Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO*
As críticas da esquerda ao governo Lula misturam questões válidas (austeridade, acordos comerciais) com generalizações equivocadas. Priorizar combate ao rentismo e ao fascismo – não purismos ideológicos – é essencial para avançar
1.
Críticas à política econômica do atual governo brasileiro têm sido freqüentes na esquerda, e se refletem nesta revista. Comento a seguir dois textos nesta linha, começando por “Donald Trump, o mundo e adjacências”, de Gilberto Maringoni, postado no site A Terra é Redonda, que assim avalia o governo desta nossa “adjacência” do mundo:
“Reafirmam-se dogmas de austeridade. Aceita-se um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Européia que pode impactar ainda mais a indústria brasileira, as turbulências abrem oportunidades para a venda de soja para a China, o ministro da Fazenda vai aos EUA negociar favores para que as big techs instalem data centers no Brasil e ampliam-se políticas de concessões para campos de petróleo e empresas de energia, entre outras medidas”.
“É isso mesmo? Face à destruição de parâmetros civilizatórios, a saída é desmontar o Estado e voltar ao bom e velho fazendão de país colonial. A vida se complica quando recuos e falta de ousadia aparecem encobertos pelo duvidoso manto da sensatez e da aversão ao risco.”
Não tenho elementos para avaliar as negociações de Fernando Haddad nos EUA. Sei que, nos mesmos dias, Lula mantinha negociações na Rússia e na China. A pluralidade de parceiros é positiva, sem entrar no mérito dos acordos.
Há pontos muito importantes nas críticas de Gilberto Maringoni. Em particular, sua visão sobre o acordo Mercosul-União Europeia é referendada pelo conjunto dos economistas desenvolvimentistas. Mas nem todas as críticas se aplicam.
Sendo abertas oportunidades para maior venda de soja para a China, não há razão para desperdiçá-las. A exportação agrícola não é necessariamente antagônica ao desenvolvimento industrial. Não nos condena, por si mesma, a voltarmos ao “fazendão de país colonial”, tanto é que nem EUA ou Rússia negligenciam as exportações agrícolas. Cabe aproveitar o maior ganho de divisas com a soja, evitando que isto estimule desmatamento ou desabastecimento do mercado interno.
A crítica à austeridade fiscal é mais recorrente, pois tem sido usada, de fato, como dogma pelo mercado financeiro e, portanto, pela imprensa e pela maioria congressual que o servem, bloqueando políticas contra-cíclicas.
Mas austeridade, responsabilidade ou equilíbrio fiscal é uma necessidade objetiva, no sentido de que desequilíbrios fiscais ou aumentam a dívida pública, comprometendo orçamentos futuros, ou requerem maior emissão monetária, que pode promover inflação ou hiper-inflação, se descontrolada. O único país que tem conseguido sustentar sucessivos déficits orçamentários (além dos déficits comerciais) são os EUA, por razões muito específicas, e tudo indica estarmos presenciando os estertores desta singularidade.
O governo Lula proclamou sua adesão ao princípio da responsabilidade fiscal, e substituiu o draconiano teto constitucional de gastos de Temer pelo arcabouço fiscal, que permite aumento de gastos conforme o aumento de arrecadação. Em seguida, avançou reformas fiscais relevantes. A primeira envolveu uma racionalização tributária, adotando impostos sobre o valor adicionado em cada empresa em substituição dos impostos sobre o valor acumulado de cada produto. De maior relevância direta para os trabalhadores, a reforma promoveu o corte dos impostos sobre os produtos da cesta básica.
O arcabouço fiscal foi o ponto mais criticado entre os desenvolvimentistas, que viam espaço para maior investimento público. Seria um exemplo da “falta de ousadia” que Gilberto Maringoni critica, colocando a questão em termos subjetivos, ideológicos. Entretanto, há razões objetivas para as limitações criticadas.
Todas estas medidas precisaram ser negociadas com o Congresso, e não teriam passado se não fossem efetivamente comprometidas com o equilíbrio fiscal, levando em conta a compreensão ali dominante do tema, que é a da ortodoxia monetarista dogmatizada pelo sistema financeiro. O mesmo valeu para o nome levado ao Banco Central.
Em outras palavras, todas estas medidas foram limitadas pela correlação de forças. Sem consideração da correlação de forças não se faz política nem análise política realista, científica, materialista. É inegável existirem, entre os membros de um governo de amplíssima frente, posicionamentos ideológicos opostos a ações mais robustas, mas isso também faz parte da correlação de forças. Entretanto, a correlação de forças pode ser alterada com a própria luta.
Foi agora encaminhada outra parte da reforma fiscal: eliminação do Imposto de Renda para quem ganha até R$5.000,00 e redução para os ganhos até R$7.000,00, descontos a serem compensados por cobrança mínima de 10% para quem ganha mais do que R$50.000,00. A cobrança dos maiores rendimentos vem encontrando resistências no “mercado” e no Congresso, ainda que seja uma correção muito moderada da absurda isenção de impostos em certos ganhos financeiros.
