Vidas negras: quem se importa?

Artista Navajo Não Identificado, Serape, ca. 1865–70. (acervo The Met)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RAFAEL R. IORIS*

Qualquer reforma ambiciosa da estrutura policial e do sistema de justiça dos EUA, esbarra no conservadorismo da sociedade americana

O dia 25 de maio passado marcou o primeiro aniversário do assassinato de George Floyd pela polícia da cidade de Mineapolis, em meio a um debate profundo na sociedade norte-americana. Graças ao vídeo de celular feito, a cerca de um ano, por uma moça que presenciou o policial branco Derek Chauvin sufocando o pescoço do afro-amecinao Floyd por quase dez minutos, o movimento Vidas Negras Importam reacendeu as manifestações de rua em meio ‘a pandemia da Covid-19, levando milhões de pessoas a se mobilizar por uma reforma no sistema policial, que despropocionalmente prende, maltrata e mata pessoas negras nos EUA. A comoção do vídeo foi, de fato, tão intensa que em abril desse ano Chauvin foi condenado pelo crime, algo raro no sistema judicial do país que, em geral, tende a absolver policiais mesmo em crimes praticados em serviço.

Mas embora vitoriosas na obtenção da condenação de um dos assassinos de Floyd (outros três policiais presentes na cena do crime aguardam julgamento), e em pressionar o atual presidente Joe Biden – político de perfil moderado e mesmo conversador no que refere ‘a questão do tratamento policial e judiciário das minorias raciais –, a assumir o compromisso eleitoral de buscar reformar os departamentos de polícia (algo que, de fato, ele não pode fazer muito já que são todos orgãos de autoridade local); as mobilizações contra o racismo estrutural e a violência policial a ele associada expressam chagas abertas naquele país. De fato, no mesmo dia do anúncio da condenação de Chauvin, a adolescente negra Ma’Khia Bryant foi morta pela polícia de Columbus, no estado de Ohio, e vários outros jovens negros também foram mortos por diferentes policiais desde abril passado.

Ainda assim, é inegável que a tragédia envolvendo George Floyd ajudou a redefinir o perfil da mobilização por justiça racial nos EUA, tendo efetivamente servido para trazer um nível de reconhecimento amplo na sociedade sobre tais questões, inclusive entre americanos brancos; algo talvez anteriormente visto somente na era do Movimento por Direitos Civis da década de 1960. Além das milhares de marchas que tomaram conta das ruas das cidades mais variadas, em tamanho e localização no vasto território dos EUA, por noites sucessivas em junho do ano passado, muitas companhias se comprometaram a fazer mais para promover a diversificação da sua força de trabalho e criar mecanismos para atrair e promover um número maior número de pessoas das minorias raciais entre seus quadros, e jogos das principais ligas profissionais do país  presenciaram demonstrações de apoio a tais causas entre seus jogadores. No mesmo sentido, embora não tenha sido possível manter o nível de demonstrações de rua ao longo dos últimos 12 meses, especialmente dado que no final do ano passado, houve um recrudescimento fortíssimo dos números da pandemia, a mobilização tornou-se mais institucional mas não menos intensa.

Muitos Departamentos de Polícia tem implementado reformas nos procedimentos permitidos aos seus membros, embora muitas destas não chegem a atender as demandas mais fortes dos movimentos de base, como, em muitos casos, pela eliminação completa dos próprios departamentos e sua substituição por agências de serviço social e promoção de programas de educação de base em comunidades de alto risco. O Ministério da Justiça reestabeleceu forças tarefa e programas de supervisão, prevenção e punição de crimes de natureza racial (portanto de jurisdição federal), eliminados pela gestão Trump. E de maneira mais prospectiva, a questão da injustiça racial foi ainda mais integrada nas conversas diárias da mídia, escolas, igrejas e pessoas em geral, embora ainda haja, certamente, muita divisão nesse tema (entre outros vários) na sociedade como um todo e que se encontra hoje em meio a uma forte polarização ideológica.

De fato, como sociedade tradicionalmente conservadora que é, já se percebe, especialmente entre apoiadores do partido Republicano e, ainda mais, de Trump, que começa a crescer o clamor por cautela em qualquer tentativa de reforma mais ambiciosa, seja das estruturas policiais, seja do sistema de justiça, em geral. Muitos pais tem resistido a incorporação mais explícita de temas raciais nos currículos escolares e muitos políticos tem resistido intensamente a ideia de reduzir, senão mesmo eliminar de todo, o orçamento de distritos policiais, especialmente no momento em que se vê que as taxas de homicídios cresceram em várias cidades ao longo do ano passado. No mesmo sentido, as taxas entres os que veem a necessidade que se melhore as relações inter-raciais no país são vertiginosamente constrastantes já que enquanto três quartos dos Democratas percebe essa necessidade, somente um quarto dos Republicanos concordam com essa posição.

