Uma política de ciência e tecnologia para organizações produtivas populares

Imagem: Mariano Ruffa
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Por RICARDO NEDER*

A economia solidária constitui uma área de crescente estudo no quadro de experiências internacionais para equacionar a busca de soluções e alternativas concretas ao neoliberalismo excludente

Introdução

A economia política das relações entre Estado e sociedade civil diante da emergência da esfera pública popular é atualmente uma construção inacabada, pois envolve a mobilização política de recursos públicos para garantir a permanência de um sistema de financiamento no longo prazo (décadas) como apoio às coalizões de redes entre movimentos sociais e quadros políticos, universidade e gestores de políticas governamentais, para criar o fomento financeiro, educacional e científico-tecnológico que atraia a heterogeneidade da camada de organizações produtivas populares.

Esta camada hoje é formada por uma variedade de estilos e características locais e étnicas, sob as relações de gênero em coletivos familiares e vicinais para trabalho associado, cooperativas populares, redes de produção-consumo-comercialização, instituições financeiras voltadas para empreendimentos populares solidários, empresas recuperadas por trabalhadores organizados em autogestão, cooperativas de agricultura familiar, cooperativas de prestação de serviços, associações locais, feiras e coletivos familiares, entre outras. Esta diversidade obriga que seja desenhado no futuro um formato multinível (nos três níveis de governo e nos diversos públicos envolvidos) para atingir critérios de governança e controle, combinado com a avaliação da efetividade.

Em passado recente (2000-2020), incubadoras universitárias, movimentos sociais e entidades civis buscaram a estratégia de coalizão de rede das redes (ligar-se a um número relevante de redes por meio de uma rede). Este foi o caso da Rede de Tecnologia Social RTS. Ela assumiu a identidade de fórum nacional em defesa dos investimentos de C&T sob bases sociotécnicas. (Em seu conselho gestor foram integradas dez entidades públicas e governamentais, e representantes da economia solidária e das incubadoras universitárias de cooperativas populares).

Com entidades civis e governamentais elas geraram a possibilidade de criação de um sistema de crédito próprio, encabeçado pelo Banco comunitário de desenvolvimento, o Instituto Palmas. A divisão política do trabalho ficou marcada não tanto pela contraposição público versus privado, mas entre a esfera das parcerias público-privadas (em que se acham presentes modalidades de captura do Estado) e a esfera público-comunitária na vertente societal (nesta está em questão a seletividade das entidades associações e movimentos em sua luta por acessar mais recursos).

A economia solidária constitui uma área de crescente estudo no quadro de experiências internacionais para equacionar esta busca de soluções e alternativas concretas ao fato de que o neoliberalismo exclui programas sustentados para gerar postos de trabalho assalariados (temporários ou não) para os 80 milhões que compõem hoje a População em Idade Ativa nos circuitos populares da economia no Brasil. Este excedente da força de trabalho é tanto uma característica estrutural do capitalismo para manter um exército industrial de reserva como parte do regime de assalariamento para manter o controle ou subordinação da força de trabalho, quanto um traço marcante para reproduzir um mercado de trabalho que rebaixa salários e remunerações como regra geral.

Os contingentes excluídos do mercado assalariado de 80 milhões de pessoas (Censo de 2022) nada têm de excepcional sob o capitalismo embora seja insustentável tanto por gerar o aniquilamento de pessoas de todas as idades sem que elas tenham a chance de uma vida civilizada, como pela exclusão dos grupos sociais trabalhadores e das camadas populares urbanas e rurais em situação de apartação social e econômica. Eles reagem e se mobilizam para superar as formas de exclusão do mercado formal da economia.

A transferência de recursos no âmbito das Políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI)

A reforma do Estado continua incompleta. Demarcada constitucionalmente em 1988 com a atual Carta Magna e iniciada no primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso (1994-98), ela está longe de criar novas formas de controle e acompanhamento, governança e controlabilidade para abarcar os empreendimentos econômicos solidários ou sua forma genérica de organização produtiva popular (EES/ OPP). Por este caminho, tal reforma poderia prover segurança jurídica e fiscal, orçamentária e legislativa nos três níveis de governo para abarcar as transferências de recursos para as demandas sociais destes grupos sociais que correspondem a 60% dos mercados locais não reconhecidos pelos circuitos de mercados tipicamente capitalistas.

Tal reforma ampliará o conceito de mercado para outras modalidades de mercado (solidários, indígenas, socioculturais, étnicos, extrativistas, agricultura familiar, da conservação e proteção da biodiversidade), num esforço que ainda não foi reconhecido como legal e constitucionalmente fundado no direito administrativo pelos agentes públicos em tribunais e agências governamentais brasileiras.

Diante disto, torna-se fundamental o aperfeiçoamento de um novo modo de produção do direito administrativo no País para encarar estas transferências e investimentos também como legítimos. A exemplo da Lei de Inovação brasileira, sob a qual as transferências públicas para pesquisa e desenvolvimento são autorizadas sob a cobertura da lei de inovação tecnológica brasileira (LIT – nº 10.973/2004), a Sociedade precisa legitimar uma base legal-normativa para transferências de Ciência, Tecnologia e Sociedade. A LIT dispõe sobre incentivos para o circuito do ambiente empresarial de inovação tecnológica, no mercado capitalista formal. Por isto, é um cobertor curto.

