Uma pandemia, dois futuros

Dora Longo Bahia. Dido, 1994 Óleo sobre tela 204 x 293 cm
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Por ROBERT BOYER*

Como a Covid-19 remodela a economia

Quase um ano após a irrupção da Covid-19, o mundo permanece impotente diante da pandemia. As medidas tomadas para contê-la causaram, entretanto, uma tripla crise, econômica, política e cívica. Duas grandes tendências já foram reforçadas: o triunfo das indústrias digitais e o retorno do Estado como controlador do capitalismo. Dois movimentos complementares…

Os economistas raramente se interessaram pelos processos por meio dos quais se constroem as regras do jogo, as instituições e organizações cuja conjunção assegura a resiliência de um regime sócio-econômico. Sua incompreensão da longa depressão que se seguiu ao colapso do regime soviético na Rússia é testemunha desta lacuna. Ora, consideradas todas as ressalvas, esta é realmente a questão colocada para a saída do coma em que se afundaram as economias na tentativa de conter a pandemia de Covid-19: como reconstituir um sistema econômico funcional a partir de componentes desconectados entre si?

Na ausência de um retorno à história, cada um propõe uma abordagem normativa de acordo com suas preferências doutrinárias ou ideológicas. Para facilitar a recuperação, os impostos de produção devem ser abolidos, dizem as organizações patronais. É necessário restabelecer o imposto sobre as grandes fortunas, instituir um imposto transitório, ou mesmo permanente, sobre a alta renda e avançar em direção a uma maior justiça social, reivindicam pesquisadores e movimentos de esquerda. Outros sugerem “começar tudo do zero”: finalmente levar em consideração a ameaça de colapso ecológico e de prolongamento da queda econômica, que o confinamento demonstrou ser possível.

A exploração do legado das duas últimas décadas impõe-se como pré-requisito. A pandemia chega numa conjuntura marcada pela difícil saída da crise de 2008, que não levou a um enquadramento estrito das finanças. Ao contrário: envolveu a manutenção das taxas de juros próximas de zero para estimular a atividade econômica, fonte de surtos especulativos recorrentes – neste caso sobre o petróleo e as matérias-primas – em sociedades dominadas pela financeirização[1]. O aumento da renda do capital e a precarização do emprego estão alimentando um aumento contínuo da desigualdade. No início de 2020, os líderes políticos não podiam imaginar que um vírus fosse capaz de deter estas dinâmicas poderosas.

Incerteza radical

Certamente, especialistas em saúde pública tinham concluído, a partir da observação da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) e do H1N1, que era necessário se preparar para o retorno das epidemias, cuja probabilidade aumentava com a mobilidade internacional. A mensagem foi recebida na Ásia, mas não nos Estados Unidos ou na Europa – bem longe disso. Em geral, os governos procuraram limitar o crescimento dos custos de saúde, mesmo que isso resultasse num subinvestimento em equipamentos básicos de controle de epidemias. A confusão é grande quando a rápida propagação das infecções requer uma medida radical – a quarentena –, na ausência de planejamento e preparação de uma estratégia eficaz: testar, rastrear e isolar. Isto explica a letalidade desigual da pandemia entre as principais zonas da economia mundial, mas também entre países geograficamente próximos (França e Alemanha, por exemplo).

A decisão de muitos governos de dar prioridade à defesa da vida humana antes de buscar a normalidade econômica inverte a hierarquia tradicional estabelecida pelos programas de liberalização anteriores, que tinham enfraquecido o sistema de saúde. Esta mudança inesperada e brutal precipita uma série de ajustes por toda a sociedade: pânico no mercado de ações, colapso dos preços do petróleo, interrupção do crédito, redução do consumo, volatilidade cambial, abandono da ortodoxia orçamentária, etc.

No início, a irrupção da Covid-19 pegou de surpresa os próprios especialistas e agentes, incapazes de encontrar as palavras para descrever a situação que eles deveriam enfrentar. Após a guerra ao terrorismo, foi prudente declarar guerra a um vírus? Foi apropriado qualificar como “recessão” o que na verdade é uma decisão política e administrativa de parar todas as atividades que não são necessárias para a luta contra a pandemia e para a vida cotidiana?

