Por Anselm Jappe*
Comentário do livro homônimo de artigos e entrevistas de Robert Kurz, centrados na análise da crise econômica de 2008, e de sua última obra Dinheiro sem valor
Robert
Kurz, o teórico principal da “crítica do valor”, morreu em 18 de julho de 2012
em Nuremberg (Alemanha), como consequência de um erro médico. Ele tinha 68
anos. A morte prematura interrompeu um trabalho imenso conduzido há 25 anos.
Nascido em 1943 em Nuremberg, onde passou toda a vida, Kurz participou da
“revolta dos estudantes” em 1968 na Alemanha e das intensas discussões no
interior da “Nova esquerda”. Depois de ter recusado o marxismo-leninismo, sem
aderir aos “Verdes”, que no momento passavam pela muda[i]“realista”
na Alemanha, fundou em 1987 a revista MarxistischeKritik,
rebatizada como Krisis depois de
alguns anos.
A
releitura de Marx proposta por Kurz e por seus primeiros companheiros de luta
(entre os quais Roswitha Scholz, Peter Klein, Ernst Lohoff e Norbert Trenkle)
não lhes trouxe só amigos na esquerda radical.
Esta via seus dogmas serem transtornados um após o outro, tais como a
“luta de classes” e o “trabalho”, em nome de um questionamento dos fundamentos
da sociedade capitalista: valor mercantil e trabalho abstrato, dinheiro e
mercadoria, Estado e nação.
Kurz,
autor prolífico e dotado de bela e vigorosa pluma, amiúde polêmica, atingiu um
público mais vasto com seu livro O
colapso da modernização (Paz e Terra, 1992), que afirmava, no exato momento
do “triunfo ocidental” consecutivo ao fim da URSS, que os dias da sociedade
mercantil mundial estavam contados e que o fim do “socialismo real” apenas
representava uma etapa. Articulista regular em jornais importantes, notadamente
no Brasil, conferencista notável, Kurz, mesmo assim, preferiu ficar fora das Universidades
e das outras instituições do saber, conseguindo viver graças a um trabalho
proletário.
Os
cerca de doze livros e as centenas de artigos que publicou se situam, grosso modo, em dois níveis: de um lado,
uma elaboração teórica de fundo, conduzida por meio de longos ensaios
publicados na Krisis e na Exit! (fundada em 2004 depois da cisão
com a Krisis). De outro, um
comentário contínuo acerca do aprofundamento da crise do capitalismo e uma
investigação de seu passado — especialmente através de uma grande história do
capitalismo, O livro negro do capitalismo
(Record, 1999), que foi, mesmo com suas 850 páginas, um best-seller na
Alemanha, mas também de A guerra de reordenamento
mundial (2003), O capital-mundo
(2005), e de seus artigos na imprensa.
Vidas e morte do
capitalismo (Lignes,
2011) reúne cerca de 30 artigos e entrevistas focados mais na análise da
atualidade. O volume é prolongamento da coletânea de artigos lançados na França
Aviso aos náufragos (Lignes, 2005).
Os novos textos são datados de 2007 a 2010 e cobrem principalmente o período
marcado pela crise do capitalismo que estourou em 2008, considerada como a mais
grave desde 1929.
Com
efeito, a crítica do valor é principalmente conhecida por sua afirmação de que
o capitalismo está mergulhado numa crise irreversível — Kurz até foi qualificado,
em certos meios de comunicação, como “profeta do apocalipse”. Há vinte anos,
até mesmo em períodos de aparente vitória definitiva do capitalismo nos anos
1990, Kurz sustenta, apoiado numa leitura rigorosa de Marx, que as categorias
de base do modo de produção capitalista estão se esgotando e atingiram seu
“limite histórico”: já não se produz “valor” o bastante. Ora, o valor (que
contém a mais-valia, logo o lucro), expresso em dinheiro, é o único objetivo da
produção capitalista — a produção de “valores de uso” não passa de aspecto
secundário.