Destaque-se: esta cobrança sobre os maiores rendimentos, como compensação do desconto para os menores, é uma exigência de equilíbrio fiscal. É significativo ver críticas a isto dentre aqueles que mais bradam por austeridade.
Por outro lado, nada justifica que setores de esquerda não divulguem e defendam esta medida de justiça social, de equilíbrio fiscal e de ampla aprovação popular. Se esta proposta for vigorosamente defendida, pode emparedar e direita num momento pré-eleitoral. Se não for vitoriosa nesta legislatura, pela força da direita e da ultra-direita, a reforma do Imposto de Renda tem tudo para transformar-se em tema eleitoral capaz de fortalecer a esquerda e ser vitoriosa na próxima legislatura. O mesmo se aplica à luta contra a escala de trabalho 6 x 1, que não foi iniciativa do governo.
2.
Com um estilo diferente de Gilberto Maringoni, Bruno Resck assim teoriza no artigo “Entre a conciliação e a submissão”, também postado em A Terra é Redonda: “De 1989 até os dias atuais, o Brasil alterna governos entre duas vertentes do neoliberalismo: o neoliberalismo de choque (Fernando Collor, Fernando Henrique, Michel Temer e Jair Bolsonaro) e o neoliberalismo progressista (Lula, Dilma Roussef)”.
“O neoliberalismo de choque, baseado nas diretrizes do Consenso de Washington (1989), é marcado pela adoção do ‘tripé econômico’ (superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação), privatizações em massa e reformas trabalhistas e previdenciárias. Já o neoliberalismo progressista mantém as estruturas neoliberais, mas combina medidas sociais e desenvolvimentistas, como o fortalecimento relativo dos bancos públicos e expansão de programas sociais e de transferência de renda.”
O neoliberalismo surgiu como busca de solução da crise do capital pelo aumento da exploração dos trabalhadores, através da redução dos gastos públicos com ações sociais e da desregulamentação das relações de trabalho. Ora, o conjunto das medidas sociais e desenvolvimentistas citadas não “combina” com o neoliberalismo, vai no sentido oposto, é antagônico a ele.
Além disso, não apenas bancos públicos foram fortalecidos por Lula e Dilma, mas também empresas públicas produtivas como a Petrobrás. Estes governos resistiram a privatizações. Fizeram, sim, concessões de estradas e aeroportos, que podem ser reavaliadas se os serviços não forem adequados, enquanto privatização é alienação plena da empresa.
Essa equalização entre o neoliberalismo propriamente dito e as políticas dos governos progressistas segue por todo texto, incluindo a pérola: “Em quase quatro décadas de neoliberalismo, o Brasil colheu resultados preocupantes: estagnação econômica crônica, a incapacidade do Estado em ampliar e melhorar a oferta de serviços públicos, uma crise de representatividade política e uma crise de governabilidade da democracia (…) tornando-se terreno fértil para a ascensão da extrema direita autoritária.”
Assim, através de uma avaliação ligeira, simplista, os governos Lula e Dilma tornam-se co-responsáveis por aqueles que procuraram destruí-los.
Forma-se outra idéia relembrando os acontecimentos. Os governos Lula e Dilma Rousseff foram objeto de acirrada crítica pela imprensa comercial desde o início, com várias tentativas de criação de escândalos. O escândalo do Mensalão, em 2005, causou o ostracismo de figuras do porte de José Dirceu e José Genoino, mas não evitou a continuação e o fortalecimento do governo até 2013. Outro escândalo, o Petrolão, iniciado em 2014, dificultou a reeleição de Dilma Rousseff e foi fatal para seu segundo governo.
O facho-bolsonarismo se nutriu precisamente do novo senso comum construído pela imprensa liberal identificando o PT e a esquerda à corrupção. A crise de representatividade política e a crise de governabilidade foram construídas politicamente, nas condições dadas pela conjuntura econômica.
Entre a resiliência do governo petista ao primeiro grande escândalo e a derrota diante do segundo ocorreu muita coisa, começando pela crise bancária internacional de 2008.
A reação do governo Lula à crise de 2008 foi de estímulo ao crescimento, incluindo isenção de impostos de bens duráveis, sem que tenha havido a esperada ampliação do investimento privado. Dessa forma, o ímpeto de crescimento de 2009 foi se esgotando rapidamente. Para retomar o crescimento, o governo Dilma Rousseff iniciou em 2012 forte redução de juros, tanto através da Selic pelo Banco Central quanto pela redução dos spreads bancários do Banco do Brasil e da Caixa, forçando pela concorrência a queda também nos bancos privados.
Dilma Rousseff foi levada a recuar em 2013, mas a imprensa liberal jamais lhe perdoaria tal ousadia. Seguiram-se as jornadas de junho, a difícil campanha eleitoral de 2014 e o “Fora Dilma”.
