Verdades submersas

Escultura José Resende /SESC Jundiaí, São Paulo/
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por YANIS VAROUFAKIS*

Os governos nacionais têm optado por não exercer seus enormes poderes favorecendo os agentes econômicos enriquecidos pela globalização

Um castelo de cartas. Um conjunto de mentiras que aceitamos inconscientemente. É assim que nossas certezas parecem durante crises profundas. Esses episódios nos chocam ao reconhecermos quão inseguras são nossas suposições. É por isso que este ano pareceu uma maré em vazante acelerada, forçando-nos a enfrentar verdades submersas.

Costumávamos pensar, com bons motivos, que a globalização desdentara os governos nacionais. Presidentes se acovardavam diante dos mercados de títulos. Primeiros-ministros ignoravam os pobres de seu país, mas nunca a Standard & Poor’s. Ministros das finanças se comportavam como patifes do Goldman Sachs e sátrapas do Fundo Monetário Internacional. Magnatas da mídia, homens do petróleo e financistas, não menos do que críticos de esquerda do capitalismo globalizado, concordavam que os governos não estavam mais no controle.

Então veio a pandemia. Da noite para o dia, os governos criaram garras e exibiram dentes afiados. Eles fecharam fronteiras e deixaram os aviões no chão, impuseram toques de recolher draconianos em nossas cidades, fecharam nossos teatros e museus e nos proibiram de confortar nossos pais moribundos. Eles até fizeram o que ninguém pensava ser possível antes do Apocalipse: cancelaram eventos esportivos.

O primeiro segredo foi assim exposto: os governos retêm um poder inexorável. O que descobrimos em 2020 é que os governos têm optado por não exercer seus enormes poderes para que aqueles que a globalização enriqueceu pudessem exercer os seus.

A segunda verdade é uma de que muitas pessoas suspeitavam, mas eram tímidas demais para anunciar: a árvore que dá dinheiro é real. Os governos que proclamaram sua impecúnia sempre que chamados a pagar por um hospital aqui ou uma escola ali, de repente descobriram uma abundância de dinheiro para pagar licenças do trabalho, nacionalizar ferrovias, assumir companhias aéreas, apoiar montadoras de automóveis e até mesmo sustentar academias de ginástica e cabeleireiros.

Aqueles que normalmente protestam que o dinheiro não cresce em árvores, que os governos devem deixar tudo acontecer sem intervirem, morderam a língua. Os mercados financeiros comemoraram, em vez de lançar um ataque à onda de gastos do Estado.

A Grécia é um estudo de caso perfeito da terceira verdade revelada este ano: a solvência é uma decisão política, pelo menos no Ocidente rico. Em 2015, a dívida pública da Grécia, de € 320 bilhões (US$ 392 bilhões), superava uma renda nacional de apenas € 176 bilhões. Os problemas do país foram notícia de primeira página em todo o mundo, e os líderes europeus lamentavam nossa insolvência.

Hoje, no meio de uma pandemia que piorou uma economia ruim, a Grécia não é um problema, embora nossa dívida pública seja € 33 bilhões mais alta e nossa receita € 13 bilhões mais baixa, do que em 2015. Os Poderes da Europa decidiram que uma década lidando com a falência da Grécia foi suficiente, então eles decidiram declarar a Grécia solvente. Enquanto os gregos elegerem governos que transferem consistentemente para a oligarquia sem fronteiras qualquer riqueza (pública ou privada) que resta, o Banco Central Europeu fará o que for necessário – comprar tantos títulos do governo grego quanto necessário – para manter a insolvência do país fora do holofote.

O quarto segredo que 2020 revelou foi que as montanhas de riqueza privada concentrada que observamos têm muito pouco a ver com empreendedorismo. Não tenho dúvidas de que Jeff Bezos, Elon Musk ou Warren Buffett têm um talento especial para ganhar dinheiro e encurralar os mercados. Mas apenas uma pequena porcentagem de sua riqueza acumulada é o resultado da criação de valor.

Considere o aumento estupendo, desde meados de março, na riqueza dos 614 bilionários da América. Os US$ 931 bilhões adicionais que eles acumularam não resultaram de nenhuma inovação ou engenhosidade que gerou lucros adicionais. Eles ficaram mais ricos enquanto dormiam, por assim dizer, à medida que os bancos centrais inundaram o sistema financeiro com dinheiro fabricado, o que fez com que os preços dos ativos e, portanto, a riqueza dos bilionários disparassem.

Com o rápido desenvolvimento, teste, aprovação e lançamento das vacinas contra Covid-19, um quinto segredo foi revelado: a ciência depende da ajuda estatal e sua eficácia ignora a posição de bem público. Muitos comentaristas se tornaram líricos sobre a capacidade dos mercados de responder rapidamente às necessidades da humanidade. Mas a ironia não deve ser ignorada por ninguém: a administração do mais anticientífico dos presidentes dos EUA em todos os tempos – um presidente que ignorou, intimidou e zombou de especialistas mesmo durante a pior pandemia em um século – alocou US$ 10 bilhões para garantir que os cientistas tivessem o recursos de que necessitavam.

Mas há um segredo maior: enquanto 2020 foi um ano marcante para os capitalistas, o capitalismo não mais existe. Como isso é possível? Como os capitalistas podem florescer à medida que o capitalismo evolui para outra coisa?