O
valor de uma mercadoria é dado pela quantidade de “trabalho abstrato” que foi
necessário para sua fabricação, ou seja, trabalho como puro dispêndio de
energia humana, sem consideração de seu conteúdo. Quanto menos uma mercadoria
contém trabalho, menor o seu “valor” (e é preciso que seja trabalho que
corresponda ao nível de produtividade estabelecido num dado momento: dez horas
de trabalho de um tecelão artesanal podem “valer” somente uma hora, a partir do
momento em que faz em dez horas o que um tecelão com uma máquina produz numa
hora, logo que o regime de produção tornou-se industrial).
Desde
seus primórdios, o capitalismo vive essa contradição: a concorrência acossa
cada capitalista a substituir o trabalho vivo por máquinas, obtendo, assim, uma
vantagem imediata no mercado (ele obtém custos
mais baixos).
Procedendo assim, é a massa de valor como um todo que diminui, enquanto os
custos com tecnologias — que não criam valor — aumentam. Consequentemente, a
produção de valor corre a todo instante o risco de se estrangular por conta
própria e de perecer por falta de rentabilidade. O lucro — a face visível do
valor, aquela que interessa aos agentes do processo mercantil — só é possível
se o regime de acumulação funcionar.
Durante
muito tempo, a expansão interna e externa da produção de mercadoria (rumo a
outras regiões do mundo e no interior das sociedades capitalistas) pôde
compensar o valor diminuto das mercadorias singulares. Mas, a partir dos anos
1970, a “terceira revolução industrial”, a da microeletrônica, tornou “supérfluo”
o trabalho em tais proporções que nenhum mecanismo de compensação foi mais suficiente.
Desde então, o sistema mercantil sobrevive essencialmente graças ao “capital fictício”:
é o dinheiro, que não é o resultado da criação de valor obtida através do
emprego produtivo da força de trabalho, mas que é criado pela especulação e o
crédito, e cuja única base são os lucros futuros (mas, em proporções
gigantescas, impossíveis de se realizarem).
Segundo
Kurz, esta teoria da crise inelutável está presente em Marx (mas de uma maneira
fragmentada e ambígua; o “Fragmento sobre as máquinas” nos Grundrisse é a passagem mais significativa): a acumulação de
capital não é um modo estável que poderia continuar até o infinito e ao qual
somente a “luta dos oprimidos” colocará um fim, como proclamou todo o marxismo
depois de Marx. Kurz demonstra que a “teoria do colapso”, longe de ser o objeto
de um amplo consenso entre os marxistas, como amiúde se afirma, apresentava-se
muito mais como uma “serpente marinha”.
A teoria do
colapso
Alguns
teóricos se acusavam mutuamente de se apoiar nessa teoria do colapso, mas quase
ninguém admitia que o capitalismo pudesse se chocar contra seus limites
internos antes mesmo de uma revolução proletária. As únicas teorias que
analisavam esses limites, as de Rosa Luxemburgo (A acumulação do capital, de 1912) e de Henryk Grossmann (A lei da acumulaçãoe do colapso do sistema
capitalista, de 1929), ficaram, segundo Kurz, no meio do caminho e não
exerceram nenhuma influência real no movimento operário.
Kurz
apresenta, assim, sua própria teoria da crise como uma novidade absoluta — que
se tornou possível pelo fato de o limite interno da produção de valor, previsto
num plano teórico por Marx, ter sido realmente atingido nos anos 1970. Desde
alguns anos, esta crise veio à luz, depois de durante muito tempo ter sido
negada, até mesmo pela esquerda. Mas, para Kurz, as explicações dadas
atualmente pelos “economistas de esquerda” (em verdade, simples
neokeynesianos), que a relacionam com o “subconsumo”, são por demais insuficientes.
Não há mais solução possível dentro dos marcos da sociedade mercantil, que não
cabe mais na camisa de força do valor a partir do momento em que as tecnologias
substituíram quase inteiramente o trabalho humano.
Quando
cada mercadoria só contém doses “homeopáticas” de valor — portanto, de mais-valia,
logo de lucro — nada muda no que diz respeito a sua utilidade (eventual) para a
vida. Mas, para o modo de produção fundado no valor, esta situação é mortal; e,
numa sociedade inteiramente submetida à economia, a queda traz o risco de levar
toda a sociedade à barbárie.
Kurz
não se limita a essas generalidades, analisa em detalhes a evolução da crise.