Portanto, mesmo que o assassinato de George Floyd tenha ajudado a galvanizar a luta por justiça racial nos EUA, ainda há, com certeza, um longo caminho pela frente. Caminho esse que certamente será marcado pela dor e, talvez mesmo, morte de outros afro-americanos até que o país consiga melhorar seu tratamento das suas ditas minorias raciais que, efetivamente, continuam sendo tratadas como cidadãos de segunda classa na suposta terra da democracia.

*Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver (EUA).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luís Fernando Vitagliano João Feres Júnior Ricardo Fabbrini Kátia Gerab Baggio Vanderlei Tenório Gilberto Maringoni Annateresa Fabris Paulo Sérgio Pinheiro Juarez Guimarães Denilson Cordeiro Eugênio Trivinho Everaldo de Oliveira Andrade Vinício Carrilho Martinez Fábio Konder Comparato Francisco Pereira de Farias Elias Jabbour Ladislau Dowbor Marilia Pacheco Fiorillo Matheus Silveira de Souza Leonardo Avritzer Bruno Machado Celso Frederico Bruno Fabricio Alcebino da Silva Maria Rita Kehl Flávio Aguiar Henry Burnett Afrânio Catani José Raimundo Trindade José Luís Fiori Ronaldo Tadeu de Souza Salem Nasser Chico Alencar Antonino Infranca Julian Rodrigues Atilio A. Boron Jean Marc Von Der Weid Igor Felippe Santos Vladimir Safatle Osvaldo Coggiola Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Paulo Nogueira Batista Jr Rafael R. Ioris Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcus Ianoni Gerson Almeida Eliziário Andrade Eleutério F. S. Prado André Singer Érico Andrade Leda Maria Paulani Leonardo Sacramento Heraldo Campos Lincoln Secco Carlos Tautz André Márcio Neves Soares Renato Dagnino Rubens Pinto Lyra Ricardo Musse Ricardo Abramovay Marcos Silva Daniel Costa Ronald Rocha Thomas Piketty Luis Felipe Miguel Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Freitas Barbosa Caio Bugiato Benicio Viero Schmidt Claudio Katz Lucas Fiaschetti Estevez João Carlos Loebens Paulo Capel Narvai Fernando Nogueira da Costa José Machado Moita Neto Yuri Martins-Fontes Alexandre de Lima Castro Tranjan Otaviano Helene Lorenzo Vitral João Sette Whitaker Ferreira Marilena Chauí Eduardo Borges Michael Roberts Jean Pierre Chauvin Mariarosaria Fabris Luiz Marques Tales Ab'Sáber Alysson Leandro Mascaro Rodrigo de Faria Dênis de Moraes Manchetômetro Ari Marcelo Solon Airton Paschoa Slavoj Žižek Francisco de Oliveira Barros Júnior Anselm Jappe Tarso Genro Priscila Figueiredo Valerio Arcary Gabriel Cohn Antônio Sales Rios Neto Eugênio Bucci Marcos Aurélio da Silva Marcelo Guimarães Lima Celso Favaretto Fernão Pessoa Ramos Ronald León Núñez Michael Löwy João Carlos Salles Remy José Fontana Francisco Fernandes Ladeira Andrés del Río Luiz Werneck Vianna Armando Boito Daniel Brazil Gilberto Lopes Andrew Korybko Luiz Renato Martins Walnice Nogueira Galvão Luiz Bernardo Pericás Tadeu Valadares Liszt Vieira Daniel Afonso da Silva Luiz Roberto Alves José Micaelson Lacerda Morais Dennis Oliveira Manuel Domingos Neto Leonardo Boff Carla Teixeira Samuel Kilsztajn Alexandre Aragão de Albuquerque João Paulo Ayub Fonseca Sergio Amadeu da Silveira Jorge Branco Boaventura de Sousa Santos Eleonora Albano Sandra Bitencourt Valerio Arcary Milton Pinheiro José Geraldo Couto Antonio Martins João Adolfo Hansen Luiz Carlos Bresser-Pereira Flávio R. Kothe Henri Acselrad Marjorie C. Marona Bento Prado Jr. José Dirceu Paulo Fernandes Silveira Luciano Nascimento João Lanari Bo Michel Goulart da Silva Berenice Bento Ricardo Antunes Luiz Eduardo Soares Marcelo Módolo Paulo Martins Bernardo Ricupero Mário Maestri Chico Whitaker José Costa Júnior

NOVAS PUBLICAÇÕES