Grande parte da comunidade científica apoia a tese de que a origem da transferência de recursos para C&T no Brasil são as políticas públicas de ciência & tecnologia, associadas com os fundos de educação formal e educação profissional e tecnológica da rede nacional ora em expansão.

De início, retomamos a constatação básica antes mencionada: o campo das políticas e ações públicas e privadas de Ciência, Tecnologia e Inovações (CTI) tem hoje um arcabouço regulamentado pela Lei de Inovação Tecnológica no Brasil (LIT segundo a Lei 10.973, 2/12/2004), que dispõe sobre a transferência de recursos via inovação e pesquisa científica e tecnológica para o ambiente empresarial. A política da Lei de Inovação brasileira paga para que as empresas empreguem mestres e doutores a fim de atuarem em projetos específicos de pesquisa e desenvolvimento (P&D). A Lei de Inovação brasileira afirma o primado do princípio de transferir recursos públicos para aumentar a produtividade das empresas. Doutrinariamente, afirma que é desta forma que a sociedade receberá os benefícios resultantes da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico; na medida em que os empresários inovarem, poderão assim aumentar sua lucratividade, porque serão obrigados a transferir mais e melhores bens e serviços para a sociedade.

Esta é tida como o melhor caminho para embarcar a sociedade na ciência & tecnologia. O fato, porém, de as empresas brasileiras absorverem menos de 1% dos mestres e doutores que se formam por ano nas universidades nos leva a constatar que estes profissionais atuarão mais tarde em funções que nada têm a ver com pesquisa e desenvolvimento. Segundo alguns pesquisadores da política científica e tecnológica brasileira, o problema da inadequação da política de fomento (unidirecional para a inovação empresarial) tem raízes nesse comportamento dos empresários e não pode ser atribuída à falta de recursos e instrumentos governamentais.

Segundo Renato Dagnino, “(o empresário) é economicamente racional frente àquilo que percebe como condições de mercado” (DAGNINO, op. cit.). Estas se referem à nossa condição de economia ora semiperiférica industrial de produção de manufaturas, ora periférica que atua como plataforma de exportação de biomassa e biodiversidade sob a forma de alimentos e matérias-primas.

A política científica e tecnológica de fomento à inovação tende, portanto, a estar fortemente vinculada à dinâmica desigual de processos de mercado em competição intercapitalista entre os grandes blocos empresariais, ou corporações. Diante deles, os segmentos de micro e pequenas empresas não necessitam de pesquisa & desenvolvimento. (Se eles podem ou não recorrer a P&D é um dilema que só pode ser quebrado oferecendo a possibilidade de recorrerem. Mas escapar do determinismo econômico dos mercados não é algo que se cria pela lei de inovações, pois ele concretamente polariza os grandes circuitos capitalistas e aprisiona o resto da sociedade).

Estamos diante de uma constatação básica: tal como praticado em relação à Lei de Inovação brasileira para os empresários, justifica-se também uma legislação específica e diferenciada para a tecnologia social e a adequação sociotécnica ajustada à economia solidária (NEDER, 2009, PARACA, 2009).

Isto exige que o Estado crie e lance redes de proteção aos circuitos de empreendimentos econômicos solidários nos quais o trabalho e a informação, a gestão societal e a tecnologia social possam aumentar a experiência formativa dos grupos e sujeitos sociais em gestão associativa de produção e geração de inovações (CATTANI, 2003, SINGER, 2002).

A transferência de recursos no campo das Políticas de Ciência & Tecnologia Social

Em passado recente (2004-2020), foi tecida uma ampla configuração de redes de redes com movimentos que exigiam a redefinição das relações entre universidade e a política científica e tecnológica para atingir a base da pirâmide social (entre outros, no contexto do Reuni I e Reuni II, políticas de cotas, e uma revisão da política de ciência e tecnologia para a tecnologia social). Esta redefinição justificou nos últimos anos uma ampla mobilização da opinião pública pela divulgação sistemática de ações, experiências, políticas, pesquisas e conceitos em torno da tecnologia social como o modelo de política distinto da LIT.

Integraram estas ações uma Rede de Tecnologia Social (RTS) com 660 entidades, os prêmios anuais de tecnologia social da Fundação Banco do Brasil e, sobretudo, as ações de fomento da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep/MCT) aos ambientes de inovação social de 88 Incubadoras de Cooperativas Populares nas universidades públicas no país, além das redes de empreendimentos econômicos solidários e do programa brasileiro de Economia Solidária (MTE).

Pela primeira vez no país, no período 2004-2016, criou-se uma Secretaria de Ciência e Tecnologia para Desenvolvimento e Inclusão social (Secis/MCT). O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), a Secretaria Nacional de Economia Solidária – Senaes e o Sebrae nacional são agentes de fomento que têm promovido editais para o financiamento de projetos sobre tecnologias sociais da comunidade de pesquisa no país.

Desde os anos 2004 a 2016 essa construção foi fortalecida pela instalação no país de 44 bancos comunitários de desenvolvimento, uma rede que faz da microfinança uma arma contra o isolamento das experiências comunitárias de incubação (2010). Em torno do movimento pela tecnologia social foi investido cerca de R$ 1 bilhão (se considerados os 500 milhões nos últimos quatro anos, segundo dados da RTS, FBB, MCT e universidades, e igual quantia das emendas parlamentares nos programas Arranjos Produtivos Locais, da Secis/MCT).