Lendo as estatísticas oficiais a contracorrente, ele prova, entre outras
coisas, que a China não salvará o capitalismo, que a retomada da economia alemã
está baseada, como todo o resto, em novas dívidas, que depois da crise de 2008,
o que se fez foi apenas deslocar os “créditos podres” do setor privado para os
Estados e que os serviços são geralmente trabalho “improdutivo” (no sentido de
que não produzem valor) e não podem substituir os postos de trabalho perdidos
na indústria etc.
Ele
demonstra porque nem os “programas de aquecimento da economia” neokeynesianos
nem os mosteiros de austeridade podem ter chance de resolver a crise e menos do
que nunca as propostas para “criação de empregos”: o problema de fundo — que
também é a razão para se ter esperança! — está exatamente constituído pelo “fim
do trabalho”. Trabalho e valor, mercadoria e dinheiro, não são dados eternos da
vida humana, mas invenções históricas relativamente recentes. Atualmente
vivemos o seu fim — que não acontecerá num dia, evidentemente, mas no espaço de
algumas décadas, como Kurz precisa, ao se distanciar um pouco de suas previsões
anteriores mais “catastrofistas” a curto prazo.
A
financeirização da economia e a especulação, longe de constituírem as causas da
crise, contribuíram durante muito tempo para “empurrá-la com a barriga”, e
continuam a jogar este papel. Mas, assim, vamos acumulando um potencial de
crise ainda maior — e, para começar, a explosão de uma inflação mundial
gigantesca, signo de desvalorização do dinheiro enquanto tal. Jogar a culpa nas
costas dos “banqueiros” ou localizar as causas numa espécie de conspiração
neoliberal, como fazem quase todas as críticas de esquerda, significa, segundo
Kurz, passar ao largo do problema.
Eis
a razão porque Kurz se mostrou, antes de tudo, cético em relação ao potencial
emancipatório dos novos movimentos de protesto, do qual ele estigmatiza as
derivas antissemitas abertas ou implícitas. Ele acusa com frequência a esquerda
— em todas as suas variantes — de não querer, de fato, sair do quadro
capitalista, considerado por ela como eterno. Por isso, ela propõe somente uma
distribuição um pouco mais “justa” do valor e do dinheiro, sem levar em conta
nem o papel negativo e destrutivo dessas categorias nem seu esgotamento
histórico.
Pior
ainda, os diferentes representantes da esquerda acabam frequentemente por se
propor a coadministrar o deslizamento rumo à barbárie e à miséria. Em vez de
correr atrás dos movimentos de contestação e de adulá-los, Kurz lhes opõe
constantemente a necessidade de retomar uma crítica anticapitalista radical (em
seus conteúdos e não somente nas formas!); esta crítica deve ajudá-los a se
desvencilharem das suas insuficiências. Não basta mudar os funcionários da
administração: o capitalismo é um sistema fetichista inconsciente, regido por
um “sujeito automático” (a expressão é de Marx) de valorização do valor. A
dominação pessoal dos proprietários jurídicos dos meios de produção sobre os
vendedores de força de trabalho não passa da tradução “sociológica”, visível na
superfície, do mecanismo autorreferencial de acúmulo do capital.
Em
Dinheiro sem valor (Lisboa, Antígona, 2014), Kurz lança mão da artilharia pesada da
crítica da economia política num plano essencialmente conceitual. Mesmo saindo
poucos dias depois da morte de seu autor, o livro não representa nem um sumário
nem um testamento teórico, concebido que foi como primeira parte de um vasto
projeto de refundação da crítica da economia política.
Nesta
obra, Kurz trata de quatro grandes temas ligados entre si: a diferença
fundamental entre as sociedades pré-capitalistas, protocapitalistas e
capitalistas, e o papel do dinheiro no interior delas; o nascimento do capital
e do valor mercantil a partir do século XV; a lógica interna do capital quando
plenamente desenvolvido; a contradição interna e o limite interno lógico da
acumulação capitalista no decurso de sua evolução histórica até o presente.
