Uma fraude ambulante

Imagem_ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ ROBERTO ALVES*

O senhor Decotelli já se ombreia ao que sentou na cadeira do MEC até há pouco, porque tenta dar “jeitinhos” ao seu currículo, quer pela fome de poder, quer porque deve imaginar que vive em tempo de ignorantes

As pessoas que ensinam e pesquisam no Brasil não têm motivos para ostentar títulos acadêmicos como objeto de disputa e desejo. O país desigual e injusto há séculos exigiu da maioria dos investigadores e investigadoras de ciências da natureza e da cultura a busca de bolsas e auxílios, a par da criação de filhos, da sustentação familiar, das disputas de projetos, das vaidades humanas, do trabalho em condições precárias e da obediência a prazos. Por isso mesmo, os títulos são documentos de trabalho, o que é suficiente.

Assim tem sido e deste modo têm completado seus ciclos de estudos muitos milhares de colegas, num esforço hercúleo que conta com a presença indispensável de fundações de amparo à pesquisa dos Estados, CNPq, Capes e outras linhas auxiliares de apoio acadêmico. Este país teve sucesso neste item de sua vida social a despeito de tudo o que se origina em suas desigualdades e injustiças sociais. Os dados estão sempre na ponta da língua de cada pessoa que pertence a esses grupos de trabalhadores intelectuais, mas citá-los não é o objetivo deste texto. Basta reconhecer o enorme esforço e a solidariedade deste campo intelectual, pois as universidades mais consolidadas foram formadoras das jovens universidades em todo o território nacional e para muito além do Brasil.

Esse esforço tem exigências, as quais comportam reparos e mudanças, mas também tem a dignidade de conservar valores. Um deles é a verdade dos resultados, transformada em dados e fatos postos nos currículos de trabalho acadêmicos, especialmente no Lattes-CNPq.. Os resultados das dissertações e teses não são objeto de ostentação, mas fenômenos da verdade a que chegam esforços e lutas. Passaporte para o trabalho da vida inteira.

O senhor Decotelli, novo ministro da educação, mentiu para a nação e para o presidente sobre seu título de doutor e sobre a orientação acadêmica recebida. Tanto a Universidad Nacional de Rosario quanto o suposto orientador de tese já abriram a verdade parda os que sabem ver, ler e ouvir. No caso da orientação, tão grave quanto o título, a resposta do Dr. Freitas à imprensa foi dúbia, talvez pela relação entre CNE e MEC, embora o primeiro seja instituição do estado brasileiro e não órgão do governo.  O fato é que não há nenhuma ingenuidade nesse fenômeno da narrativa de título e orientação. Há mentira, desapreço pelo trabalho duro de milhares de colegas brasileiros e estrangeiros e mera formulação de nomenclatura de títulos sem razão ou valor. Faltou honestidade intelectual e sobrou falsidade ideológica. O que resta ao M.e. Decotelli é o surgimento de bajuladores e oportunistas a arrumar desculpas históricas (isto é, ataques e injúrias generalizadas)  para justificar e normalizar o ato repulsivo de mentir sobre conquista acadêmica. Ou justificar em ritmo de bolerão choramingas: “todos erram neste mundo”.  Popularmente se diz “jogar sujeira no ventilador”. Há sempre candidatos a este posto.

Sabe-se que titulações de trabalho acadêmico passam ao largo, na história republicana, dos interesses imediatos da grande maioria do povo, da grande maioria dos legisladores e mesmo de muitos setores do executivo e do judiciário. Por isso mesmo, títulos se transformaram em trunfos, mitos, fetiches na história do Brasil. Eis que outra vez esse horror intelectual se atualiza e provoca vergonha, menos para todos os que não se incomodam nem um pouco com a razão de ser desses títulos de trabalho.  Afinal, ninguém precisa de título acadêmico senão as pessoas imbuídas da vocação e da atitude de pesquisa, tudo entendido como trabalho.  O senhor Decotelli deveria ter a nomeação revogada pelo próprio presidente diante do fato. Não importaria sequer o ministério, mas na Educação o fato vira um monstro predador da história. A contradição levada além dos limites aceitáveis.  No entanto, a  julgar por quem nos preside, alguém crê nisso? Ora, mesmo no legislativo deseja-se sorte ao novo ministro e sua mentira só porque substitui o inominável fugido para Miami sob acobertamento oficial.

O senhor Decotelli já se ombreia ao que sentou na cadeira do MEC até há pouco, porque tenta dar “jeitinhos” (que de fato não existem) ao seu currículo, quer pela fome de poder, quer porque deve imaginar que vive em tempo de ignorantes, submissos e “jeitosos”.

Repita-se. São tantas as dificuldades para a aquisição de títulos de trabalho acadêmico que não se exige perfeição, notas máximas ou, pior, disputa intestina pelo título. Somos desiguais também nos procedimentos de pesquisa, na diversidade das áreas, nas composições de bancas, nas disputas de orientação. Mas um título de doutorado não se confunde com término de créditos, visto que a ausência da aprovação da tese compromete totalmente o que se costuma chamar pós-doutorado. Como fazê-lo sem o título anterior indispensável? Carece-se, pois, de novas explicações do M.e Decotelli.