O acervo de experiências e conhecimentos é significativo em matéria de projetos, atores e, sobretudo, aprendizagem acumulada em escala real. Entre eles, as experiências de participação popular da Economia Solidária e formas de encadeamento da produção e ação social, o modelo Pais de horticultura familiar para segurança alimentar e nutricional, e o programa de cisternas de placa da Articulação do Semiárido (ASA).

Há teses e dissertações já defendidas analisando as condições e as bases da gestão por redes organizacionais locais e comunitárias sobre Tecnologia Social; e haverá muitas outras, pois são no mínimo conhecidos mil casos disponíveis (envolvendo quinhentos casos dos Prêmios FBB e o restante, do Banco de Experiências da RTS, disponíveis na internet).

A gestão por redes de organizações locais e comunitárias está documentada entre 2000 e 2016 e é parte da realidade, apesar de terem sido descontinuadas as políticas públicas para institucionalizar disciplinas, abordagens de ensino de ciências e políticas publicas e centros de pesquisa no campo C&TS.

A base para a universidade rimar ciência & tecnologia com sabedoria popular são os Estudos CTS (Ciência, Tecnologia, Sociedade) latino-americana e as pesquisas brasileiras sobre AST − adequação sociotécnica, que significa conhecimento científico e popular compartilhando seus códigos técnicos. Esta dimensão é chave para assegurar as condições de avaliação de resultados a partir das quais serão criadas condições institucionais, legais e de gestão societal (além de práticas gerenciais indispensáveis, mas longe de serem suficientes − cf. THIOLLENT, 2005).

Haverá aperfeiçoamento do conjunto legal e creditício, fiscal e tributário para a economia solidária, quando estiver assimilada pela administração pública e governos a questão do sujeito portador de conhecimento como decisiva enquanto parte da participação popular com que técnicos e pesquisadores devem exercer a dialogia.

No interior deste movimento, a cultura tecnológica tem sido tratada como um processo de adequação sociotécnica (AST), segundo a base teórica desenvolvida pelo movimento pela tecnologia social, formulada inicialmente a partir dos trabalhos coletivos do pesquisador brasileiro Renato Dagnino (2009, 2008, 2007, 2004).

Atingir uma escala de aprendizagem e capacitação está na linha de frente dos esforços dessa base teórica num ponto estratégico: os agentes sociais podem deter mais autonomia para a auto-organização mediante métodos apropriados para o território cultural e simbólico onde moram as pessoas envolvidas, com uma cultura tecnológica especifica.[i] Este pode ser o critério cognitivo para dar legitimação a uma governança multinível, entendida como a busca de proteção a direitos de quarta geração que envolvem conhecimentos tácitos e saberes como direitos intelectuais imateriais da base cultural (o V capítulo neste volume específico versa sobre esse tema).

 Nessa primeira acepção, a tecnologia não pode ser separada do sujeito social que lhe dá origem (caso, por exemplo, das fábricas recuperadas, das famílias produtoras na agricultura familiar, nas comunidades extrativistas; dos coletivos nos assentamentos da reforma agrária, das cooperativas populares em favelas nas grandes cidades; das associações dos povos ribeirinhos e população do semiárido, ou ainda, das associações que reúnem as mulheres-quebradeiras dos babaçuais no Nordeste e, num limite máximo, na economia comunitária dos povos indígenas e populações tradicionais que dominam cadeias produtivas locais e regionais (MELLO et al., 2009).

O financiamento público e dos bancos comunitários estão direcionados a esse campo de interação: o sujeito-social-que-adapta, baseado nos saberes-fazeres populares. Como interagem pouco com os agentes e extensionistas técnicos e científicos, quando esta vivência ocorre ela é marcada pela incerteza de toda experiência.

Se o sujeito técnico científico é alguém com a cabeça formada sob a mentalidade CTI, verá nas práticas sociotécnicas e tecnologias tácitas populares uma espécie de chave para abrir “artefatos com valor de mercado”.[ii] (Neste aspecto, a participação popular é negada ou deixada à margem porque a linguagem técnica adotada não tem ressonância ou sentido para a cultura popular envolvida; cf. FREIRE, 1997).

Neste caso haverá forte viés gerencial distorcendo o conhecimento implícito, ou tecnologia tácita sistematizada para ser incorporada ao modelo de negócio tipicamente capitalista como uma inovação, o que certamente beneficiará alguns poucos.

Para des-construir a lógica da vertente inovacionista quando se está diante de OPPs (já que estas vivem diuturnamente o embate entre cooptação de instâncias oficiais ou oficiosas e a busca de autonomia coletiva comunitária), vale lembrar que ela atribui, em geral, aos atores portadores de práticas dotadas de conhecimentos implícitos ou tecnologias tácitas a forma abstrata de metodologia, produto ou processo concreto retirado da comunidade. Esta base é sistematizada e convertida em solução ou modelo para soluções (por exemplo, de geração de renda). Tal transposição tem sido praticada como difusionismo tecnológico.