Sempre
procedendo por meio de polêmica cerrada com marxistas alemães, pouco conhecidos
na França, (M. Heinrich, H.-G. Backhaus, E. Altvater, W. F. Haug) e passando
por demonstrações bastante sutis (e talvez até meio misteriosas para os não
iniciados), Kurz chega a resultados surpreendentes em sua simplicidade. Ele não
se prevalece de quase nenhum autor da tradição marxista, senão somente do
próprio Marx (apenas Adorno e Lukács de História
e consciência de classe parecem lhe servir de inspiração parcial, e muito
mais no que diz respeito à abordagem dialética).
Kurz
não tem a pretensão de “restabelecer o que Marx realmente disse” e
apresentar-se como único intérprete. Busca, em verdade, desenvolver e
aprofundar o lado mais radical e inovador de seu pensamento. Uma parte de sua
obra — o “Marx exotérico” — ficou, segundo Kurz, no terreno da filosofia
burguesa dos Iluministas e de sua crença no “progresso” e nos benefícios do
trabalho. É na outra parte — que permaneceu minoritária e fragmentada — que o
Marx “esotérico” levou a cabo uma verdadeira revolução teórica, que quase
ninguém durante mais de um século soube compreender nem continuar.
Esses
diferentes aspectos da teoria de Marx estão estreitamente entrelaçados (não se
trata em absoluto de “fases” sucessivas!). O núcleo mais profundo, alicerçado
na teoria do valor, não se tornou verdadeiramente atual senão com o declínio do
capitalismo. Kurz não se propõe, portanto, a “interpretar” Marx, nem a
“corrigi-lo”, mas a retomar suas intuições mais fecundas, mesmo opondo-as a
outras ideias do mestre.
Comparado
a seus precedentes livros, Kurz aprofunda aqui dois temas que antes tinham ficado
mais implícitos. Ele afirma que aquilo que chamamos de “valor” e “dinheiro” não
existiu antes do século XIV ou XV, e que os fenômenos que nos parecem ser o
dinheiro ou o valor nas sociedades pré-capitalistas, na verdade, exerciam nelas
uma função fundamentalmente diferente. O capitalismo não nasceu como uma
excrescência particular numa existência atemporal — ou de todo modo muito
antiga — do valor e do dinheiro, mas ao mesmo tempo que estes.
Kurz
faz apenas breves excursões na história “factual”, mas examina em detalhe a estrutura
das “categorias” da crítica da economia política. Para esse objetivo, é
necessário centrar fogo no “individualismo metodológico” (que ele identifica ao
“positivismo”), considerado por ele como o fundamento de todo o pensamento
burguês e que teria igualmente “infectado” quase todo o marxismo. Estaria
presente até no pensamento do próprio Marx, lado a lado com sua inspiração mais
autenticamente dialética,o que explica as contradições no interior de sua obra.
Insistindo
na diferença entre essência e fenômeno, o ser e o parecer, as categorias
escondidas e os fatos visíveis, Kurz se situa — sem dizê-lo explicitamente — no
campo da dialética hegeliana e da diferença entre razão e entendimento. Kurz
nunca tinha se expressado de forma tão cristalina acerca de seus fundamentos
metodológicos. Não se trata, entretanto, de recomeçar, como nos anos 1970, a
gargarejar a palavra “dialética” e fazer dela um método universal.
Kurz
sempre tira sua energia da polêmica contra um adversário: aqui, a incapacidade
do pensamento burguês de ir além dos fatos isolados e de seus eventuais
“efeitos recíprocos”. O “todo” não é simplesmente a soma dos elementos
particulares, ele possui uma qualidade própria; os elementos particulares não
são o que parecem ser num simples golpe de vista, como na visão empírica. Eles
não revelam sua verdadeira natureza senão ao serem entendidos como determinados
pelo todo.
Kurz
não se entrega, todavia, a considerações metodológicas preliminares de maneira
abstrata, mas desenvolve sua abordagem desenvolvendo seu raciocínio acerca de
um objeto dado: não se trata de analisar (como amiúde o faz o próprio Marx,
pelo menos no primeiro volume de O
Capital) a estrutura de um capital particular — nem mesmo de um capital
“ideal-típico” — para em seguida conceber o “capital total”, que nada mais
faria do que reproduzir a estrutura do capital particular, como a agregação
desses capitais particulares. Da mesma forma, a mercadoria particular só é
analisável como parte da massa total de mercadorias.
