Por ANNATERESA FABRIS*
Considerações sobre a exposição de fotografias de Helena Martins-Costa, em cartaz na cidade de São Paulo
A era da reprodutibilidade técnica analisada com argúcia por Walter Benjamin teve consequências inesperadas: um excesso de imagens, que levou a um descontrole por meio do qual o poder pretende exercer o controle da sociedade.
O mundo utópico auspiciado pelo pensador alemão, caracterizado pela “politização da estética”, deu lugar a um universo no qual as imagens visuais competem pelo espaço e pela atenção das pessoas, tendo como consequência “uma crise da visibilidade [….] próxima do grau zero da comunicabilidade”, sinalizando que houve um desvio de rota no projeto de democratização do acesso à informação e ao conhecimento. Nesse processo, a reprodutibilidade técnica serviu para “esvaziar o potencial revelador e esclarecedor das imagens por meio delas próprias e seu uso exacerbado e indiscriminado”.
Como esclarece o autor desse diagnóstico, Norval Baitello Junior, a crise da visibilidade não é uma crise das imagens, mas “uma rarefação de sua capacidade de apelo. Quando o apelo entra em crise, são necessárias mais e mais imagens para se alcançar os mesmos efeitos. O que se tem então é uma descontrolada reprodutibilidade”. O esvaziamento das imagens é um processo crítico, pois aponta para o esvaziamento dos valores de referência de uma cultura e de seus símbolos.
Uma saída possível dessa situação é o esquecimento, definido pelo autor “uma parte constitutiva da memória cultural, um depósito de matéria desgastada e descartada em estado de espera para sua reciclagem e reutilização”. Nessa perspectiva, o esquecimento constitui “uma forma de antídoto para a profusão e inflação das imagens”, sendo indispensável num panorama dominado pelo descontrole e pelo excesso de reprodução.
Arquivista contumaz de fotografias descartadas, Helena Martins Costa realiza um trabalho incansável de ressignificação graças ao qual confere uma nova visibilidade a imagens que se tornaram invisíveis para um olhar cansado pela exposição contínua a estímulos visuais de todo tipo.
Bombardeado por logotipos, marcas e imagens “desconectadas do seu ambiente, do seu entorno, da sua história” (Baitello Junior), esse olhar, contudo, surpreende-se com os nexos e as relações propostos por Disparate, que atuam na contramão da lógica da inflação visual.
Constituído de fotografias anônimas e de frames de vídeos de touradas, o conjunto concebido pela artista requer um tempo demorado de decifração para detectar as conexões existentes entre imagens disparatadas e, sobretudo, para perceber as transformações que foram inseridas nelas.
O tempo demorado não tem a ver apenas com o ato de fruição. Ele está associado ao processo de criação da artista, que não tem pressa em buscar novas possibilidades visuais para as imagens de que se apropria, deixando que o tempo e as circunstâncias exteriores ao trabalho artístico indiquem os caminhos a seguir.
Um depoimento recente é bem significativo nesse sentido: “É curioso que na minha prática eu preciso primeiro esquecer por um bom tempo as imagens que encontro, deixando-as misturadas, guardadas sem um lugar próprio até que eu esteja pronta para conseguir intuir um novo sentido. Esse jeito de guardar parece atender uma certa vontade de sedimentação, como se eu precisasse assegurar que o tempo e o acaso seguiriam agindo sobre elas”.
O processo que culmina em Disparate remonta a 2010, quando Helena Martins-Costa começa a colecionar vídeos de touros e touradas. O que a motivava naquele momento era o interesse em “captar imagens em que homem e touro se enfrentavam, e nesse enfrentamento ocorria a fusão”. O “movimento explosivo do touro”, o instante em que ele consegue virar o jogo estavam também no horizonte da artista que, naquele momento, se reportava às reflexões de Michel Leiris sobre a tourada.
Em Espelho da tauromaquia (Miroir de la tauromachie, 1938), o autor apresentava a tourada como um exercício singular no qual o toureiro enfrentava a si mesmo em dois sentidos: obrigado a conhecer e reconhecer gestos e tensões dentro de si mesmo, era também obrigado a conhecer a fera que iria enfrentar e projetar-se nela para poder prever seus movimentos, calcular suas investidas e driblar a morte que ela trazia nos chifres.
