Uma guerra hiper-realista

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Por SANDRA BITENCOURT*

O poder dos celulares e mísseis na violência acompanhada ao vivo

1.

“A primeira vítima quando a guerra chega é a verdade”. Essa frase, atribuída ao senador norte-americano Hiram Johnson, foi dita há mais de cem anos durante a Primeira Guerra Mundial, em 1917. Segue, lamentavelmente, muito atual. Com um adicional intrigante e perverso: as imagens de ultraviolência não são capazes, per se, de estabelecer a verdade.

Bem mais, servem para influenciar o apoio e a definição de políticas. Assistimos, como nunca, os ataques em tempo real. Contudo, alguém se arrisca a imaginar como as percepções da guerra evoluirão em médio prazo? Qual é a verdade das mortes de milhares? É direito de existir? É direito à defesa? É proteção à humanidade? É puro simples extermínio? Uma espécie de solução final bem documentada?

Mesmo com todos os dispositivos de registro, a disputa pela verdade permanece.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill disse que “em tempos de guerra, a verdade é tão preciosa que deve ser protegida por um guarda-costas contra mentiras”. Essas duas frases, verdadeiras em sua época e em seus contextos históricos dos maiores conflitos bélicos da história moderna, talvez nunca tenham sido tão oportunas quanto hoje, devido aos grandes avanços nas comunicações e ao mesmo tempo na infinita capacidade de manipulação que esses avanços permitem.

Na Primeira Guerra Mundial, os correspondentes usavam pombos, telégrafos ou mensageiros lentos para divulgar suas histórias. Hoje, todos, correspondentes ou não, usam comunicações via satélite e smartphones. Mas para além do fato da tecnologia ter dado saltos quânticos, a mudança substancial é na autoria das imagens violentas e das informações detalhadas.

A lógica do terrorismo invadiu a representação de uma guerra em que os horrores são divulgados por seus autores, não por suas vítimas. Neste conflito atual que avança no Oriente médio, os documentos do horror foram gravados e divulgados pelos perpetradores da destruição, não por suas vítimas, tanto em Israel quanto em Gaza.

Se antes, tínhamos imagens abstratas, partimos dessa linguagem para o hiper-realismo das imagens que os esquadrões do Hamas divulgaram sobre seus ataques a Israel. As imagens da resposta israelense, os vídeos dos morteiros destruindo sistematicamente prédios residenciais e hospitais em Gaza, não incluem diálogos ou expressões de angústia e crueldade, mas compartilham a mesma lógica, foram divulgadas pelo exército israelense.

2.

Agora, na escalada da guerra com o ataque israelense e o revide do Irã, ocorre o mesmo. Trinta anos atrás, na época da Guerra do Kuwait, a representação da luta foi reduzida a um flash verde em uma tela escura. Um míssil caindo em Bagdá era apenas isso, uma pequena luz disforme que parecia ter sido feita para anestesiar qualquer sentimento dos espectadores, fosse ele compaixão, empatia ou ódio.

As imagens que assistimos nos últimos dias parece um filme sofisticado, de modernas tecnologias e feitos militares. Cada lado exibe poder de destruição.

E isso se deve, até certo ponto, ao fato de as mídias sociais terem permitido que as partes beligerantes, especialmente nos conflitos em áreas complexas como o Oriente Médio, contornassem a mídia corporativa para atingir diretamente o público. Não há filtros e selos para veracidade e violência.

A Guerra do Vietnã foi a primeira a levar os horrores do conflito ao público com grande velocidade, quando a transmissão de imagens ao redor do mundo já era mais rápida. Todos lembramos da famosa foto de 1972 de crianças chorando e uma menina nua em desespero, enquanto escapam de um ataque de napalm.

Hoje, as imagens de crianças de Gaza mutiladas e chorando de fome são tão cruas e intensivas, que talvez não choquem ou comovam como antes. Concorrem com os olhares infantis em desespero, os mísseis potentes e precisos. É quase um entretenimento.

As imagens seguem sendo poderosas para mostrar o que a guerra faz com as pessoas comuns, embora sejam pouco efetivas para reduzir baixas civis (diretas ou indiretas) da guerra.

O autor de The perfect storm” (A tempestade perfeita), ex- correspondente de guerra no Afeganistão, Sebastian Junger, escreveu um artigo para a revista Vanity fair no qual afirmou que os fotógrafos de guerra são agora mais importantes do que nunca: “Em uma época em que as imagens de desumanidade nos dominam – e as pessoas do mundo andam por aí com câmeras em seus celulares – o papel do fotógrafo de guerra pode parecer obsoleto. Mas não é. Os conflitos de hoje exigem cronistas experientes para registrar a verdade com nuances e combater a distorção e a propaganda desenfreadas na Era digital”.

Hoje, os vídeos dos sequestros, assassinatos e bombardeios em Gaza, não são apenas denunciados pelos sobreviventes, ocorre o contrário. Os próprios autores fazem questão de espalhar seus feitos. Reportagem do jornal O Mundo, da Espanha, destaca a centralidade dos celulares nas coberturas de guerra e a avaliação do cientista Fernando Calvo, autor de Homo Bellicus (Arzalia), uma história global da guerra, desde os tempos neolíticos até os dias atuais.

“A grande peculiaridade deste momento é que existe uma nova arma que é carregada no bolso da calça e se chama telefone celular. Ele é usado para intimidar o inimigo, para enviar a mensagem ‘Nós vamos acabar com vocês’. E há uma nuance importante: o celular, como arma de guerra, favorece o combatente pobre, o irregular, não o exército poderoso”. Contudo, todos, indistintamente, se apropriam do valor simbólico da violência e, mesmo os mais poderosos, não renunciam à propaganda para justificar a crueldade.

Nenhuma barbárie é novidade. Tudo já foi feito, decapitações, explosões, ataques aos mais débeis. A inovação neste momento é a lógica imagética e midiática para ampliar o terror, não para sensibilizar e combatê-lo.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).


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