A forma dinheiro
Kurz
começa seu livro discutindo um problema que aparentemente está ligado mais à filologia
marxiana. No primeiro capítulo de O
Capital, Marx analisa a mercadoria e seu valor de uma maneira puramente
lógica. A mesma cadeia lógica conduz em seguida à existência do dinheiro; e são
necessários ainda alguns passos suplementares para se chegar ao capital. Essa
sucessão lógica é também o reflexo de uma sucessão histórica? Marx não é claro
acerca disso e parece hesitar.
Para
o velho Engels, em contrapartida, e para os marxistas posteriores, já é coisa
certa: a lógica corresponde à história. É a abordagem “lógico-histórica”. Para
eles, o valor mercantil existia muito antes do capital. Durante milhares de
anos houve uma “produção de mercadorias simples”, sem capital. Desde sempre, ou
quase, os homens atribuem um “valor” a seus produtos, baseado no trabalho que
despenderam para fabricá-los. O dinheiro também existe há muito tempo, mas só
servia para facilitar as trocas. O capitalismo só veio depois que o dinheiro se
acumulou até o ponto de tornar-se capital e encontrar diante de si uma força de
trabalho “livre”.
Tal
abordagem, protesta Kurz, “naturaliza” ou “ontologiza” o valor e o trabalho,
transformando-os em condições eternas de toda a vida em sociedade. Até a
sociedade pós-capitalista fica reduzida a uma espécie de “aplicação consciente
da lei do valor” (este oxímoro era um dos objetivos declarados do “socialismo
real”!) ou a formas de “mercado sem capitalismo exagerado”. Vê-se que a leitura
de Marx que Kurz propõe, por mais teórica e afastada da “práxis” que possa
parecer à primeira vista, pode implicar consequências bastante “práticas”.
Kurz
retoma, às vezes corrigindo-a, “a nova leitura de Marx” proposta na Alemanha
desde 1968 por certos alunos de Adorno (H.-G. Backhaus, H. Reichelt): em sua
análise da forma-valor, Marx examinaria as categorias mercadoria, trabalho
abstrato, valor e dinheiro tais como se apresentam num regime capitalista
desenvolvido, “que anda com as próprias pernas”.
Tratar-se-ia
de uma reconstrução conceitual que começa com o elemento mais simples, a “forma-mercadoria
simples”, para chegar à gênese “lógica” do dinheiro; a existência do capital,
que aparece nessa dedução como consequência, é na verdade já um pressuposto da
análise da forma mais simples. O valor enquanto quantidade de trabalho abstrato
só existe onde o dinheiro e o capital existem. As etapas intermediárias da
construção marxiana, como a “forma-valor desenvolvida”, onde a troca das
mercadorias acontece sem a mediação do dinheiro-mercadoria, são simples etapas
da demonstração — elas não correspondem a nada de real.
Sem
a existência de um dinheiro-mercadoria (os metais preciosos), os valores não
podem se relacionar entre si como valores. Portanto, uma produção de mercadorias
sem dinheiro não pode existir, e a teoria marxiana da forma-valor só pode ser
válida para o capitalismo. O estatuto pouco claro da análise da forma-valor no
próprio Marx corresponde tanto a dificuldades de exposição (os pressupostos são
ao mesmo tempo as consequências, e vice-versa) quanto à oscilação de Marx entre
histórico e lógico, entre dialética e empirismo.
Logo:
nada de valor sem dinheiro, nada de dinheiro sem capital. Mas, replicarão de
pronto, o comércio, os mercados e o dinheiro — e até mesmo a moeda cunhada —
existem há milênios; podem-se encontrar formas primitivas até na Idade da Pedra.
Para a interpretação histórico-lógica tradicional, que vê na análise marxiana
um resumo da evolução histórica real, isso não constitui um problema: o valor
sempre existiu, garante ela, da mesma maneira que o dinheiro a partir de certa
época — mas como “nichos”, ou seja, somente para a troca de excedentes. Era, no
que diz respeito a sua estrutura, o mesmo dinheiro e o mesmo valor de hoje. O
crescimento gradual dessas trocas, principalmente ao final da Idade Média,
levou à formação do capital.