A concepção de difusão tecnológica tem, assim, três dimensões típicas: i) os agentes são modelados segundo o imaginário de que todo empreendimento segue a lógica de trocas baseada na geração de lucro sob um modo de gestão gerencial, baseado nas metodologias do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas); ii) trata-se de extrair o conhecimento implícito e a tecnologia tácita das práticas sociais; iii) trata-se de manualizar (criar manuais) e retirá-las do seu contexto comunitário, para convertê-las em modelo de negócio a ser vinculado a alguma cadeia de comercialização de produtos e serviços, visando resultado para o capital.

A metodologia na vertente C&TS, oposta, é mais cara financeiramente e de avaliação (accountability) mais difícil, pois são mais dispendiosas as metodologias qualitativas de avaliação de resultados para a base popular no tocante à geração de TOR – trabalho, ocupação e renda. Uma governança multinível aplicada a esta complexidade exige indicadores de resultados tanto no âmbito dos microprojetos (táticos de curto prazo) quanto em programas de ação local de longo prazo (MPAL).

Neste ambiente há um problema similar (ao do difusionismo) do qual é difícil escapar: agentes multiplicadores (extensionistas) sofrem a tentação de justificar a realização de boas práticas com exemplos concretos que estão mais vinculados a dispositivos do que às práticas e relações multinível que os processos de emancipação e autonomia permitem aos sujeitos envolvidos. Convertem-se, frequentemente, em tecnologias-sem-sujeito. Neste caso, embora a tecnologia tenha nascido de uma experiência ou pesquisa entre sujeitos sociais específicos, parte-se da tentativa de reaplicar o modelo em escala ampliada, valendo-se das qualidades intrínsecas de algum dispositivo de tecnologia social.

A governança multinível, ao contrário, está vinculada a qualidades e atributos, ou seja, no desenvolvimento de capacidades (cognitivas, habilidades sociais, comerciais, produtivas…). Este desenvolvimento de capacidade é capaz de recriar ambientes com coletivos que saibam transitar por instituições, mobilizar recursos e adquirir habilidades sociais para negociar e disputar com outros atores IRA (Instituições, Recursos e Atores).

Tal complexo – IRA – significa o grande diferencial para todas as experiências que envolvem tecnologia social. O paradigma é o programa brasileiro para a construção de cisternas fechadas (de placas ferro-cimento) a fim de armazenar água de chuva com base em soluções que ampliam sua escala de aprendizagem por meio de um arranjo ou ambiente do tipo IRA para milhares de pequenos produtores familiares no semiárido brasileiro. A solução buscada foi mobilizar agentes e ambientes propiciadores em projetos e redes colaborativas (MANCE, 2000, 2002, 2003, 2003 A).

Por ser um signo, produto ou objeto que integra facilmente outros circuitos de reaplicação, a tecnologia social da cisterna de placa (e outras TSs) tem sido uma cola eficiente para atrair outros saberes e fazeres, e facilitar aos mediadores técnicos o desenvolvimento de métodos capazes de realizar as condições de recriação do ambiente institucional, societário e cultural específico do território visado.[iii] Em outras palavras, a tecnologia social opera como uma cola, porém depois de efetivado o engajamento dos sujeitos sociais, eles devem ser capazes de se libertar desta cola (descolar da experiência) e considerar as condições próprias, únicas, de enraizamento. Trata-se do que chamamos de mudanças sociotécnicas.

Dimensões estratégicas do financiamento público governamental de uma política de C&T para OPPs

O modelo de C&T voltado para a inovação tecnológica das empresas é resultado de políticas de fomento oficial. Para que ele seja superado por outro modelo financiado por fontes empresariais, os investimentos do Estado deverão ser gradativamente substituídos pelos recursos de investimento das empresas enquanto uma tendência internacional (quase 70% do total dos investimentos com P&D são hoje cobertos por fontes privadas nos EUA; cf. De NEGRI, 2022).[iv]

De positivo, hoje, há novas vinculações com Ciência & Tecnologia Social nas universidades mediante iniciativas locais e territoriais. Elas buscam implantar experiências de políticas em áreas como software livre, mídias digitais na educação e capacitação profissional para a formação profissional, projetos sociotécnicos para a sustentabilidade em municípios no tocante a recursos hídricos, habitação popular, energia, transporte, meio ambiente, saúde e saneamento publico, oficinas de ciências, cultura e artes nos municípios. Entre estes últimos são relevantes as experiências de reapropriação direta da indústria cultural (cinema e vídeo, fotografia).

Serão necessárias políticas de fomento financeiro, creditício, fiscal e tributário especiais para mobilizar milhões de pessoas no âmbito dos circuitos populares da economia (abarcando pessoas das classes de consumidoras B, C e D) para: (i) Identificação das aglomerações e agrupamentos que originaram organizações produtivas populares e EES, com a incorporação de TS (tecnologia social ou cultura tecnológica). (ii) Mapeamento e estatísticas sobre a configuração territorial e socioeconômica – taxonomia das organizações produtivas populares e os EESs com diferentes modalidades de tecnologia social e de redes locais de produção, serviços e assistência sociotécnica com qualificação de agentes locais multiprofissionais.