Com Dilma Rousseff enfraquecida, serviçais do imperialismo derrubaram o monopólio do pré-sal para a Petrobras, e destruíram nossa engenharia civil pesada, que era internacionalmente competitiva. Depois, com Dilma Rousseff fora do governo, a contra-revolução isolou a esquerda, roubou-nos a CLT e a Previdência, enfraqueceu os sindicatos, impôs a autonomia do Banco Central, consolidou a ultra-direita e gerou a hipertrofia de um Congresso que avançou gulosamente sobre o Orçamento e agora afronta o Supremo. Não faz sentido abstrair esta intensa luta política, ou interpretá-la como luta entre vertentes do mesmo neoliberalismo.
Essa equalização entre o neoliberalismo propriamente dito e as políticas dos governos progressistas não é apenas conceitualmente falsa, ela desmobiliza a militância progressista frente a lutas muito relevantes. Assim como o bombardeio criticista.
Em sua conclusão, Bruno Resck joga perguntas ao futuro: “A questão que permanece é: há espaço para uma alternativa real ao neoliberalismo no Brasil? Ou a lógica da financeirização e da austeridade tornou-se tão enraizada que qualquer tentativa de rompimento é imediatamente neutralizada pelas forças de mercado e pelas instituições políticas? O lulopetismo terá forças para liderar esta alternativa, ou haverá de ter um novo arranjo, uma nova “frente ampla” de esquerda para executar tal tarefa?”
Estas questões parecem colocadas por um espectador remoto dos fatos. Para quem está preocupado em contribuir para a luta política popular e democrática, a questão que permanece é outra: o que fazer?
Havia gente de esquerda encantada com as jornadas de 2013. Até nas marchas do “Fora Dilma” havia grupos empunhando bandeiras vermelhas, com justificativas muito parecidas ao discurso de Bruno Resck. Pensavam, talvez, em ultrapassar revolucionariamente as limitações de um governo reformista. Deu no que deu. Por isto, a questão é, concretamente: o que fazer para avançar nas conquistas populares e na consciência popular, expressando as críticas necessárias ao governo, sem fortalecer as oposições neoliberal e fascista?
O fundamental desta questão é o foco: é necessário que a luta seja orientada precisamente contra os inimigos principais do avanço, que são o rentismo e o fascismo, e não o governo mais avançado que conseguimos eleger, por menos avançado que nos pareça.
Se estamos numa correlação de forças desfavorável, trata-se de mudar a correlação de forças, enfrentando as lutas concretas: apoiar a reforma do Imposto de Renda, apoiar o fim da escala 6×1, e enfrentar a doutrinação liberal, desmistificando a política de controle da inflação pelo aumento de juros, esclarecendo os danos da privatização de setores estratégicos, da suposta independência do Banco Central etc.
As necessidades não são apenas econômicas. Há uma perigosa confrontação da Câmara ao STF pela aliança dos bolsonaristas, preocupados em salvar os golpistas, com o Centrão, preocupado com as emendas secretas e com a sorte dos que estão sendo apanhados pela PF por causa delas. É necessário apoiar as medidas moralizadoras do Supremo contra a hipertrofia do Legislativo, ainda que o Supremo venha tomando decisões conservadoras nos campos das relações trabalhistas e das privatizações. E é necessário regulamentar as redes sociais, fortalecer a imprensa progressista.
E é necessário fazer isto tudo buscando a máxima objetividade e precisão. Aqui é necessária uma autocrítica.
No artigo “A bofetada do Banco Central”, critico o aumento exorbitante dos juros no Brasil e sua justificativa monetarista ortodoxa, baseado, de memória, em Celso Furtado, Ignácio Rangel e no Caio Prado Júnior de Esboço dos Fundamentos da Teoria Econômica e de Dialética do Conhecimento, cujo viés filosófico denuncia o caráter mecanicista daquela ortodoxia.
Porém, a certa altura do texto, comento: “O serviço da dívida compromete este ano (2024) cerca de 870 bilhões de Reais, algo em torno de 8% do PIB brasileiro, que será incorporado ao total da dívida, pois não haverá superávit primário.”
Isso não é correto. Além da arrecadação fiscal, existem fontes de recursos não incorporadas ao balanço primário, particularmente os lucros das estatais e o direito de senhoriagem, isto é, o valor do dinheiro novo lançado no mercado pelo governo. Estas fontes totalizaram cerca de 500 bilhões de Reais em 2024, amortecendo significativamente o crescimento da dívida pública, que se tornou compatível com o crescimento do PIB.
Essa correção não elimina a gravidade da sucção de recursos dos trabalhadores e dos setores produtivos pela casta financeira “improdutiva, parasitária e reacionária”. Mas retira a dramaticidade da evolução da dívida pública, que não está descontrolada no Brasil, como a imprensa comercial gosta de pintar.
No mais, o artigo continua pertinente e atual, particularmente, pelas renovadas bofetadas do Banco Central.
*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor de Modos de ver a produção do Brasil (Autores Associados\EDUC). [https://amzn.to/40FsVgH]
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