Uma disputa atípica e virtualizada

Imagem: Thelma Lessa da Fonseca
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por NICOLE GONDIM PORCARO*

A pandemia acentuou um cenário que beneficia as campanhas eleitorais daqueles que já estão consolidados no poder, tanto nas redes quanto nas ruas

Desde março especula-se como as restrições sanitárias e o isolamento social decorrentes da pandemia impactariam as eleições municipais de 2020, mas só após o início da campanha eleitoral no fim de setembro foi possível observar a abrangência das mudanças em relação às eleições anteriores. O fato é que as desigualdades que permeiam a sociedade, e refletem-se em uma presença baixíssima de minorias políticas representadas no poder institucional, acentuaram-se no contexto atípico destas eleições.

A forma mais tradicional e barata de se fazer campanha política, o olho no olho, nas ruas, especialmente importante na esfera municipal, está mais difícil e perdeu espaço, enquanto a arena virtual ganhou protagonismo. A cientista política Bruna Camilo relata que, além de haver menos pessoas nas ruas, as que se encontram ali “estão muito retraídas”, pouco dispostas a conversar e até mesmo a aceitar os panfletos distribuídos, devido às preocupações sanitárias.

Esse contexto prejudica a construção de uma identificação entre candidato e eleitor que só o corpo a corpo permite, como explica a jornalista Ana Karenina Berutti : “manter o distanciamento físico acaba impondo um distanciamento entre a candidata e a eleitora, coisa que não deve acontecer sob pena de afastar a eleitora da candidata, manter essa candidata num outro patamar, nesse caso “intocável” literalmente.”

Além disso, a impossibilidade de se realizar reuniões com muitas pessoas, associações e lideranças locais, restringe a apresentação de novas candidaturas para grupos sociais estratégicos. Nesse contexto, as candidaturas mais conhecidas largam com uma vantagem ainda maior que a usual justamente por já possuírem uma base eleitoral formada e relacionamento com lideranças políticas comunitárias que permitem que suas ações de propaganda eleitoral locais, como comícios e caminhadas, sejam mais bem recebidas. Já as candidaturas menores e novatas na política – o caso da maioria das mulheres, negros e jovens, por exemplo – têm encontrado grande dificuldade em estabelecer um diálogo em espaços nos quais ainda não são conhecidas.

Assim, resta às candidaturas um foco maior na internet. Ocorre que, sendo as redes espaços muito menos democráticos do que se imaginava, a disputa por visibilidade pelas campanhas se vê determinada pelo capital disponível para realização do impulsionamento de conteúdo nas redes sociais. Quanto mais dinheiro a candidatura tem para investir no impulsionamento, mais eficaz se torna a atuação dos algoritmos: à medida que se paga mais, maior o alcance e mais delimitado o escopo do público alvo, ou seja, mais efetivo o impulsionamento.

O próprio procedimento para realização do impulsionamento é extremamente complexo para leigos, e exige a criação de um site de hospedagem paga. E para a realização de uma campanha digital impactante e assertiva, é necessária a contratação de especialistas em comunicação política e marketing digital, aos quais poucas campanhas têm acesso.

A situação é um pouco melhor para as candidaturas de partidos cujas secretarias especializadas, como as da mulher, estão disponibilizando assessoria para a produção de conteúdo e distribuição de material. Mas, mesmo nesses casos, as disparidades sociais criam abismos na competitividade: a exclusão digital tem sido uma grande barreira para os candidatos e candidatas que não dominam bem as tecnologias e não possuem uma equipe própria para ajudá-los. Há relatos de candidatas que precisam de auxílio de filhos crianças e adolescentes para gerir a campanha das mães nas redes.

De certa forma, a campanha, para ser bem sucedida, ficou mais cara. Ter mais recursos tornou-se mais importante, amenizando os impactos das medidas judiciais e legais para uma distribuição mais igualitária dos fundos de financiamento público para mulheres e negros.

As candidaturas que possuem recursos próprios e doadores ricos continuam com uma grande vantagem – acentuada pela crise econômica. E, em circunstâncias tão adversas, os partidos políticos privilegiam ainda mais as candidaturas consideradas mais “competitivas”: as que buscam reeleição ou são mais conhecidas – em sua maioria, de homens brancos e ricos.