(iii) Mapeamento das experiências coletivas com organizações produtivas populares e tecnologia social em redes locais de experiências relevantes nos OPPs/EESs identificados, com a sistematização das informações relativas aos dispêndios governamentais, fluxos de capitais e investimentos destinados aos circuitos populares; (iv) Identificação e sistematização das ações desenvolvidas no contexto do setor privado e suas entidades representativas que podem estabelecer uma disjuntiva ou conjuntiva diante da convergência OPPs.

Conclusões: quatro desafios

A dimensão estratégica a ser levada em conta na regulamentação do setor das organizações produtivas populares (apontada pela pesquisa e extensão) é a política de C&TS para os encadeamentos entre cadeias de serviço e produção. Pequenas e médias empresas se unem em redes de dois tipos: (i) as redes-corporativas, constituídas em torno das atividades de uma empresa-mãe (em geral, uma grande empresa corporativa) na qual as empresas subcontratadas possuem pouca autonomia e poder de decisão; e (ii) redes flexíveis, nas quais empresas geralmente de porte semelhante podem se unir por meio de um consórcio que confere flexibilidade à rede, além de maior autonomia às empresas participantes (METELLO, 2007, ARAÚJO, 2005).

As OPPs seguem o segundo caminho de redes flexíveis com o encadeamento entre associadas e cooperativas solidárias. Algumas vantagens dessas associações são destacadas na literatura, tais como: diminuição de custos fixos, principalmente no que se refere à pesquisa de desenvolvimento tecnológico; aproveitamento da massa crítica das demais empresas; compartilhamento de riscos; aumento do poder de compra colegiada; capacitação e treinamento para qualidade compartilhados; aumento da diversidade dos produtos oferecidos (TAULLE, 2008, 2004; DAGNINO, 2004; METELLO, 2007, ARAÚJO, 2005).

Essas vantagens se devem em grande parte ao trabalho proporcionado pelas redes a cada uma das empresas participantes. Considerando-se a realidade das redes solidárias, o fator econômico também está presente como importante benefício a ser alcançado pelos EESs participantes, porém outros pontos positivos dessa associação, não econômicos, também são destacados, como, por exemplo, a redução de risco de cooptação e o desvirtuamento dos projetos alternativos (CATTANI, 2003, DOWBOR, 2007).

As cadeias produtivas solidárias (CPS) são redes formadas por organizações produtivas populares/EESs, articuladas numa mesma cadeia produtiva, cujas atividades compõem os principais elos dessa produção. Dessa maneira, as relações comerciais estabelecidas por cada EES podem condizer com a lógica interna de cooperação, já que os demais elos da cadeia também operam sob os mesmos princípios. Com o aumento das trocas entre EESs, diminui a necessidade de relações comerciais com empresas capitalistas convencionais e, com isso, também a necessidade de competição no mercado (EID e PIMENTEL, 2005).

A partir daí, outra lógica de relação entre empreendimentos pode surgir. Há ainda um terceiro eixo da pesquisa e extensão para a construção de tipologia dos bloqueios à convergência entre C&TS e EES. Ele diz respeito à dificuldade de comercialização dos produtos, à impossibilidade do acesso ao sistema de crédito e à falta de assistência técnica (ARAÚJO, 2005). Outras dificuldades enfrentadas pelos EESs dizem respeito à baixa escolaridade dos sócios e à falta de costume para as práticas democráticas nos sistemas produtivos (de acordo com o Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária – Sies, do Ministério do Trabalho e Emprego na fase 2004-2016).

Para que se possa concluir algo nesse sentido, foram realizadas pesquisas mais aprofundadas acerca das vantagens oferecidas pela associação em rede – ou pela articulação de uma CPS ou cadeia produtiva solidária – para descobrir em que medida elas contribuem para a resolução dos problemas acima enfrentados pelos empreendimentos econômicos solidários e as perspectivas de estas dificuldades serem equacionadas pelo incremento da cultura tecnológica em várias cadeias produtivas solidárias ou não (HAGUENAUER, 2001; LIANZA e ADDOR, 2005, KELLER, 2002, 2004, 2005; MERTELLO, 2007; RUTKOWSKI, 2005; TAUILLE et al., 2002, 2004).

Diante do quadro anterior, o movimento de C&TS pela tecnologia social enfrenta desafios estruturais para que a sociedade civil reconheça a economia solidária e o movimento sociotécnico. Tal como no caso da justiça de transição para os direitos humanos aviltados visando sua reparação junto aos cidadãos afetados[v], também precisaremos de uma justiça administrativa e econômica de transição para criar as condições legais, constitucionais e infraconstitucionais para que seja criado um novo regime sociopolítico e institucional.

Hoje, este regime é juridicamente imaturo para garantir transferências aos agentes que atuam nos circuitos da economia popular e solidária. O lócusdas políticas de ciência e tecnologia é o que melhor apresenta a tessitura de organizações e atores capazes de romper essas barreiras.

Há cinquenta anos começou no Brasil o investimento público sistemático na pós-graduação e pesquisa para incrementar a pesquisa de Ciência e Tecnologia nas universidades e fomentar sua articulação com as inovações geradoras de tecnologias na indústria. Grande parte do modelo de CTI atual, contudo, não está direcionado para atuar com o tecido social das OPPs. Ao contrário, ele é maciçamente direcionado ao sistema de inovação em ambientes empresariais, conforme destacado anteriormente. No futuro, esse fomento oficial deverá chegar a um termo e ser gradativamente substituído pelos próprios recursos do setor privado (investimentos do empresariado) como tendência mundial.