Não especialistas e políticos podem ter acreditado que os avanços na biologia permitiriam um rápido controle da Covid-19. Isto seria ignorar o aviso dos pesquisadores em virologia: não existe um vírus típico, cada um tem características que devem ser descobertas à medida que se espalha. Assim, as autoridades tiveram que tomar decisões de longo alcance diante de uma incerteza radical. Como podemos decidir hoje quando sabemos que ainda não sabemos o que acabaremos sabendo depois de amanhã – infelizmente, tarde demais? Adeus ao cálculo econômico racional! O resultado é um mimetismo geral: é melhor errarmos todos juntos do que ter razão sozinho. Assim, os governos copiam-se uns aos outros e acabam referindo-se a um mesmo modelo de difusão da pandemia. Os investidores contentam-se com os fundos que imitam um índice da bolsa de valores, uma vez que não têm as informações relevantes para avaliar os ativos financeiros. Da mesma forma, os governos incautos devem inovar com medidas sem precedentes, o que acrescenta uma segunda incerteza radical, já que ninguém conhece o impacto final.

É o que explica em parte a natureza conflituosa das decisões públicas e as contradições que perpassam o discurso oficial. Esta pregnância da incerteza tem uma consequência importante em matéria de responsabilidade: quando as estratégias que se revelarão as mais eficazes forem conhecidas, os cidadãos prejudicados pelo tratamento inadequado da pandemia poderão apresentar queixas contra a administração da saúde ou mesmo contra os políticos?

Como a decisão de praticamente parar a economia corre o risco de falir as empresas mais frágeis e  empobrecer as mais fracas, ela deveria estar acompanhada por medidas de apoio aos resultados das empresas e à renda dos assalariados. Na França e em muitos outros países, a intervenção maciça do Estado rompe com o projeto de retorno ao equilíbrio das finanças públicas: é o imperativo da saúde pública e da urgência – talvez do pânico – que justificam esta reavaliação da doutrina governamental. Mas a esperança de uma vitória rápida sobre o vírus é desapontadora, e as medidas sanitárias, e, portanto, o esforço orçamentário, devem ser prolongados. A vida humana, que parecia não ter preço, tem um custo. Turismo, restaurantes, transporte aéreo, entretenimento: setores inteiros estão próximos à falência, e suas organizações profissionais estão exigindo um retorno a uma atividade econômica mais sustentada. A qual não pode ser a que prevaleceu em 2019, pois as barreiras à propagação do vírus pesam sobre a produtividade, os custos e a rentabilidade.

Logicamente, se a comoção criada pela Covid-19 se mostrasse duradoura, a pandemia poderia demarcar uma tomada de consciência:  a busca do bem-estar deveria se tornar a pedra angular das sociedades. Este prognóstico otimista deve ser temperado, pois a Covid-19 não faz tábua rasa do passado. “Tudo deve mudar para que nada mude”, especialmente na distribuição do poder no seio das sociedades e entre elas em nível internacional. Por um lado, a Covid-19 já mudou muitos comportamentos e práticas: a estrutura do consumo registrou os riscos das relações face a face; o trabalho foi digitalizado, permitindo uma desconexão temporal e geográfica das tarefas que produzem bens ou serviços imateriais; a mobilidade internacional das pessoas foi impedida de modo duradouro; e as cadeias globais de valor não sairão incólumes dos esforços para recuperar alguma soberania nacional sobre a produção de bens considerados estratégicos. Os modos de regulação serão transformados, com poucas chances de um retorno ao passado.

Por outro lado, a Covid-19 acelerou duas das tendências observadas desde a década de 2010. A primeira diz respeito ao capitalismo de plataforma, centrado na exploração de informações de qualquer tipo, que começou a conquistar o mundo. Com a crise sanitária, demonstrou seu poder ao manter a atividade de comércio eletrônico graças a seus algoritmos impulsionados pela inteligência artificial e a sua logística, ao oferecer informações em tempo real sobre todas as atividades, ao facilitar o trabalho e o ensino à distância e ao explorar caminhos para o futuro abertos em novos setores (veículos autônomos, exploração comercial do espaço, telemedicina, equipamentos médicos). Por sua vez, os investidores estão apostando em seu sucesso a longo prazo no contexto de um declínio da economia tradicional. Este capitalismo transnacional invasivo parece ter saído ainda mais poderoso da crise sanitária.

Mas também deu origem a sua contrapartida dialética: uma miríade de capitalismos de ímpeto estatal que, impulsionados por aqueles deixados à própria sorte com a abertura das economias, entendem defender as prerrogativas do Estado-nação, inclusive na esfera econômica. Como os benefícios da globalização se dissipavam, eles se multiplicaram e diversificaram. Num extremo do espectro, está a China; entretanto, a configuração mais comum é a de países cujos governos chamados “populistas” usam o Estado para defender a identidade nacional, por exemplo, diante das migrações, e, em segundo plano, da competição internacional. A Hungria e a Rússia são duas variações desta segunda categoria.

