretendam falar em nome do povo embora
defendem os interesses dos ricos, e porque, no plano comportamental, rejeitam
os direitos das mulheres ao seu próprio corpo, os direitos dos LBGTI e dos
povos indígenas.
Meu desacordo maior, porém, não é quanto à definição de
Trump e do Brexit como populistas, desde que fique claro seu nacionalismo
econômico. Meu desacordo é quanto à afirmação que eles estão voltados contra a
democracia. Não, eles estão voltados fundamentalmente contra o neoliberalismo, porque
nos Estados Unidos e no Reino Unido não foi a democracia que fracassou, mas o
projeto neoliberal da globalização. Não apenas porque o grande vitorioso foi a
China, mas também porque os políticos nacionalistas se deram conta que podiam
contar com o apoio eleitoral dos trabalhadores brancos da baixa classe média que
foram os grandes prejudicados pelo neoliberalismo – aqueles cujos salários
estagnaram ou mesmo caíram em termos reais.
A democracia nesses países é uma democracia
basicamente consolidada porque interessa à grande maioria, inclusive às classes
médias, mas interessa principalmente às classes populares para quem o sufrágio
universal foi uma grande conquista. Uma sociedade é minimamente democrática
quando além de garantir os direitos civis, assegura o voto a todos os cidadãos.
A democracia interessa menos às elites financeiro-rentistas e neoliberais, que
buscam sempre limitar o poder dos eleitores, mas mesmo elas hesitam em defender
a volta a regimes autoritários. Os líderes do nacionalismo de direita não são modelos
de políticos democráticos, mas seu nacionalismo tem uma base popular que eles
não ignoram.
Os ideólogos neoliberais falam em “ameaça à democracia
liberal” porque dão ao sistema econômico e político neoliberal o nome de
“democracia liberal”. Esses ideólogos evitam usar a expressão neoliberalismo, e
quando a usam, o fazem criticamente, colocando a palavra entre aspas. Em seu
lugar, falam o tempo todo em “democracia liberal” que seria a maravilhosa
realização da boa sociedade. Uma sociedade que eles entendem como ideal, mas,
como sabemos, é uma forma de organização social instável e excludente.
Do medo ao
ódio
A reação da direita nacionalista ao neoliberalismo que
vemos no mundo rico tem uma base lógica: o fracasso do projeto de globalização.
Já a associação da extrema-direita neofacista ao neoliberalismo no Brasil é uma
associação oportunista mais difícil de explicar.
A economia brasileira também sofreu o impacto da crise
financeira global de 2008, mas a crise atual só começou em 2013 e perdura até
hoje. Uma crise de longa duração que começou pelo lado político, mas já então refletia
a insatisfação de quase todos com a quase-estagnação econômica iniciada nos
anos 1980. Em 2013 aconteceram grandes manifestações populares no Brasil que
deram início a essa crise. Elas refletiram a insatisfação da classe média
tradicional, tanto do seu ramo burguês como do ramo tecnoburocrático ou
gerencial.
No quadro de um sistema econômico quase-estagnado essa
classe média foi espremida entre as elites financeiro-rentistas e os
trabalhadores. Por um lado, pelos muito ricos, cuja riqueza não parou de
aumentar; de outro, pelas classes populares que foram beneficiadas, primeiro
pela estabilização da alta inflação inercial em 1994, e, segundo, pelas
políticas sociais que o governo Cardoso (1995-2003) e principalmente os
governos do PT (2003-2016) adotaram. A liberalização comercial e financeira, as
desregulamentações e privatizações, e os altos juros beneficiaram diretamente
os muito ricos, enquanto as políticas sociais e o aumento do salário mínimo
beneficiaram os trabalhadores e os pobres. Nos dois casos, a alta classe média
ou classe média tradicional ficou esquecida.
Ocorre então, no Brasil, um
terrível processo de polarização política. A sociedade brasileira, que se unira
no início dos anos 1980 para construir uma grande coalizão de classes voltada
para a democracia e o desenvolvimento social, de repente se viu tomada pelo
ódio que começou nas classes médias. E que tinha como principais objetos o PT e
Lula.
Percebi esse fato já em
2014 com grande preocupação. Eu nunca havia visto o ódio na política brasileira.
Na crise que antecedeu o golpe militar de 1964, eu vi medo nas classes médias.
Medo do comunismo, que o presidente João Goulart não justificava, mas que a
Revolução Cubana de 1959 e a radicalização da esquerda brasileira explicavam. Agora,
porém, o problema não era o medo, mas o ódio. Ódio que é incompatível com a
política e a democracia. A política democrática é a luta entre adversários, não
é a luta entre inimigos. A democracia supõe a alternância de poder; o ódio, a
supressão, a eliminação do inimigo.