 Na esfera acadêmica, há uma crescente consciência de que produzir ciência e tecnologia sob a forma das aplicações tecnocientíficas não deve ser um movimento para mergulhar toda a sociedade no risco de produzir ciência para o mercado e abandonar o princípio do conhecimento como valor de uso comum, ou ciência pública (HERSCOVICI, 2007).

Na América Latina, este movimento de consciência entre a comunidade científica e tecnológica deverá se abrir ainda mais para a esfera pública popular como um diálogo da sociedade civil (cuja hegemonia é controlada pelas classes médias cultas ou com longos anos de alfabetização), a exemplo de movimentos sociais similares à Unión de Científicos Comprometidos con la Sociedad y la Naturaleza de América Latina (UCCSNAL)[vi], Scientists Concerned[vii] (EUA) e Sciences Citoyennes[viii](França).

Novas oportunidades começam a ser criadas pela mobilização de grandes capacidades críticas na produção científica gerada pela pesquisa e pelas pós-graduações nas universidades públicas para criar alternativas às políticas de ciência e tecnologia voltadas aos mercados de consumo, em circuitos de aplicações guiados pelas corporações.

As vinculações sob a abordagem C&TS nas universidades operam com inúmeras iniciativas locais e territoriais. Elas buscam implantar experiências de políticas em áreas como software livre, mídias digitais na educação e capacitação profissional para formação profissional, projetos sociotécnicos para a sustentabilidade em municípios no tocante a recursos hídricos, habitação popular, energia, transporte, meio ambiente, saúde e saneamento publico, oficinas de ciências, cultura e artes nos municípios. Entre estes últimos, são relevantes as experiências de reapropriação direta da indústria cultural (cinema e vídeo, fotografia) pelos próprios sujeitos sociais.

A abordagem de C&TS para a tecnologia social no Brasil apresenta de forma exemplar um caso concreto de Política C&TS que poderíamos chamar de pensamento científico societal em oposição a um pensamento tecnocientífico gerencial ou corporativo, oriundo de uma vertente de reforma gerencialista do Estado brasileiro à época da Reforma do Estado no Brasil[ix].

Para adquirir a complexidade requerida pelas demandas sociais por C&TS no país, não existe ainda uma solução clara sob o regime de pluralismo político que orienta as ações setoriais das políticas ministeriais quanto a superar o senso comum que acredita que qualquer um pode ter acesso aos recursos do Estado. Para as organizações produtivas populares, o acesso aos lugares de decisão não é aberto ou democrático – ao contrário, há várias camadas de obstáculos para acessar os recursos estatais.

Organizações produtivas populares (OPPs) enfrentam em geral uma dispersão diante da divisão do trabalho político que não é estritamente oposição púbico-privado (vertical), porquanto operam sob realidades onde predominam redes de redes (horizontais). Em contraposição a estas limitações, os grupos organizados nos circuitos populares buscam desenvolver coalizões informais de mobilização de recursos para ampliar o crescimento de sua influência mediante a multiplicação dos espaços de ação entre redes de redes.

Formam coalizões informais que enfrentam três tipos de resistência (ao tentarem obter mais recursos do Estado ou ampliar políticas públicas que os beneficiem): (i) falta de entidades estatais interessadas em apoiar a economia popular solidária segundo vantagens para seus programas; (ii) membros do congresso (políticos) enxergam as coalizões informais como pouco confiáveis por não apresentarem retorno eleitoral, o que gera fracasso em garantir a legislação e a regulamentação do setor (Eco Pop Sol) no Brasil; (iii) enfrentam grupos empresariais cujos interesses econômicos impedem o acesso aos recursos do Estado das coalizões informais (sobretudo porque isso altera o sistema de relações do trabalho formal devido à entrada em cena de novos atores com direitos e, a seu ver, privilégios diante do mercado de trabalho formalizado).

As iniciativas autogestionárias de produção tiveram origem há pelo menos dois séculos no Ocidente, visando contra-arrestar as tendências destrutivas do regime econômico capitalista. A formação das classes trabalhadoras se dá diante de classes proprietárias burguesas e seus aliados nos territórios que apresentam forte resistência e repressão aos princípios articuladores associativistas. A eles se contrapõe a organização vertical, hierárquica e gerencialista.

Esta contraposição se faz em torno do trabalho associado, que tem se mostrado capaz de assegurar um caráter orgânico da instituição operária e a efetivação de laços de solidariedade com outros grupos sociais (associações de famílias) nos quais os trabalhadores eram também agentes ativos.

Esta base autogestionária abarca na sua origem duas funções que só posteriormente vieram a ser divididas: a organização para a produção dos meios de vida, especialmente através das diversas formas de cooperativismo (no início, principalmente, de produção, consumo e crédito), e a resistência coletiva e política à implantação do capitalismo que passava a dominar todas as esferas da vida social.

Ao substituírem a competição entre os trabalhadores pela solidariedade, e a fragmentação pelo coletivismo, essas formas associativas de produção revelaram um duplo aspecto: de meio e de fim. A autogestão das suas lutas passa a ser vista pelos trabalhadores como indissociável da autogestão da produção e da vida social (FARIA, 2005).