Esta apresentação não pode deixar de levantar uma objeção de bom senso: como dois regimes tão opostos podem coexistir? Analisando bem, eles se alimentam mutuamente. A contrapartida da ofensiva das multinacionais digitais é uma desarticulação dos sistemas produtivos nacionais e uma polarização das sociedades segundo uma linha de ruptura entre grupos e profissões que prosperam na concorrência entre os territórios, e os outros, os perdedores, cujo padrão de vida está estagnado, ou mesmo em declínio. Este é o terreno fértil em que se nutrem os movimentos que defendem a identidade nacional e apelam ao Estado para protegê-los dos ventos fortes da concorrência internacional, que eles não têm meios para enfrentar.

Paradoxalmente, a pandemia reforça os dois tipos de capitalismo. O capitalismo transnacional da informação há muito domina o comércio eletrônico, no qual construiu um sistema logístico bem estabelecido, e o teletrabalho. O distanciamento físico está no centro de seu modelo produtivo, e as medidas de confinamento permitem-lhe conquistar rapidamente os clientes, desenvolver novas aplicações para medicina, ensino à distância e reuniões de trabalho. Os investidores veem a informação e a pesquisa médica como os poucos setores que estão saindo mais fortes da pandemia.

No campo ideológico, os governos descritos como “populistas” estão ganhando terreno, uma vez que a ameaça de um vírus vindo de outros lugares justifica o controle das fronteiras, a defesa da soberania nacional e o fortalecimento do Estado na esfera econômica. O capitalismo de estado não pretende competir com o capitalismo transnacional, mas simplesmente afirmar a soberania econômica, mesmo que seja adquirida às custas do padrão de vida. Os governos podem contar com a China para conter as Gafam (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), de modo que seja possível um compartilhamento do espaço global entre duas esferas de influência, sem necessariamente implicar a vitória de uma sobre a outra.

Neste clima sombrio, os conflitos sociais, que não foram superados no passado recente, correm o risco de ressurgir, especialmente porque os empregos destruídos podem ser mais numerosos do que os que forem criados nos setores do futuro. No capitalismo, um regime sócio-econômico só é viável se for baseado num compromisso fundador que organize a arquitetura institucional – em particular a da relação salarial e da concorrência –, oriente a acumulação e canalize o conflito entre capital e trabalho. A polarização das sociedades torna este exercício extremamente difícil, mas seria ilusório pensar que medidas puramente técnicas, por mais inovadoras que sejam, podem substituir o papel da política na construção de novos compromissos.

Construir novos compromissos

Já que seria inútil buscar uma previsão num determinismo tecnológico ou econômico, por que não imaginar como as forças que atuam nas sociedades pós-Covid-19 poderiam levar a configurações com uma certa coerência?

Um primeiro futuro poderia resultar de uma aliança entre as técnicas digitais e os avanços da biologia, levando a uma sociedade de vigilância generalizada que institua e torne possível uma polarização entre um pequeno número de pessoas ricas e uma massa de sujeitos tornados impotentes pelo abandono do ideal democrático.

O segundo futuro pode resultar do colapso de uma sociedade como essa. O deslocamento das relações internacionais e o fracasso em combater a pandemia por meios puramente médicos (tratamentos, vacinas ou a oposta obtenção de imunidade coletiva) mostram a necessidade de um Estado social que se torne o tutor de uma democracia estendida à economia. E que, diante das ameaças à saúde, atua para fortalecer todas as instituições necessárias à saúde coletiva e vê a educação, o estilo de vida e a cultura como contribuições para o bem-estar da população.

O sucesso de um número crescente de experiências nacionais poderia eventualmente tornar possível, ao final, a construção de um regime internacional centrado nos bens públicos globais e nos bens “comuns” sem os quais os regimes nacionais não podem prosperar: regime comercial transnacional, estabilidade financeira, saúde pública, sustentabilidade ecológica. Pensemos na liderança dos países escandinavos, cujo capitalismo de inspiração social-democrata favorece o investimento em serviços públicos essenciais e a consideração dos imperativos ambientais.

A história se encarregará de invalidar, ou não, essas duas visões, e de nos surpreender, como fez a Covid-19.

*Robert Boyer é diretor de pesquisas do CNRS na École normale supérieure (França). Autor, entre outros livros, de Teoria da regulação: fundamentos (Estação Liberdade).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no jornal Le Monde diplomatique.

[1]     Ver: Frédéric Lemaire e Dominique Plihon, “Le poison des taux d’intérêt négatifs”, Le Monde diplomatique, novembro de 2019.

 

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