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Uma lição para o futuro

Os mais vulneráveis economicamente são tanto os trabalhadores compulsoriamente informais como os que são reféns da promessa de máxima liberdade: sem patrão, donos de si mesmos e do seu próprio tempo, mas sem direito algum assegurado

Por Filipe Campello*

No dia seguinte ao anúncio da primeira morte por coronavírus
nos Estados Unidos, os irmãos Matt e Noah percorreram mais de dois mil
quilômetros pelos estados do Tennessee e Kentucky comprando todo o estoque de
desinfetantes para as mãos que encontravam pelo caminho. O objetivo era
vendê-los por preços exorbitantes assim que a demanda por esses produtos
crescesse. Quanto mais aumentasse o número de infectados, mais eles iriam
lucrar.

Qual é exatamente o problema dessa iniciativa? Do ponto de
vista do livre mercado (e de sua lógica de oferta e demanda) aparentemente
nenhum. Julgar que seria egoísta ganhar dinheiro com o crescimento da pandemia
depende de um valor moral que, a rigor, é extrínseco à defesa da liberdade econômica.
Per se, o mercado é, digamos assim,
“amoral”.

Mas é justamente em situações extremas, como catástrofes
naturais ou na atual pandemia do coronavírus – o que na filosofia são chamados
de hard cases – que conseguimos ver
melhor as contradições de uma perspectiva estritamente neoliberal tal como se
adotava ali pela década de 1970 e que parece persistir ainda hoje, inclusive na
crença de nosso ministro da economia.

Este tipo de impasse, gerado
a partir de uma perspectiva unilateral da liberdade econômica, torna-se ainda
mais evidente quando pensamos nos meios de contenção da pandemia e sobre o seu
impacto na vida das pessoas e na economia (basta
lembrar que, no dia que anunciou o fechamento das fronteiras do EUA à União
Europeia, Donald Trump postou no twitter que a medida em nada afetaria a
economia americana, já que estava proibindo a circulação somente de pessoas e
não de bens).

Apesar do vírus evidentemente
não escolher quem é infectado, a exposição a ele, principalmente em países como
o Brasil, vai depender largamente de condições socioeconômicas. Na sua fase inicial, os casos de infecção concentravam-se
numa faixa de renda que permitia viagens à Europa, mas ainda é imprevisível o
impacto que poderá ocorrer se o vírus se alastrar entre pessoas de baixa renda.
Além de viver em condições sanitárias mais precárias, elas não dispõem tão
facilmente da opção de simplesmente não trabalhar.

Nem todos têm o “privilégio”
da quarentena. Enquanto quem está protegido por direitos ou por políticas de
proteção social poderá ficar mais tranquilamente em suas casas, para outros
permanecer semanas ou meses sem uma forma de
sustento significa por em risco sua sobrevivência por motivos que vão além da
contaminação. Para essas pessoas,
a realidade não é cantar da varanda de seus apartamentos. A quarentena, como
dizia uma imagem que circulou nas redes, não pode ser romantizada.

Os mais vulneráveis economicamente
são os inúmeros trabalhadores que estão na informalidade, profissionais
autônomos ou quem, sob o crescente modelo de uberização do trabalho, é refém da
promessa da máxima liberdade: sem patrão, donos de si mesmos e do seu próprio
tempo, mas sem direito algum assegurado.

São em situações como essa que a lógica da autorregulação do
livre mercado mostra a sua incapacidade de oferecer soluções. Pelo contrário,
somente o Estado consegue oferecer medidas de proteção social a quem não pode
nem deve sair de casa para trabalhar.

São também nessas horas que vemos a importância de um
sistema público de saúde que consiga atender a demandas que estão longe de
serem resolvidas pelo sistema privado (não por acaso, a Espanha decidiu
estatizar todos os hospitais privados enquanto durar a pandemia). Ademais,
somente o financiamento público em pesquisa (lembrando que é na Universidade
pública que se concentra mais de 95% das pesquisas) pode oferecer soluções que
não estejam à mercê apenas do que gera lucro.

O que a pandemia do coronavírus tem nos ensinado é que não
há espaço para retrocessos civilizatórios. Significa defender a importância da
ciência, da circulação de informações confiáveis, do papel do Estado em
oferecer proteção social e políticas públicas eficazes, além de alargar nosso
imaginário político para pensarmos em meios transnacionais de lidar com
problemas cujos impactos não se restringem às fronteiras nacionais.

Diante de situações como essa, quem continua acreditando
incondicionalmente no livre mercado como solução para todos os nossos problemas
parece não estar muito distante de gurus, terraplanistas ou de quem é contra
vacinas. Se em meio a esse cenário caótico a pandemia pode deixar uma lição
para o futuro da humanidade é a de que a aposta em menos Estado e mais mercado
é altamente arriscada.

*Filipe Campello é professsor de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco.

Uma versão
anterior deste artigo foi publicado no blog Horizontes
ao Sul
.

Uma lição para o futuro – 27/03/2020 – 1/1
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