No Brasil, a economia solidária − seja pela perspectiva de redução da pobreza, por meio da geração de renda pelos que se associam em grupos para realizar uma atividade produtiva, seja mediante uma proposta de organização mais justa e solidária da economia − tem apresentado oportunidade histórica: de desenvolver uma vasta experiência de arranjos produtivos locais em instituições e comunidades com o surgimento de um setor em torno de empreendimentos que obedecem aos princípios de democracia, cooperação e igualitarismo, tendo como paradigma a gestão societal para novas formas de conhecimento e desenvolvimento de capacidades.

Mas “os lírios não nascem das leis” (Drummond). Para garantir do Estado condições prévias de igualdade aos que buscam sobrevivência digna nos circuitos populares da economia, é necessário multiplicar o número dos espaços de ação, o que gera um duplo efeito: um número relevante de atores em rede apoia uma mesma política; esse número, contudo, gera fragmentação. No que deveria ser uma divisão do trabalho e da luta por direitos públicos diante de interesses privados (dos empresários e seus agentes que controlam o mercado trabalho), a divisão política mais importante passa a ser as relações rede-redes.

Esta é uma das razões, a meu ver, do fracasso no período 2004-2016 das coalizões informais em torno da economia popular e solidária para agasalhar programas continuados com soluções sociotécnicas desde incentivos fiscais, isenções e políticas de fomento econômico produtivas para as organizações produtivas populares (OPPs).

O movimento não logrou criar um setor distinto do regime legal que orienta o setor capitalista (mercado formal de trabalho que regulamenta a venda da força de trabalho). As esperanças de que haja uma categoria formalizada como OPP geram a expectativa (e o sonho) de que elas podem prosperar em grande escala em torno dos arranjos e redes atuais de empreendimentos produtivos coletivos, cooperativas populares, redes de produção-consumo-comercialização, instituições financeiras locais (microcrédito) voltadas para empreendimentos populares solidários, empresas recuperadas por trabalhadores organizados em autogestão, cooperativas de agricultura familiar, cooperativas de prestação de serviços, entre outras (METELLO, 2007, CATTANI, 2003, SINGER, 2002, SANTOS, 1999, 2002, 2004, VALLE, 2002, PARREIRAS, 2007).

As OPPs encontram-se diante de quatro desafios para gerar internamente, de maneira solidária, relações comerciais, técnicas e socioculturais, ou quando necessitam vender seus produtos ou prestar seus serviços. Eles têm 60 a 70% de suas transações sujeitas à lógica do mercado formal que captura a energia, o labor, a inteligência e a experiência de resolução no senso comum do dia a dia.

Ensino médio e tecnológico

Desde os anos 2004, a Universidade pública e os Institutos Federais Tecnológicos estão em processo de abertura para colocar em prática e avaliar um amplo leque de projetos e ações que utilizam o regime interdisciplinar a fim de realizar políticas científicas e tecnológicas. A interdisciplinaridade poderá fornecer soluções na política de pesquisa e extensão no país. Um dos fundamentos da tecnologia social e da adequação sociotécnica é promover um ambiente social para esta integração ou diálogo entre saberes, fazeres de base popular e o conhecimento científico sob bases interdisciplinares.

Como ele se dará e poderá ser mais aprofundado? Pesquisadores nas universidades compartilham, por diferentes motivações, o postulado da inclusão social, implícito na troca de ciência e saberes? Qual a dimensão cognitiva envolvida na lógica e racionalidade instrumental da pesquisa científica diante dos potenciais de vinculação às tecnologias sociais já mapeadas?

O fomento aos mercados diferenciados mediante compras públicas

O segundo desafio tem relação direta com a dimensão social dos mercados. Trata-se de criar regras utilitaristas ou mercatórias presentes nas normas de produção e serviços capazes de absorver as tecnologias sociais. Qual o regime de mercado adequado aos movimentos de agricultura orgânica e agroecologia, por exemplo? Como vincular isto aos assentamentos rurais e movimentos da reforma agrária?

Como situar o trabalho de pesquisa e extensão para a gestão do mercado da agricultura familiar agroecológica? Como analisar a formação de um mercado de serviços para modalidades de urbanização e de saneamento ambiental em favelas com tecnologia social de saneamento condominial?

Normas técnicas de comercialização e consumo, normas ambientais e fomento a marcas regionais

O terceiro desafio concerne às normas técnicas das tecnologias sociais na alimentação, processos produtivos, técnicas e equipamentos adaptados (selos de certificação participativa, socioambiental, geração de ocupação e renda, desenvolvimento rural sustentável), além dos regulamentos sanitários e de saúde humana, necessários para permitir sua circulação em mercados mais amplos.

A ciência circula por meio das pessoas

O quarto desafio é regulamentar o trânsito dos pesquisadores científico-tecnológicos entre as comunidades populares, e do acesso de seus filhos à Universidade antes monopólio da elite branca. Trata-se da construção de uma política nacional de extensão tecnológica, ora em curso por meio da política de cotas e abertura para filhos e filhas das camadas populares, assim como pela extraordinária perspectiva de expansão da estrutura de educação profissional e tecnológica no Brasil (Institutos Federais de Tecnologia). Novas formas de extensão surgirão por meio de residência dos estudantes universitários junto aos ambientes populares na base da pirâmide brasileira com os filhos das classes médias e os das classes trabalhadoras, aproximando-se das comunidades populares no país. [x]

*Ricardo Neder, sociólogo e economista político, é professor da UnB e editor-chefe da Revista Ciência e Tecnologia Social.