Kurz
reprova o marxismo quando pensa assim, quando não se distingue da ciência
burguesa em sua abordagem positivista, que só considera fatos isolados; ao ver uma
pessoa que dá um saco de trigo em troca de uma pepita de ouro no antigo Egito,
na Idade Média e hoje, ela conclui que em todos esses casos se trata da mesma
coisa; mercadoria por dinheiro, portanto, comércio, logo mercado…
Para
Kurz, os fatos empíricos não demonstram nada sem uma “crítica categorial” que os
situe em seu contexto. Assim, sem termos determinado o que é o dinheiro no modo
de produção capitalista (não somente suas funções práticas, mas o que ele é), não
podemos decidir se as conchas ou as peças de ouro que circulavam nas sociedades
não-capitalistas correspondiam ao dinheiro no sentido moderno. É o que Kurz nega resoluto. Historicamente, o dinheiro
precede o valor, diz ele. Mas que dinheiro? O dinheiro no sentido capitalista
nasce, diz Kurz, com a difusão das armas de fogo, a partir do fim do século
XIV.
O
que nos parece dinheiro nas sociedades pré e não-capitalistas tinha mais uma
função sacral: nascido do sacrifício, o dom fazia os produtos circularem, no
quadro de uma rede de obrigações, onde as pessoas investidas de poder sacral
desempenhavam papel central. Era outra forma de fetichismo. Havia evidentemente
produção e circulação de bens, mas não “economia”, “trabalho” ou “mercado”, nem
mesmo em formas rudimentares ou “ainda não desenvolvidas” (como Kurz afirma em
oposição a Karl Polanyi, com quem concorda em outros aspectos).
Kurz
só rapidamente entra numa análise histórica do papel do dinheiro (reservada
para trabalhos futuros, que infelizmente não mais serão publicados) e só cita
poucos autores. Entre eles, o medievalista Jacques Le Goff, que nega a
existência de “dinheiro” na Idade Média (e que Kurz opõe a Fernand Braudel, para
quem “o mercado é universal”). O dinheiro pré-moderno não tinha “valor”: a
fonte de sua importância não estava no fato de ser a representação
quantitativamente determinada de uma “substância” social geral como é o
trabalho nas sociedades modernas.
O
capitalismo não constitui, aos olhos de Kurz, uma intensificação das formas
sociais antecedentes, mas uma violenta ruptura. A enorme sede de dinheiro
suscitada pela corrida aos armamentos a partir do século XV representa o big bang da modernidade, gerando, no
decurso de algumas gerações, um sistema baseado no dinheiro (que muda
totalmente de função: de símbolo, numa relação pessoal de obrigações, ele se
torna princípio de mediação social universal no posto de representante material
do trabalho abstrato), o valor-trabalho, o próprio trabalho abstrato, o capital
e, claro, o Estado (que também muda de função).
Poder-se-ia
dizer que Kurz começou aqui uma grande obra na qual quase tudo ainda está por se
fazer. É claro que sua abordagem possibilitará trocas com aqueles que estudam o
“dom” na linha de um Marcel Mauss (que, como Michel Foucault, é objeto de
algumas observações bastante interessantes, mas muito rápidas).
A
recusa do “individualismo metodológico” produz seus frutos também na releitura
kurziana de Marx e na crítica da adaptação do marxismo aos critérios da
economia política burguesa (marginalista e neoliberal). Segundo Kurz, numerosas
dificuldades na teoria de Marx (como o famoso problema da transformação dos
valores em preço) desaparecem quando se abandona a análise da mercadoria
particular e do capital particular em proveito do capital total (categoria que
pode ser apreendida somente pelo conceito, não num plano empírico), do qual as
mercadorias particulares e os capitais particulares são apenas “partes
alíquotas”.
