Vocalizações

Samuel Beckett, Não eu, 1972 (1977)
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Por VINÍCIUS SÃO PEDRO*

“As misteriosas vocalizações mantiveram todos acordados, tomados por uma espécie de indignação, inquietante e febril”

“A outra porta do prazer, \ porta a que se bate suavemente, \ seu convite é um prazer ferido a fogo \ e, com isso, muito mais prazer.” (Carlos Drummond de Andrade).

Já era noite alta e o pequeno condomínio — dois predinhos, quatro andares — dormia profundamente. Era curioso como aquela vizinhança barulhenta, cheia de carros, motocas, cães, mães e alto-falantes, entrava em um gradativo torpor ao anoitecer até atingir o completo silêncio na madrugada. Um silêncio daqueles de se ouvir os sons do próprio corpo. Não naquela noite.

 No pequeno condomínio — dois predinhos, quatro andares — eram constantes as contravenções ao estatuto, tal como ocorre em qualquer aglomerado residencial. Bitucas de cigarro enfeitando o jardim, carro estacionado na vaga errada, o maldito portão deixado aberto, o banheiro imundo na área de churrasqueira, eram ali sinais comuns da vida em comunidade.

Mas nada profanava a calmaria das madrugadas. Essas eram respeitadas acima de qualquer convenção, como se uma espécie de pacto fantástico impusesse ali o maior dos consensos. Até mesmo os bêbados e os bebês pareciam respeita-lo. Naquela noite, no entanto, as coisas foram diferentes.

Praticamente todos os moradores acordaram ao som de escandalosas vocalizações. Nem os benzodiazepínicos foram capazes de filtrar os ganidos, gemidos, gritos e uivos — todo um bizarro repertório dominado por monossílabos e sons guturais. Aquilo vinha em ondas que duravam de 5 a 10 minutos e, após breves intervalos, voltavam a rasgar a paz. Assustados, alguns moradores imaginavam uma sessão de tortura, tão cruel quanto descuidada. Para outros, tratava-se apenas de gatos no cio. Mas à medida que saíam de seus transes madrugais, ficava cada vez mais clara a relação daqueles sons com o cio, embora cada vez menos provável sua relação com os felinos.

Com o recobrar das consciências, cresciam proporcionalmente o espanto e a incredulidade. Estava claro que tais sons só podiam vir de algum animal. Não tanto pelas características acústicas, mas pela constatação de que só um ser desprovido de vergonha seria capaz de desafiar a madrugada coletiva com semelhante desprendimento.

E para os moradores mais (d)espertos — ou apenas mais experientes — os sons foram perdendo gradativamente seu mistério. Concluíam logicamente que algum pervertido perdera a noção do volume de seu computador, deixando propagar por frestas e janelas a melodia de suas depravações.

O fato é que naquela madrugada o pequeno condomínio — dois predinhos, quatro andares — não dormiu. As misteriosas vocalizações mantiveram todos acordados, tomados por uma espécie de indignação, inquietante e febril. No dia seguinte, não se ousou tocar no assunto. Olhares de curiosidade ou inquisição eram trocados pelos corredores. Buscavam qualquer sinal de culpa, mas só encontravam olheiras profundas e pálpebras cansadas. A exceção eram as duas garotas recém-mudadas para o 403B, de sorriso largo e semblante leve, como ninguém mais naquele condomínio.

*Vinícius São Pedro é professor de biologia na Universidade Federal de São Carlos — campus Lagoa do Sino.


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