Essa reflexão sobre a tourada como uma cerimônia sacrificial, que se aproxima do sagrado, do erótico e do ato de criação pela escrita, tinha sido antecipada pela resenha de uma exposição de André Masson (1937), autor dos três desenhos que acompanhavam a publicação de 1938.[1]
Nela, Leiris assim caracterizava a tauromaquia: “Gravitação hostil do homem e da fera, assassinato e, ao mesmo tempo, fusão, geometria cujos teoremas só admitem provas ativas pelo ferro e pelo sangue, coincidência de um suave arabesco com um bloco obscuro de frenesi, a tourada, festa sacrificial e arte maior, ilustra bem o duelo do artista com o mundo exterior, quando, arrancando a própria pele e ficando de pé diante da obra a criar em posição de esfolado, tenta domar a natureza pegando-a pelas dobras palpitantes dessa capa e, novo Dâmocles, tenta abolir a morte tornando-se uma arma cintilante da ameaça que pesava, desde sempre, sobre ele”.
Apesar das diferentes camadas de significação presentes em Espelho da tauromaquia, dentre as quais a luta do criador com a própria obra e consigo mesmo, as imagens de tourada ficaram arquivadas ao longo de uma década até encontrarem seu lugar em virtude de circunstâncias exteriores. Em 2020, a artista volta a elas, com uma nova motivação: as imagens pareciam “reveladas pelo absurdo da pandemia, ao mesmo tempo em que os discursos de ódio e a violência se tornavam mais vigorosos e frequentes com a ascensão da extrema direita no Brasil e pelo resto do planeta”. Nesse clima político tempestuoso, a tourada passa a ser vista como um ritual “que envolve trazer à tona a fera, enfrentá-la e aniquilá-la”.
O animal e o homem constituem uma mesma criatura, como se “o processo ritualístico fosse capaz de arrancar a bestialidade de dentro do homem, torná-la externa para conseguir exterminá-la, até que novamente seja necessária uma nova encenação”. Essa especulação sobre o “outro”, sobre o “estranho” leva Martins-Costa a buscar em seus “arquivos esquecidos” a fotografia de uma luta, desencadeando um processo de procura de outras imagens que, modificadas, constituirão a série Disparate.

O ano em que a nova série da artista começa a ser concebida é curiosamente o mesmo ano em que é lançado no Brasil o livro Contra o ódio, de Carolin Emcke[2], defesa apaixonada de uma sociedade pluralista, avessa ao fanatismo, ao racismo e ao sentimento antidemocrático e, portanto, aberta ao diálogo.
A capa da edição brasileira é muito significativa daquele momento particular vivido pela humanidade: um homem vermelho sujeita um homem amarelo ao prender seu pescoço com a perna esquerda. Vestindo calções, os dois lutadores configuram um ser híbrido, fruto da fusão violenta de seus corpos, que nem mesmo os registros cromáticos diferentes conseguem pôr em xeque.
O efeito de estranhamento é reforçado pela falta de feições do lutador vermelho e pelo ocultamento do rosto do seu contendor, levando o observador a concentrar sua atenção no emaranhado constituído por dois corpos anônimos.[3] A artista suíça Julia Geiser, autora da capa, reforça a sensação de um corpo único no marcador que acompanha o livro: nele se veem apenas uma parte do tronco vermelho e o pescoço amarelo preso na perna.

Das imagens de Disparate desprende-se uma violência sutil, realçada pela sombra que a artista injetou nelas por meio de suas intervenções: decapitação das figuras e constituição de um grotesco corpo único, a não ser no caso da menina fotografada de pernas para o ar, com a saia cobrindo seu rosto. Na psicologia analítica, a sombra representa a parte primitiva, animalesca da personalidade, o local em que estão aninhados desejos considerados violentos e imorais, que são reprimidos, recalcados e ignorados pelo ego consciente.