Não
se pode determinar o valor de uma mercadoria particular; mas isso não significa
que este valor só é criado na troca (aqui, Kurz polemiza constantemente contra
toda e qualquer concepção “relativista” do valor, que ele qualifica de
tipicamente pós-moderna). O valor é “realmente” (no sentido de uma projeção
fetichista) dado pelo trabalho abstrato, que constitui sua “substância”. O que
conta é a massa global (ou total) de valor; a mercadoria particular não tem
“valor” mensurável, mas consegue realizar um “preço” na concorrência. Com efeito,
uma mercadoria pode ter um valor quase nulo (quando ela é produzida por
máquinas) e obter, mesmo assim, um preço elevado. A soma total dos valores e a
soma total dos preços coincidem necessariamente — mas não o valor e o preço da
mercadoria particular.
Esse
deslocamento do eixo conceitual do capital particular para o nível do capital
total (Marx hesitava entre as duas abordagens, e Kurz, por assim dizer,
liberta-o de suas incertezas) permite efetivamente a Kurz esclarecer, de
maneira surpreendente, problemas como a relação entre a taxa e a massa de lucro
ou a questão do trabalho produtivo. Certamente muitos “economistas marxistas”
não estarão de acordo, mas dificilmente poderão evitar medir forças com os
argumentos de Kurz.
A
discussão vai muito além de uma batalha erudita entre economistas marxistas
quando se chega à questão do “limite interno” da produção capitalista causado
pela queda da massa total de valor. Kurz dedica a isso a última parte do livro,
precisando argumentos que há muito tempo vem trazendo à baila.
O
“coração das trevas” do capitalismo
Em
contrapartida, o final é meio inesperado: ele se pergunta se não estamos indo novamente
rumo a um “dinheiro sem valor”. Enquanto a massa nominal de dinheiro no mundo
(incluindo as ações, os preços imobiliários, os créditos, as dívidas, os
derivativos financeiros) aumenta sem parar, aquilo do qual o dinheiro é tido
por representante, o trabalho, reduz-se a proporções cada vez menores. Assim, o
dinheiro quase não tem mais valor “real”, e uma gigantesca desvalorização do
dinheiro (primeiramente sob forma de inflação) será inevitável. Mas, depois de
séculos durante os quais o dinheiro constituiu a mediação social numa escala
cada vez maior, sua desvalorização não organizada, porém forçada, não pode
provocar nada mais do que uma gigantesca regressão social e o abandono de
grande parte da atividade social quando vista como não mais “rentável”.
O
fim da trajetória histórica do capitalismo corre o risco de nos empurrar a um
“retorno perverso” do sacrifício, a uma barbárie nova e pós-moderna. Com
efeito, o capitalismo está anulando até mesmo os magros “progressos” que trouxe
e exigindo incessantemente dos homens “sacrifícios” para a salvação do fetiche-dinheiro.
Os cortes na saúde pública são até pensados por Kurz em relação aos sacrifícios
humanos da história antiga, praticados para acalmar os deuses furiosos, e ele
termina afirmando que “os sacerdotes sanguinários astecas foram humanos e doces,
se comparados aos burocratas-sacrificadores do fetiche global do capital ao ter
atingido seu limite interno histórico”.
Por
que as teorias de Kurz, apesar de sua força intelectual inegável, tiveram até
aqui apenas um impacto que se pode chamar de limitado na crítica do
capitalismo, pelo menos na França? Elas são muito discutidas na internet, e
Kurz obteve na Alemanha certo sucesso de livraria, principalmente nos anos
1990. Mas, embora a crise dos últimos anos tenha trazido a confirmação de suas
análises, a crítica do valor continuou mantendo seu caráter meio “esotérico” —
um discurso para “iniciados”.
Por
que aqueles que Kurz chamava de “dinossauros” marxistas (até em suas versões
pós-modernas) e os economistas “alternativos” keynesianos, ligados, segundo
ele, à fase do capitalismo que acabou definitivamente de chegar ao fim, e cujos
discursos praticamente não evoluíram em quarenta anos, tornaram-se novamente os
pontos de referência daqueles que querem combater a devastação da vida pelo
capital?
Kurz
sempre afirmava que o capitalismo está desaparecendo, ao mesmo tempo que seus
velhos adversários, especialmente o movimento operário e seus intelectuais, que
tinham completamente interiorizado o trabalho e o valor e cujo horizonte não ia
além da “integração” dos operários — e em seguida de outros grupos
“subalternos” — na sociedade mercantil. Por que a crítica do valor, que
pretende ter compreendido o caráter fundamentalmente novo da situação atual,
tem “penetração” tão difícil junto ao público?