Ao mesmo tempo aconteceram dois
grandes escândalos: o escândalo do Mensalão, em 2006 que se estendeu até o
julgamento dos principais indiciados em 2012, e os escândalos revelados pela
operação Lava Jato a partir de 2014. Em ambos estava envolvido o PT, mas
estavam também envolvidos praticamente todos os demais partidos políticos. No
entanto, o juiz e a força tarefa de procuradores sediados em Curitiba que
conduziram a operação Lava Jato perceberam que além do apoio popular
conseguiriam o apoio das elites econômicas se concentrassem seus esforços na
acusação e condenação de Lula de forma a inviabilizar sua candidatura à
presidência. Foi o que fizeram e tiveram êxito. Só agora está ficando claro
para todos que eles não estavam trabalhando pela justiça, mas para sua promoção
pessoal.
Alguns anos antes, em 2010,
Lula realizara um grande governo e terminara sua presidência de maneira
triunfal. Contava então com a aprovação de 84% da população, inclusive das
elites econômicas. Mas deixou como herança para Dilma Rousseff uma taxa de
câmbio brutalmente apreciada. Esse fato, a imediata redução da taxa de
crescimento e mais uma sequência de erros econômicos e políticos praticados
pela nova presidência fizeram que já no meio do seu segundo ano de governo ela
houvesse perdido todo o apoio das elites econômicas que, nas eleições de 2014,
se uniram às classes médias para vencê-la. Foram derrotados.
A vitória do PT então revelou-se,
porém, uma vitória de Pirro, porque ao mesmo tempo que a presidente não parava
de cometer erros, tornou-se claro nos primeiros dois meses de 2015 que o país
estava entrando em grave crise fiscal e gravíssima recessão. E que a crise política
assumia um novo aspecto. Constitui-se, então, uma impressionante hegemonia
ideológica neoliberal. Algo que eu também nunca havia visto antes. No momento
em que o neoliberalismo entrava em profunda crise no mundo rico, se tornava
dominante no Brasil
As consequências da crise
política e da hegemonia neoliberal foram o impeachment de 2016 e a eleição de
Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Para lograr o impeachment o então
vice-presidente Michel Temer, presidente do PMDB, solicitou a intelectuais liberais
que produzissem um plano rigorosamente neoliberal para seu partido, o PMDB,
para, assim, lograr o apoio das elites neoliberais financeiro-rentistas. Assim conseguiu
o impeachment, e assumiu a presidência. Em seguida, o candidato Jair Bolsonaro,
que também nunca foi um neoliberal, mas um político de extrema-direita,
anunciou antes das eleições o nome do seu futuro ministro da fazenda, um
economista fundamentalista de mercado formado pela Universidade de Chicago, obtendo
assim também o apoio das classes médias e das elites.
Temos, assim, no Brasil, um
estranho casamento, entre um nacionalista de extrema-direita e o
neoliberalismo, enquanto no mundo rico o nacionalismo de direita se opõe ao
neoliberalismo. Este último pode ser detestável, mas tem uma lógica; significa
o reconhecimento do fracasso do projeto de globalização e a defesa do
nacionalismo econômico.
Já no caso do Brasil, a
lógica é meramente oportunista. Para o presidente foi uma forma de obter o
apoio das elites econômicas. Para estas elites, uma forma de obter as reformas
que as interessam – que colocam todo o peso do
ajuste necessário nas costas dos assalariados, não importando que em troca o
governo possa cometer violências contra direitos civis, a Universidade, o
ensino fundamental, a cultura, a saúde e a proteção do ambiente.
Algumas dessas reformas
econômicas são necessárias, como a da previdência e a reforma trabalhistas, mas
poderiam ter sido menos desfavoráveis aos trabalhadores; outras são meramente
neoliberais como foi a emenda constitucional que estabeleceu um teto para
despesa pública independente do crescimento da população e do PIB.
Existe alguma perspectiva
de que esse quadro sombrio que acabei de descrever tanto no plano mundial
quanto no caso do Brasil possa ser superado? É possível pensar em um
desenvolvimentismo progressista e ambiental? É possível que parte da alta
classe média que tem servido de base para o neoliberalismo, e da baixa classe
média branca, que tem servido de base para o nacionalismo de direita, se deem
conta do quanto vêm sendo prejudicadas tanto pelo neoliberalismo quanto pelo
nacionalismo de direita e se somem às classes populares e os intelectuais
progressistas?
As dificuldades maiores, no
mundo rico, são a desigualdade crescente, a incapacidade do mercado de regular
a economia, e o problema da imigração que leva a baixa classe média branca a se
sentir ameaçada e a votar em candidatos de direita. As dificuldades maiores no
Brasil são a alta preferência pelo consumo imediato expresso no populismo
cambial e no populismo fiscal e a incapacidade crescente das elites econômicas
e das classes médias de se identificarem com a Nação dificultando que o país volte
a ter um projeto nacional de desenvolvimento. E há uma dificuldade básica:
falta ao mundo rico e ao Brasil uma teoria econômica e uma narrativa política
que deem conta dos desafios que as sociedades modernas hoje enfrentam – uma sociedade que tende a ser global, mas continua a ser principalmente
nacional.
*Luiz Carlos Bresser é professor
emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