Num pais sério este senhor não teria razão para continuar ministro. No entanto, é muito provável que as cúpulas do poder darão de ombros e dirão que é assunto interno ao MEC e ao executivo. E la nave va

O que fica não é um problema do Lattes. É um valor histórico esbulhado. O qual se conecta a outros desses “Brasis”, sob estratégias distintas, mas princípios iguais: a miserabilidade das maiorias, as exclusões de várias ordens, o assassinato dos adolescentes pobres pelas forças policiais, os foros privilegiados, a negação tácita do espírito republicano. Se algum consolo existe, trata-se de entender que efetivamente ainda não temos uma República verdadeira. Ela foi proclamada e não vivida. Que o diga Euclides da Cunha.  A Colônia e o Império confundem nossos tempos e nossas atitudes. Outros doutores sem título trabalhado e oficializado devem estar na fila para agarrar suas fatias de poder.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da ECA-USP.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ricardo Fabbrini Renato Dagnino Mário Maestri José Dirceu João Carlos Salles Paulo Capel Narvai Osvaldo Coggiola Henri Acselrad João Sette Whitaker Ferreira Érico Andrade Bruno Fabricio Alcebino da Silva Mariarosaria Fabris Gilberto Lopes Henry Burnett Rubens Pinto Lyra Lorenzo Vitral Everaldo de Oliveira Andrade André Márcio Neves Soares Dênis de Moraes Andrés del Río Michael Löwy Marcus Ianoni Gilberto Maringoni Ronaldo Tadeu de Souza José Geraldo Couto Carla Teixeira Fernando Nogueira da Costa Francisco Pereira de Farias Anselm Jappe Salem Nasser Igor Felippe Santos Matheus Silveira de Souza Luiz Carlos Bresser-Pereira Ronald León Núñez Gerson Almeida Sandra Bitencourt Valerio Arcary Daniel Costa José Costa Júnior Alysson Leandro Mascaro Ricardo Abramovay Eduardo Borges Tales Ab'Sáber Caio Bugiato Luiz Eduardo Soares Marilia Pacheco Fiorillo José Luís Fiori Ronald Rocha Luiz Werneck Vianna Daniel Afonso da Silva Manuel Domingos Neto Ladislau Dowbor Jorge Branco Boaventura de Sousa Santos Samuel Kilsztajn Annateresa Fabris Andrew Korybko Vanderlei Tenório José Micaelson Lacerda Morais Chico Alencar Fernão Pessoa Ramos Benicio Viero Schmidt Claudio Katz Chico Whitaker Remy José Fontana André Singer Liszt Vieira Eliziário Andrade Luiz Renato Martins Alexandre de Lima Castro Tranjan Walnice Nogueira Galvão João Adolfo Hansen João Lanari Bo Yuri Martins-Fontes Priscila Figueiredo Ricardo Musse Jean Pierre Chauvin Leonardo Boff Carlos Tautz Bernardo Ricupero Luiz Roberto Alves José Machado Moita Neto Luís Fernando Vitagliano Denilson Cordeiro Leda Maria Paulani Celso Favaretto Airton Paschoa Rafael R. Ioris João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Avritzer Jorge Luiz Souto Maior Tadeu Valadares Gabriel Cohn Jean Marc Von Der Weid Marcelo Módolo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Daniel Brazil Kátia Gerab Baggio Julian Rodrigues Antonino Infranca Marcos Aurélio da Silva Vladimir Safatle Dennis Oliveira João Carlos Loebens Luis Felipe Miguel Paulo Martins Alexandre de Freitas Barbosa Michel Goulart da Silva Michael Roberts Luciano Nascimento Sergio Amadeu da Silveira Juarez Guimarães Valerio Arcary Flávio Aguiar Marjorie C. Marona Marilena Chauí Rodrigo de Faria Heraldo Campos Thomas Piketty Ricardo Antunes Elias Jabbour Armando Boito Berenice Bento Afrânio Catani Paulo Fernandes Silveira Antônio Sales Rios Neto Paulo Sérgio Pinheiro Lucas Fiaschetti Estevez Marcelo Guimarães Lima José Raimundo Trindade Ari Marcelo Solon Bento Prado Jr. Atilio A. Boron Antonio Martins Fábio Konder Comparato Lincoln Secco João Feres Júnior Vinício Carrilho Martinez Manchetômetro Eleutério F. S. Prado Paulo Nogueira Batista Jr Maria Rita Kehl Otaviano Helene Tarso Genro Francisco de Oliveira Barros Júnior Luiz Bernardo Pericás Marcos Silva Milton Pinheiro Slavoj Žižek Bruno Machado Flávio R. Kothe Eugênio Trivinho Luiz Marques Eugênio Bucci Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Alexandre Aragão de Albuquerque Celso Frederico Francisco Fernandes Ladeira Leonardo Sacramento Eleonora Albano

NOVAS PUBLICAÇÕES