A ideia singular de esquecimento defendida por Baitello Junior pode ser detectada no resgate daquilo que é deixado na penumbra. O que representava um treino, um flagrante de competição ou o embate entre homem e touro converte-se em imagens de conflitos irresolúveis, de tensões irreconciliáveis, já que os contendores possuem um corpo único e indivisível, que não permite vislumbrar nenhuma conciliação.
Essa atmosfera de violência só não está presente em três imagens que dão a ver figuras de pernas para o ar. Uma delas, a da menina com o rosto coberto pela vestimenta, sofreu uma intervenção mínima: a supressão da cinta-liga para evitar a presença de traços pretos nas pernas. A estranheza das outras duas imagens, que sofreram o processo de decapitação, é despertada pelas posturas inusuais que não disfarçam o esforço físico exigido pelo exercício.

Numa sociedade caracterizada pela inflação narcísica, os seres grotescos de Martins-Costa configuram-se como uma resposta sarcástica à exacerbação da aparência, pois são dotados de corpos implausíveis, nos quais convivem o eu e sua sombra, o humano e o animal, o possível e o impossível. A questão da alteridade, que permeava a reflexão de Leiris, é colocada em pauta na série atual por meio dessas figuras estranhas, que trazem à mente a necessidade de lidar com outros aspectos de si mesmo, de correr riscos e de se expor ao real, replicando o gesto do toureiro na arena, que enfrenta a ameaça representada pelo touro como figura da alteridade e do sacrifício.
A aura de estranheza que emana dessas imagens manipuladas e transformadas não pode ser dissociada da opção da artista pelo preto e branco, que a levou a retirar a cor das cenas de tourada[4] para salientar o aspecto sombrio de lutas destituídas de qualquer possibilidade de negociação e conciliação.
Ao privilegiar a sobriedade do preto e branco, Martins-Costa acaba por subscrever uma observação de Roland Barthes, que detecta nele a “verdade original” da fotografia. O autor, que rejeita o “ornato postiço” da fotografia colorida, localiza no preto e branco “a certeza de que o corpo fotografado vem me tocar com seus próprios raios, e não com uma luz acrescenta depois”. Se o preto e branco representa a luz que emana dos corpos fotografados, ele é também a cor da memória, “essa realidade interiorizada”, como escreve o protagonista de El estrangulador (1994), de Manuel Vázquez Montalbán.
A essas observações pode ser acrescentada a ideia de que a imagem em preto e branco possui um elevado grau de abstração, que leva o observador a concentrar-se em suas características intrínsecas, particularmente sua diferença em relação ao referente. No caso de Disparate, essa abstração é evidente no caráter escultórico dos corpos cobertos de lama, que perdem o aspecto humano para converter-se numa estátua misteriosa; nas coreografias das cenas de judô, dominadas por fortes contrastes luminosos; no predomínio da massa escura do animal nas tomadas das touradas, que convidam a olhar para o real a partir de novos pontos de vista.
Outro motivo pela escolha bicolor é apontado pela própria artista, que lembra um diálogo com Francisco de Goya ao longo do processo, centrado nas pinturas negras (1819-1823) e nas séries de gravuras Os caprichos (1799) e Os disparates ou Os provérbios (1815-1824), dominadas por uma gama cromaticamente escura no caso das primeiras e por fortes contrastes de luz e sombra no das segundas.
Além disso, nas obras do pintor espanhol se veem rostos e corpos caricaturais e grotescos, visões oníricas de seres estranhos e absurdos, cenas inexplicáveis que parecem arrancadas de pesadelos, que o colocam, sem dúvidas, entre os inspiradores da concepção visual que preside o último trabalho de Martins-Costa.
Poderia ser também lembrado um quadro de c. 1794, Pátio com lunáticos, definido por Rose-Marie e Rainer Hagen uma “visão sombria de corpos humanos sem razão humana”, no qual se veem dois homens nus lutando e configurando quase uma estrutura única e indivisível. Outro diálogo lembrado pela artista é com Maria Martins, cuja escultura se pauta por uma deformação crescente da figura humana que pode chegar à desfiguração em prol do surgimento de outra forma próxima do animal ou do vegetal.
