Um mundo que perdeu o coração

Imagem: Hosny salah
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Por LEONARDO BOFF*

Israel matou mais de 207 funcionários da ONU, bombardeou hospitais, escolas, universidades, mesquitas e destruiu 80% de Gaza

Acompanhando o atual curso do mundo, seja a nível internacional, seja a nível nacional, notamos um verdadeiro tsunami de ódio, de mentiras, de exclusões, de verdadeiros genocídios e extermínios em massa como na Faixa de Gaza, que nos deixa perplexos. Até onde pode chegar a maldade humana? Não há limites para o mal. Ele pode chegar até o auto-extermínio dos seres humanos.

Pensando em nosso país, as mortes, os assassinatos de jovens negros nas comunidades periféricas, as crianças vítimas de balas perdidas seja da polícia (que mata) seja de facções criminosas, os diários feminicídios e as centenas de estupros de meninas e de mulheres, o esquartejamento de sequestrados, deixam uma cidade inteira como o Rio de Janeiro continuamente sob o medo e ameaças. Está perdendo todo o seu glamour. Assim sucede em quase todas as grandes cidades de nosso país, tido por Sérgio Buarque de Holanda como “cordial” (Raízes do Brasil).

Entretanto, a maioria dos intérpretes não leu o rodapé ao termo “cordial” onde ele observa: “a inimizade pode ser tão cordial como a amizade, nisso que uma e outra nascem do coração” (n. 6). Portanto, o brasileiro está mostrando, especialmente, sob o governo do Inelegível, a inimizade entre amigos e nas famílias, a banalidade do palavrão, dos maus costumes e da mentira: tudo sendo “cordial” por nascer de um coração “cordial”(perverso).

Ao nível internacional o cenário se revela ainda mais atroz. Com o apoio irrestrito e cúmplice dos EUA e vergonhoso da Comunidade Europeia que traiu seu legado dos direitos do cidadão, da democracia e de outros valores civilizacionais, estão se perpetrando verdadeiros crimes de guerra contra 40 mil civis e inegáveis genocídios de cerca de 13.800 crianças inocentes na Faixa de Gaza, todos pelo governo de extrema direita de Benjamin Netanhyau. Trata-se de uma retaliação totalmente desproporcional a outro crime, não menos horrendo do grupo terrorista Hamas.

Benjamin Netanhyau permite tais genocídios porque não tem coração, não se coloca no lugar das mães e das vítimas inocentes. Não lhe importa se para matar um líder do Hezbollah tenha que, num bombardeio, vitimar dezenas de outras pessoas. O ódio o tornou cruel e sem piedade. Crimes semelhantes estão ocorrendo na guerra que a Rússia move contra a Ucrânia com milhares de vítimas, com a destruição de uma antiga cultura-irmã e com incontáveis vítimas inocentes. Paremos por aqui nessa via-sacra de horrores que tem mais estações do que aquela do Filho de Deus carregando sua cruz.

A pergunta é como isso ocorre à luz do dia sem que haja uma autoridade reconhecida que pudesse parar esse extermínio de gente e de inteiras cidades? Qual a raiz subjacente a esta iniquidade? A história no passado conheceu extermínios, até feitos em nome de Deus como no terrível livro dos Juízes da Bíblia judaico-cristã e em tantas guerras de outrora. Mas nós as excedemos em crueldade em todos os níveis.

Israel matou mais de 207 funcionários da ONU, bombardeou hospitais, escolas, universidades, mesquitas e destruiu 80% de Gaza. Hoje corremos o sério risco de uma guerra total entre as potências militaristas em disputa pela hegemonia do mundo, o que realizaria o princípio de nossa autodestruição.

Sustendo a interpretação de que tudo isso se tornou possível porque perdemos o coração, o esprit de finesse (a gentileza de Pascal) e a dimensão da anima (a sensibilidade de C.G. Jung). A cultura moderna se construiu sobre a vontade de poder como dominação, usando a razão, desgarrada do coração e da consciência, traduzida em tecno-ciência para o nosso bem e mais para fins bélicos.