Facilmente. Os maiores apóstolos do capitalismo, como Adam Smith, enfatizaram suas consequências indesejadas: precisamente porque os indivíduos em busca de lucro não têm consideração por ninguém, eles acabam servindo a sociedade. A chave para converter o vício privado em virtude pública é a competição, que impele os capitalistas a buscar atividades que maximizem seus lucros. Em um mercado competitivo, que serve ao bem comum, aumentam a oferta e a qualidade dos bens e serviços disponíveis, baixando constantemente os preços.

Não é difícil ver que os capitalistas podem se sair muito melhor com menos competição. Este é o sexto segredo que 2020 expôs. Liberadas da competição, empresas colossais de plataforma como a Amazon se saíram surpreendentemente bem com o fim do capitalismo e sua substituição por algo semelhante ao tecno-feudalismo.

Mas o sétimo segredo revelado este ano representa uma fresta de esperança. Embora trazer mudanças radicais nunca seja fácil, agora está perfeitamente claro que tudo poderia ser diferente. Não há mais razão para aceitarmos as coisas como são. Pelo contrário, a verdade mais importante de 2020 é capturada no aforismo adequado e elegante de Bertolt Brecht: “Porque as coisas são do jeito que são, as coisas não permanecerão como são.”

Não consigo pensar em nenhuma fonte maior de esperança do que esta revelação, entregue em um ano que a maioria prefere esquecer.

*Yanis Varoufakis é ex-ministro das Finanças da Grécia. Autor, entre outros livros, de O minotauro global (Autonomia Literária).

Tradução: Tales Mançano para o ObservaBR.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Antonino Infranca Manchetômetro Marjorie C. Marona Boaventura de Sousa Santos João Carlos Salles Maria Rita Kehl Caio Bugiato Flávio R. Kothe Alysson Leandro Mascaro Fábio Konder Comparato Marcus Ianoni Remy José Fontana Marcelo Guimarães Lima Yuri Martins-Fontes Eugênio Bucci Francisco Pereira de Farias João Sette Whitaker Ferreira José Raimundo Trindade Marcelo Módolo José Micaelson Lacerda Morais José Costa Júnior Gabriel Cohn Marcos Aurélio da Silva Alexandre de Lima Castro Tranjan Atilio A. Boron Eleonora Albano Bento Prado Jr. Gerson Almeida Ari Marcelo Solon Paulo Capel Narvai Fernando Nogueira da Costa Bernardo Ricupero Luiz Bernardo Pericás Ronald León Núñez Luiz Werneck Vianna Benicio Viero Schmidt Ricardo Antunes Paulo Fernandes Silveira Heraldo Campos Luiz Eduardo Soares Thomas Piketty Flávio Aguiar Daniel Costa Osvaldo Coggiola Lorenzo Vitral Juarez Guimarães Bruno Machado Afrânio Catani Ricardo Musse Manuel Domingos Neto Fernão Pessoa Ramos Berenice Bento Eugênio Trivinho José Dirceu André Márcio Neves Soares Francisco de Oliveira Barros Júnior Eliziário Andrade Antonio Martins Eleutério F. S. Prado Priscila Figueiredo Antônio Sales Rios Neto Marilena Chauí Luciano Nascimento Armando Boito Alexandre de Freitas Barbosa Mário Maestri André Singer Daniel Afonso da Silva Paulo Martins Ronaldo Tadeu de Souza Celso Favaretto Rafael R. Ioris Henri Acselrad Paulo Sérgio Pinheiro Érico Andrade João Lanari Bo Claudio Katz Leda Maria Paulani Gilberto Lopes Julian Rodrigues Walnice Nogueira Galvão Sandra Bitencourt Celso Frederico Mariarosaria Fabris José Geraldo Couto Michael Roberts Marilia Pacheco Fiorillo Leonardo Avritzer Andrés del Río Jean Pierre Chauvin João Feres Júnior Annateresa Fabris João Paulo Ayub Fonseca Valerio Arcary Chico Whitaker Plínio de Arruda Sampaio Jr. Carla Teixeira Ronald Rocha Jorge Luiz Souto Maior Kátia Gerab Baggio Dennis Oliveira Henry Burnett Lucas Fiaschetti Estevez Elias Jabbour Luís Fernando Vitagliano Rodrigo de Faria Lincoln Secco Carlos Tautz Vanderlei Tenório Marcos Silva Rubens Pinto Lyra Eduardo Borges Daniel Brazil Luiz Carlos Bresser-Pereira Denilson Cordeiro Gilberto Maringoni Vinício Carrilho Martinez Luiz Marques Valerio Arcary Liszt Vieira José Machado Moita Neto Tadeu Valadares Tarso Genro Matheus Silveira de Souza Chico Alencar Samuel Kilsztajn Andrew Korybko Bruno Fabricio Alcebino da Silva Vladimir Safatle Igor Felippe Santos Ricardo Fabbrini Renato Dagnino Slavoj Žižek Sergio Amadeu da Silveira Salem Nasser Leonardo Sacramento Dênis de Moraes Luis Felipe Miguel Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Roberto Alves Michel Goulart da Silva Anselm Jappe Otaviano Helene Ricardo Abramovay João Carlos Loebens Tales Ab'Sáber Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco Fernandes Ladeira Alexandre Aragão de Albuquerque José Luís Fiori Michael Löwy Jorge Branco Milton Pinheiro Airton Paschoa Ladislau Dowbor Jean Marc Von Der Weid João Adolfo Hansen Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Renato Martins Leonardo Boff

NOVAS PUBLICAÇÕES