Estamos, portanto, diante de um cenário que beneficia as campanhas eleitorais daqueles que já estão consolidados no poder, tanto nas redes quanto nas ruas. Dados no Brasil e ao redor do mundo já indicavam como a pandemia trouxe efeitos desproporcionais, seja a partir de um recorte(s) de classe, raça ou gênero, acentuando todas as desigualdades já conhecidas, o que se reflete na disputa política. O ideal democrático é aquele no qual todos os cidadãos e cidadãs possam exercer seus direitos políticos, de votar e ser votado, em condições igualitárias. O que observamos hoje é que ainda estamos muito longe disso.

*Nicole Gondim Porcaro é mestranda em direito público na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Eduardo Soares Luciano Nascimento Andrew Korybko Paulo Nogueira Batista Jr José Dirceu Bruno Machado Priscila Figueiredo Alexandre Aragão de Albuquerque Daniel Costa Armando Boito Walnice Nogueira Galvão Marjorie C. Marona Paulo Fernandes Silveira Marilia Pacheco Fiorillo Antonio Martins Rafael R. Ioris Tadeu Valadares Michel Goulart da Silva Osvaldo Coggiola Vanderlei Tenório Luis Felipe Miguel Fábio Konder Comparato Heraldo Campos Maria Rita Kehl Daniel Brazil Rodrigo de Faria Eduardo Borges Paulo Sérgio Pinheiro Denilson Cordeiro Mariarosaria Fabris Bruno Fabricio Alcebino da Silva Lorenzo Vitral Thomas Piketty Ricardo Abramovay Leonardo Boff Leda Maria Paulani Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Airton Paschoa Flávio Aguiar Eliziário Andrade Luiz Roberto Alves Ricardo Antunes Leonardo Sacramento Daniel Afonso da Silva Ronald Rocha João Paulo Ayub Fonseca Caio Bugiato Yuri Martins-Fontes Michael Roberts Marilena Chauí Francisco de Oliveira Barros Júnior José Raimundo Trindade Igor Felippe Santos Otaviano Helene Manuel Domingos Neto Vinício Carrilho Martinez Jean Pierre Chauvin Dennis Oliveira João Sette Whitaker Ferreira Carla Teixeira Remy José Fontana Luiz Bernardo Pericás Fernando Nogueira da Costa José Micaelson Lacerda Morais José Machado Moita Neto Celso Frederico Antônio Sales Rios Neto João Adolfo Hansen Marcus Ianoni Sergio Amadeu da Silveira Tarso Genro Jorge Luiz Souto Maior Milton Pinheiro Marcos Silva Bernardo Ricupero Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Carlos Bresser-Pereira Andrés del Río Annateresa Fabris Paulo Capel Narvai Carlos Tautz Luiz Renato Martins João Lanari Bo Eugênio Trivinho André Márcio Neves Soares Slavoj Žižek Michael Löwy Ricardo Musse Everaldo de Oliveira Andrade Henry Burnett Boaventura de Sousa Santos Tales Ab'Sáber José Geraldo Couto Chico Alencar João Carlos Loebens Gerson Almeida Eugênio Bucci Liszt Vieira Manchetômetro Vladimir Safatle Jorge Branco Henri Acselrad Celso Favaretto Ladislau Dowbor Leonardo Avritzer Chico Whitaker Ari Marcelo Solon Anselm Jappe Francisco Pereira de Farias Valerio Arcary Érico Andrade Gabriel Cohn Kátia Gerab Baggio Gilberto Lopes Atilio A. Boron Renato Dagnino Eleutério F. S. Prado Sandra Bitencourt André Singer Bento Prado Jr. Lincoln Secco José Costa Júnior Alexandre de Freitas Barbosa Elias Jabbour Paulo Martins Salem Nasser Mário Maestri Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcelo Módolo Matheus Silveira de Souza Luiz Marques Ronald León Núñez Juarez Guimarães Flávio R. Kothe Benicio Viero Schmidt Ricardo Fabbrini Marcelo Guimarães Lima Samuel Kilsztajn Rubens Pinto Lyra Alysson Leandro Mascaro Luiz Werneck Vianna Gilberto Maringoni Antonino Infranca Afrânio Catani João Feres Júnior João Carlos Salles Valerio Arcary Luís Fernando Vitagliano Julian Rodrigues Francisco Fernandes Ladeira Dênis de Moraes José Luís Fiori Fernão Pessoa Ramos Claudio Katz Jean Marc Von Der Weid Berenice Bento Marcos Aurélio da Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ronaldo Tadeu de Souza Eleonora Albano

NOVAS PUBLICAÇÕES