Como notava o Papa Francisco na Laudato Sì: “o ser humano não foi educado para o reto uso do poder… porque não foi acompanhado quanto à responsabilidade, aos valores e à consciência” (n.105). A razão estabeleceu seu despotismo na forma de racionalismo, rebaixando outras formas de conhecer e de sentir a realidade. Assim o sentimento (pathos) foi recalcado no falso pressuposto de que atrapalharia a objetividade da análise. Hoje é evidente que não há objetividade absoluta. O sujeito pesquisa com seus pressupostos e com seus interesses de forma que sujeito-objeto estão sempre imbricados.

O fato é que a dimensão do coração e da cordialidade foi reprimida. Abstraindo do cérebro reptiliano que é o mais antigo, o cérebro límbico constitui a nossa real base fundamental. Ele surgiu com os páleo-mamíferos entre 150-200 milhões de anos atrás e nos mamíferos superiores há 40-50 milhões de anos com os quais temos o condomínio. Somos mamíferos racionais, portanto, seres de sentimento.

O cérebro límbico é a sede de nossas emoções, seja de ódio, de ira e outras negatividades, mas principalmente nele se alberga o mundo das excelências, do amor, da amizade, da empatia, dos valores, da ética e da espiritualidade. O cérebro neocortical irrompeu com o ser humano há 7-8 milhões de anos e culminou há cerca de 100 mil anos com o surgimento do homo sapiens do qual somos herdeiros. É o mundo da razão, dos conceitos, da linguagem, na ordenação lógica das coisas.

Portanto, ele compareceu tardiamente. Mas com seu desenvolvimento fundou o reino da razão. Mas importa não esquecer que se trata de um único cérebro que envolve estas três dimensões sempre relacionadas (na versão do cérebro triuno de MacLean: reptíliano, límbico, neocortex). A concentração excessiva na racionalidade com a qual dominamos o mundo, a mulher (patriarcado) e a natureza à custa do sentimento, causou os desacertos socio-históricos, cujas consequências nefastas estamos colhendo.

É urgente unir o cérebro neocortical (razão/logos) com o límbico (coração/phatos), o coração enriquecendo os projetos racionais com humanidade e sensibilidade; inversamente investir razão, vale dizer, conferir direção e justa medida ao mundo dos sentimentos e do coração. Só assim encontraremos o equilíbrio necessário. Porque afogamos o sentimento de mútua pertença, de que todos, sem exceção, somos humanos, nos transformamos em cruéis genocidas (face à nossa espécie) e ecocidas (face à natureza).Temos escravizado,submetido e discriminado nossos irmãos e irmãs.

Pelo fato de não termos resgatado a dimensão do coração, do espírito de finura (Pascal), da sensibilidade essencial (anima) entrou em falência o humanismo ocidental, liberal-capitalista. A assim chamada “ordem baseada em regras” (que sempre mudam conforme as conveniências dos poderosos) se mostrou uma falácia.

Como advertiu uma alta funcionária de organismos da ONU, Chelsea Ngnoc Minh Nguyen: “A violência e a brutalidade dos últimos anos devem nos impulsionar a todos – seja no Sul ou no Norte, no Oriente ou no Ocidente – a realizar uma introspecção honesta e profunda sobre o tipo de mundo em que queremos viver”(IHU 4/10/24).Não vejo outra alternativa, além de devermos mudar de paradigma civilizacional (do domus/dono para o frater irmão e irmã) senão fundarmos um novo humanismo,enraizado na nossa própria natureza.

Nela encontramos as constantes antropológicas, intrínsecas à nossa humanidade: o amor incondicional, o cuidado essencial, a cooperação, a empatia, a compaixão, o reconhecimento do outro, como nosso semelhante, o respeito à natureza e à Terra que tudo nos dão,o encantamento face ao belo e bom e a reverência face ao Mistério.Tais valores seriam o fundamento de um outro mundo possível e necessário.Caso contrário, vamos ao encontro do inimaginável.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Cuidar da Casa Comum: pistas para protelar o fim do mundo (Vozes). [https://amzn.to/3zR83dw]


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