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[i]. A economia de vizinhança é uma modalidade de economia solidária que se expressa, por exemplo, nos clubes de troca, associações de moradores e clubes de mães. O sujeito social neste caso é territorialmente próximo ou vizinho por laços de parentesco, amizade ou compadrio.

[ii]. Ver, a respeito, contribuições sociológicas e antropológicas que identificaram cerca de trinta tipos diferentes de práticas de tecnologia social em comunidades específicas no Brasil (cf. Alfredo Wagner, www.ufam.br. Departamento de Antropologia) ameaçadas por manifestações do racismo ambiental. Acessar: http://racismoambiental.net.br/quem-somos/. Trata-se de pesquisa-ação e movimento social em torno do pressuposto de que, no modelo vigente de “desenvolvimento”, a destruição do meio ambiente e dos espaços coletivos de vida e de trabalho, assim como o desrespeito à cidadania e ao ser humano, são predominantes onde o Estado não pode obstar a assimetria de direitos, caso das comunidades afastadas em locais onde vivem quilombolas, povos indígenas e outras comunidades tradicionais. Este processo atinge, da mesma forma, populações negras e migrantes, em sua maioria provenientes da região Nordeste, que vivem em situação de risco nas grandes e pequenas cidades urbanizadas do Brasil, mas onde esta lógica da (as)simetria também se manifesta nos territórios tidos como periferias.

[iii]. O argumento aqui é simples: sempre haverá algum grau de criação para ambientes de tecnologia social se forem adotados programas capazes de qualificar as redes técnicas com a sabedoria própria da primeira vertente, que é valorizar o sujeito social. Toda tecnologia social depende deste interacionismo. A participação popular qualificada envolve a criação destes ambientes (TRAVASSOS, 2016). Depoimentos que ouvi de participantes populares e técnicos do programa sobre cisternas no semiárido dizem que o pedreiro ou o pessoal que constrói as cisternas com as famílias deve ser mobilizado na economia de vizinhança da própria comunidade. Se não existir, ele deverá ser formado para dar origem às trocas com as comunidades em torno da tecnologia social.

[iv]. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta que o setor privado lidera os investimentos em P&D no mundo. Em 2017, os Estados Unidos investiram US$ 548 bilhões em P&D, sendo 62,5% do investimento realizado por empresas privadas e 23,1% pelo setor público. Segundo pesquisador da área, “apesar da grande diferença da produtividade média quando são comparadas as empresas brasileiras e europeias, é possível observar que as companhias industriais e de serviços brasileiras não estão paradas. O número de empresas inovadoras que procuram lançar novos produtos e processos no mercado é relativamente grande no Brasil, quando comparado ao de países europeus. Na Europa, 56 mil das 346,7 mil firmas lançaram produtos ou processos novos no mercado. No Brasil, 38,6 mil de um total de 113,4 mil inovaram. O dinamismo da economia brasileira também pode ser observado nas empresas que, apesar de não terem lançado produtos e processos novos no mercado, implementaram inovações organizacionais ou de marketing. São 36 mil empresas no Brasil e 33 mil empresas nos 15 países da EU” (DE NEGRI, 2022).

[v]. Tal definição foi inaugurada no Relatório do Secretário-Geral da ONU ao Conselho de Segurança sobre o tema da rule of Law e Justiça de Transição. Report of the Secretary-General, “The rule of Law and transitional justice in conflict and post-conflict societies”, S/2004/616, par. 8: “The notion of ‘transitional justice’ discussed in the present report comprises the full range of processes and mechanisms associated with a society’s attempts to come to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to ensure accountability, serve justice and achieve reconciliation” (Fonte: https://digitallibrary.un.org/record/527647). São quatro os pilares da justiça de transição: Direito à Memória e à Verdade; Reparação; Responsabilização Penal; Reforma das Instituições de Segurança.

[vi]. https://uccsnal.org/

[vii]. http://www.ucsusa.org/

[viii]. http://sciencescitoyennes.org/

[ix]. Vale lembrar que (em 1994) “(…) não havia no cenário político uma visão unívoca de reforma, pois também estava em curso um novo paradigma reformista: o Estado novíssimo movimento social (…) que rearticula o Estado e a sociedade, combinando democracia representativa e participativa (…). Na realidade, a vertente societal (da reforma do Estado, RTN) não é monopólio de um partido ou força política, nem apresenta a mesma clareza e consenso da vertente gerencial em relação aos objetivos e características de seu projeto político” (PAULA, 2005).

[x]. Este artigo é uma versão atualizada de artigo publicado em 2008: R.T. Neder. Estado e sociedade civil diante da nova economia solidária no Brasil (Qual Governança e Controlabilidade?). Revista do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1 set. 2008. NEDER, R.T. Política científica & tecnológica: experiências contra hegemônicas na universidade (Fundamentos CTS – Ciência, Tecnologia, Sociedade).João Pessoa/PB-Brasília: Eduepb: Editora Universidade Estadual da Paraíba; Marília : Lutas Anticapital, 2023.cap.10 (pp.273-288)


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