Os disparates de Goya guardam uma semelhança com Disparate de Martins-Costa, se for lembrado que eles aludiam, em chave alegórica ou simbólica, aos abusos cometidos por um regime opressor. Outra série de gravuras do artista, Desastres da guerra (1810-1815), partilha com a série brasileira a denúncia de uma violência que provém dos dois lados em luta, não sendo possível determinar em diversos momentos o responsável pelos horrores que vitimam seres inermes.
O conjunto em exposição na Casa de Cultura do Parque teve, num primeiro momento, o título de Movida, provavelmente por causa dos frames de vídeo, que remetem a um de seus significados no idioma espanhol, situação problemática. Recebeu, em seguida, a designação de Disparates e, finalmente, de Quimeras, em virtude das manipulações feitas nas fotografias, que produziram seres antropozoomórficos, e da união entre os corpos do touro e do toureiro nas imagens captadas em vídeo.
Das manipulações surgiram “figuras quadrúpedes”, mais parecidas com um monstro ou um animal, que permitiram concretizar a vontade de “tratar de uma certa bestialidade no [ser] humano”. No final do processo impôs-se o título Disparate, pois se trata de um termo que “não define muita coisa, deixando, assim um espaço para que todos os possíveis sentidos que o trabalho possa abarcar, possam vir à tona”.
Em português, o termo disparate designa aquilo que é contrário à razão, à sensatez, ao bom senso, aquilo que é absurdo, demonstrando que Martins-Costa em seu trabalho de reciclagem de imagens que tematizavam momentos de luta retirou delas o significado agonístico para convertê-las em símbolos de uma situação histórica precisa, na qual “o sono da razão produz monstros”, como reza o título de uma das gravuras de Os caprichos.
Além de convidar a refletir sobre os alcances da polarização, que produz figuras híbridas e indistintas, Helena Martins-Costa demonstra que é possível fazer frente à crise da visibilidade com imagens “sobreviventes”, provenientes daquele depósito de materiais descartados que constitui a memória cultural, conferindo-lhes novos significados e novas formas de existência.
Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).
Referência
Disparate – Helena Martins-Costa
22 de março – 29 de junho de 2025
Casa de Cultura do Parque
Avenida Professor Fonseca Rodrigues, 1300 – Alto de Pinheiros – São Paulo
Qua – Dom e Feriados: 11hs – 18 hs.
Bibliografia
BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia: reflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia; trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
HAGEN, Rose-Marie: HAGEN, Rainer. Francisco Goya, 1746-1828. Köln: Taschen, 2003.
LEIRIS, Michel. “Espagne 1934-1936”. In: _______. Brisées. Paris: Gallimard, 1992. _______. Espelho da tauromaquia.; trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
MARTINS-COSTA, Helena. “E-mail a Annateresa Fabris”, 5 jan. 2025.
_______. “E-mail a Annateresa Fabris”, 10 jan. 2025.
_______. “E-mail a Annateresa Fabris”, 25 maio 2025.
VÁZQUEZ MONTALBÁN, Manuel. El estrangulador. Madrid: Debolsillo, 2006.
Notas
1 Em 1990, o editor parisiense Daniel Lelong publica um portfólio com o texto de Leiris e quatro litografias de Francis Bacon, numa tiragem de 150 exemplares.
2 Com tradução de Maurício Liesen, o livro foi publicado pela editora Âyiné, de Belo Horizonte.
3 Essa cena bastante violenta não é a tônica das edições da obra em outros idiomas. A edição alemã (2016) tem uma capa simples: o título Gegen den Hass é grafado em preto e branco contra um fundo laranja, enquanto o nome da autora é escrito com letras brancas. As edições espanhola (Contra el odio, 2017), italiana (Contro l’odio, 2017) e inglesa (Against hate, 2019) usam, de diversas maneiras, o motivo do arame farpado. A edição francesa (Contre la haine: playdoyer pour l’impur, 2019) opta por reproduzir um fragmento de um quadro abstrato. 4 A única exceção é constituída por uma imagem de tourada na qual sobrou um traço de cor: uma listra vermelha no fundo da cen
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