Vamos retomar o nosso quintal

Imagem: Lara Jameson
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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

Os Estados Unidos não têm mais o poder de antes. As ameaças e medidas unilaterais, distribuídas sem critério e sem estratégia aparente, são sinais de fraqueza

1.

Sempre digo que o Brasil não cabe no quintal de ninguém. Cheguei a publicar um livro com este título. Nem todo mundo concorda, porém.

O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, declarou recentemente, referindo-se à América Central e à América do Sul, que a influência da China cresceu demais nessas regiões e que Donald Trump “está retomando o nosso quintal” (“we are taking our back yard back”).

Um insulto. Pete Hegseth, um ex-apresentador de televisão (!), é dos muitos trogloditas arrogantes e ignorantes que integram o governo de Donald Trump, feitos todos eles à imagem e semelhança do chefe. Nunca vi um governo tão confuso e incompetente nos Estados Unidos.

O chanceler da China, Wang Yi, respondeu bem, dizendo: “O que os povos latino-americanos querem é construir o seu próprio lar, não ser quintal de ninguém. O que buscam é independência, não doutrinas de dominação”. Até agora, que eu saiba, não houve nenhuma manifestação do Itamaraty…

O que o governo de Donald Trump está tentando é ressuscitar o imperialismo à moda antiga, na base de sanções, chantagens e ameaças, inclusive de intervenção militar. Disparou a metralhadora giratória, atingindo inclusive aliados tradicionais (ou satélites) dos Estados Unidos.

A hipocrisia foi para o espaço. Há muito tempo, não se via algo assim. Donald Trump não acredita no valor da hipocrisia e isso tende a enfraquecê-lo internacionalmente. O Império mostra a sua verdadeira natureza, sem disfarces, sem véus protetores.

Note, leitor ou leitora, que o imperialismo à moda antiga era às vezes mais sutil. Theodore Roosevelt, que foi presidente dos EUA de 1901 a 1909 e executou política externa nacionalista e agressiva, tinha como lema: “Speak softly and carry a big stick” (“Fale suavemente e carregue um grande porrete”). Já Donald Trump “speaks loudly and carries a doubtful stick” (“fala alto e carrega um porrete duvidoso”).

2.

Os Estados Unidos não têm mais o poder de antes. As ameaças e medidas unilaterais, distribuídas sem critério e sem estratégia aparente, são sinais de fraqueza. Mais do que isso: o governo Donald Trump como um todo é sintoma agudo da decadências dos Estados Unidos. O que tem feito até agora, ao invés de Make America Great Again (MAGA), vai provavelmente acelerar o declínio do país.

A economia vai sofrer. A volatilidade e arbitrariedade da política econômica trumpista tendem a abalar os níveis de atividade e de emprego e aumentar a inflação. A confiança das empresas e famílias diminuiu muito, criando o risco de uma recessão nos Estados Unidos.

Por outro lado, os Estados Unidos estão se isolando do ponto de vista geopolítico. Que sentido faz, por exemplo, agredir e humilhar canadenses e europeus? Canadá, Inglaterra e União Europeia sempre foram fiéis seguidores. Agora são tratados a pontapés. Se objetivo principal é conter a China, não seria mais inteligente contar com a cooperação desses países?

O governo Donald Trump me fez lembrar de uma previsão, de autoria incerta: “Os Estados Unidos serão o primeiro país a passar da barbárie à decadência, sem conhecer a civilização”.

Donald Trump é a face mais explícita de um país violento, predominantemente tosco e muito problemático para si e para o mundo. A única vantagem para nós do seu novo presidente, repito, é que ele torna totalmente claro e mais vulnerável um projeto de dominação que já foi conduzido de maneira mais sutil e eficaz em outras épocas. O soft power dos Estados Unidos está sendo destruído como nunca.

Nada que caiba lamentar. O enfraquecimento dos EUA é bem-vindo, por motivos óbvios.

3.

Como fica o Brasil, este país que pelas suas dimensões populacionais, territoriais e econômicas, não cabe no quintal de ninguém? Como se comportará?

Aqui temos um problema. Os brasileiros nem sempre estão à altura do Brasil. Grande parte da elite brasileira, inclusive diversos integrantes do governo Lula, cabem no quintal de qualquer um.

Um exemplo: Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central. Há poucos dias, na mesma ocasião em que propôs congelar o salário mínimo por seis anos em termos reais, disse estar um pouco preocupado com o novo governo dos EUA, país que sempre foi uma espécie de “estrela guia” para o resto do planeta…

Outro episódio: um diplomata brasileiro, que faz parte da equipe que tenta negociar com o governo de Donald Trump, lembrou que temos déficit comercial com os Estados Unidos, concluindo que o Brasil deveria ser um exemplo e não alvo da política dos Estados Unidos.

Como dizia Leonel Brizola, “a elite brasileira é um lixo”.

Diante do desafio que Donald Trump representa, o governo brasileiro resolveu manter um perfil baixo, tentando se fingir de morto. Compreensível. Os EUA ainda são poderosos, o novo presidente americano é imprevisível e, mais grave, dá sinais de desequilíbrio mental. As tarifas de importação impostas a nós foram importantes, mas são pequenas quando comparadas às que estão sendo aplicadas a muitos outros países. O Brasil não é um dos alvos principais de Donald Trump.

Por enquanto. Sendo um dos gigantes do mundo, o Brasil dificilmente consegue passar despercebido. E a timidez excessiva pode ser vista como fraqueza e suscitar novas e maiores agressões e medidas unilaterais por parte do bully que preside os Estados Unidos.

Cuidado! Temos as eleições de 2026 e parece provável que Donald Trump resolva interferir para trazer de volta ao poder os “patriotas” alinhados a ele.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente) [https://amzn.to/3ZulvOz]

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 18 de abril de 2025.


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