Uma
primeira razão — menos importante — é a ausência de uma estratégia de ocupação
do espaço público: Kurz, assim como os outros fundadores da crítica do valor,
não são nem universitários nem midiáticos, limitando-se aos espaços que são
colocados a sua disposição. Preferem sempre o seminário de aprofundamento com
os leitores da revista à participação num grande colóquio eclético. Ficar à
margem é para eles signo de honra, mas torna lenta a difusão de suas ideias. Além
disso, a prosa de Kurz, se sabe ser mordaz e brilhante nos escritos de
“divulgação”, é por vezes, nas obras mais teóricas, difícil de ler e ainda mais
de traduzir, um pouco comparável à de Adorno.
Mas,
em nível mais profundo, são principalmente a teoria da crise e o questionamento
da luta de classes que suscitam resistências. Para Kurz, não estamos mais na
presença de uma crise “cíclica” ou de “crescimento” do capitalismo, mas estamos
vivendo o fim de uma longa época histórica, sem saber se o futuro será melhor
ou se será antes de tudo a queda numa situação em que a grande maioria da
humanidade não será útil nem mais para ser explorada, mas simplesmente “supérflua”
(para a valorização do capital). E ninguém pode controlar tal máquina em
disparada! Esta perspectiva se vê logo rechaçada, porque realmente faz medo,
muito mais medo do que a afirmação de que os mesquinhos especuladores roubam
nosso dinheiro (mas que o Estado restabelecerá a justiça para o povo!).
A
crítica do valor não quer se fazer aceitar e não está a serviço das
necessidades de um público. Ela critica com efeito quase todas as formas de
oposição, passadas e presentes, que se mantêm prisioneiras da forma-valor e que
até contribuíram para seu pleno desenvolvimento. Do mesmo modo, Kurz rejeitava
quase toda a tradição marxista e entrava frequentemente em polêmica com seus
representantes contemporâneos, rompendo com os consensos e os ritos dos meios
marxistas universitários. Assim, estes lhe opuseram, o máximo de tempo
possível, uma “conspiração do silêncio”.
Mas
até aqueles que reconhecem o poder heurístico da leitura da realidade
capitalista proposta por Kurz reprovam não raro a crítica do valor, por ela não
indicar uma “prática” possível. “A análise é verdadeira — mas o que fazer?”,
escutamos alguém falar.
Kurz
é claro a este respeito: a teoria já é uma forma de práxis, ela contribui
principalmente para desnaturalizar as categorias da vida capitalista. Mas ele
desconfia tanto dos movimentos dirigidos contra os aspectos mais superficiais
do capitalismo, como o mercado financeiro – e susceptíveis de se degenerarem em
populismo – assim como da “falsa imediatidade” dos projetos de “economia
alternativa”. Criar uma sociedade em que a produção e a circulação dos bens não
passam mais pela mediação autonomizada do dinheiro e do valor, mas que são
organizadas de acordo com as necessidades — eis aí a tarefa enorme que se impõe
depois de séculos de sociedade mercantil. Se Kurz formula a necessidade disso,
ele não explica como chegar. Mas poucas teorias se aproximaram tanto quanto a
sua do “coração das trevas” do sistema fetichista do capital.
*AnselmJappe, professor de
estética na École d’art de Frosinone e
de Tours,
é autor,
entre outros livros, de Crédito à morte (Hedra, 2013)
Tradução
de Robson J. F. de Oliveira
Referências
Robert Kurz. Vidas e morte do capitalismo. Crônicas da crise. Textos traduzidos para o francês por Olivier Galtier, Wolfgang Kukulies e Luc Mercier. Edições Lignes, Paris, 2011 (https://amzn.to/44gXhq7).
Robert Kurz. Geld ohne Wert. GrundrissezueinerTransformation der Kritik der politischenÖkonomie, Horlemann, Berlin, 2012 (https://amzn.to/44i83MR). [Dinheiro sem valor. Fundamentos para uma transformação da crítica da economia política].
[i]Muda se refere ao processo pelo qual os
pássaros passam pela mudança de penugem.
