a terra é redonda

Você não estava aqui

Por
Roberto Noritomi*

Comentário sobre o novo filme do cineasta inglês Ken Loach

Ken
Loach está novamente na linha de frente, lançando mais uma carga ligeira. Suas
obras são sempre um chamado para o debate. Desta vez com um tema dos mais
atuais e globais. Você não estava aqui
se apresenta como um petardo lançado contra a chamada “economia gig”, que vem
se difundindo sob as mais variadas formas de desregulamentação das relações de
trabalho.

O
filme se constrói em torno de uma família proletária (os Turner), pobre e
endividada, que vive em Newcastle. O pai, Ricky, é um ex-empregado da construção
civil que, seduzido pela promessa de “ser o próprio patrão”, acaba se tornando
motorista franqueado de uma grande empresa de entregas expressas.

A
mãe, Abby, é cuidadora de idosos autônoma que realiza serviços domiciliares.  A partir daí o que se vê ao longo do filme são
as dificuldades que pai e mãe enfrentam para lidarem com o cotidiano, em
particular a educação dos dois filhos, sob a pressão de seus empregos
precarizados (personificado pelo impassível Maloney, o gerente do depósito de
entregas). Do transporte compartilhado às entregas em geral, passando pelos
serviços em domicílio e demais vínculos flexíveis, tudo parece sintetizado nas
desventuras essa família.

Bem
ao seu estilo, Loach dispõe todas as peças na mesa, de maneira direta e sem
firulas alegóricas (o que é um ganho). O filme um drama realista sem
complicações, sustentado por recurso verbal ostensivo e cenas denotativas, ou
seja, extremamente reiterativas da crítica que se pretende fazer. A organização
das sequências deixa isso claro.

O
filme se abre com a entrevista entre o gerente Maloney e Ricky. A fala de
Maloney se depreende dos manuais de administração. Ele explica a Ricky as maravilhas
da franquia, da total falta de vínculos e da autonomia sobre os ganhos e a
rotina: “como tudo aqui, Ricky, é sua escolha”.  Crédulo e sem alternativas, Ricky está animado
com as promessas do novo emprego: é um “guerreiro”, não um “perdedor”. Eis aí o
enunciado ideológico.

As
sequências seguintes, em contraposição, vão rebater a retórica cínica do
gerente e descrever o caráter fatigante do trabalho autônomo de Ricky (e de
Abby por derivação) e as consequências drásticas sobre a vida familiar. As coisas
só pioram e todo esforço resulta em mais dívidas. O último plano é com Ricky exasperado
ao volante, debilitado por um ferimento ocorrido no dia anterior, e precisando
cumprir as entregas atrasadas. “Não tenho escolha”, diz ele ao filho, num
contraponto direto à frase de Maloney na sequência inicial. Moral da história:
a liberdade e o ganho rápido prometidos pela “nova economia” não passam de
engodo.

Sem
o risco de errar, logo se percebe que o filme Você não estava aqui está muito próximo de um libelo didático
bastante simples. Nele é mostrado como os mecanismos
hiper avançados e cômodos de consumo e de emprego autônomo são apenas máscaras
que encobrem uma realidade de opressão e desespero. É a falácia de uma
peça ideológica que está sendo exposta e denunciada. Essa é a chave imediata e
tentadora para adentrar o filme e cair na armadilha de valorizá-lo pelo seu
conteúdo.

A
exposição do tema, onde e como for, contribui para adensar a conscientização e
a rejeição ao desmantelamento dos exíguos recursos de proteção de trabalho. Sem
dúvida, o filme é necessário e as intenções de Loach são oportunas. No entanto,
a obra tem muito a perder esteticamente se o caminho analítico for apenas por aí.
Seu voo é curto. Assim, se não é pelo seu negativo que Você não estava aqui logra alçar um voo menos curto, restaria o seu
positivo, isto é, aquilo que acrescenta de valor à sua substância principal,
qual seja, a classe trabalhadora. É como cronista dessa classe que o diretor
inglês recebe sua melhor nota e se mantém em posição relevante. Seu empenho
realista conta aqui. Pois vale, então, observar como isso ocorre.

Em
Você não estava aqui, a disposição
estrutural das sequências dá as pistas de entrada. O filme se desenvolve
linearmente, mas não se pode dizer que haja um arco dramático que o lastreie.
Com exceção da já mencionada primeira sequência, que é deflagradora de todo o
sentido, as demais não estão dispostas numa sucessão rigidamente hierarquizada
e interconectada por um roteiro fechado.


certamente um encadeamento cronológico, mas isso não significa o desenrolar de
um crescendo de expectativas em direção a um fim aguardado. Nenhum personagem
tem uma meta ou uma adversidade específica a ser transposta e em torno da qual
se fixaria o envolvimento emocional do espectador até o grande, e catártico,
desfecho (o pagamento das dívidas e a compra da casa são anseios muito vagos e
não teriam um papel diegético preciso).

Os
sofrimentos e conflitos são absorvidos no interior da sequência em que se
manifestam e não se desdobram para além dela: os desentendimentos entre pai e
filho não chegam a remates de maior gravidade; as discussões ríspidas entre
Maloney e Ricky não culmina na ruptura do contrato; por mais que as angústias
de Abby no trato com seus pacientes se acumulem, isso não leva a uma mudança de
rota em sua profissão. O que se verifica é uma teia de unidades dramáticas relativamente
estanques e heterogêneas, carregadas de intensidade variável. Um evento não
prepara necessariamente o passo seguinte.

Do
modo como estão montadas, essas unidades podem ser vistas como secções de uma
realidade contínua. Não existe um corte de continuidade ajustado entre elas. São,
na verdade, instantâneos ou recortes do cotidiano proletário que abrangem desde
a rotina de trabalho até a frugalidade da vida familiar, com todas a riqueza
que possam conter. É a entrega de mercadorias que se repete dia após dia; a
espera no ponto de ônibus; a provocação sobre o time de Ricky; a chegada ao
posto de distribuição; uma discussão sobre o desempenho do filho na escola; um assalto violento; e a longa espera para atendimento num
hospital público.

Cada
um desses momentos, mais ou menos singelos, são revestidos de significados e
merecem ser vistos simplesmente pelo que mostram. A decupagem das cenas não está
totalmente condicionada por um controle estrito do olhar, incluindo ou
excluindo elementos dentro do campo de acordo com necessidades narrativas. Elas
estão lá também, às vezes ostensivas, mas convivendo com uma câmera que se move
e enquadra de modo menos convencional. Sem estarem submetidos a um tempo
narrativo, os planos procuram se ater à duração do fenômeno, permitindo
registrar aquilo que transborda a cena, da última mordida de um sanduíche até
uma porta que bate e não se fecha por completo.

Tudo
está impregnado da experiência de classe, que é determinada e que cabe ser
apreendida em sua inteireza e elevação.  Daí
a insistência de Loach, ao longo de sua carreira, no uso de uma câmera mais
contida, concentrada em planos fixos, médio ou de conjunto, poucos cortes e
movimentos restritos. Definitivamente, a temporalidade do diretor inglês não
está alinhada a muitos de seus jovens contemporâneos.

Esse
registro estendido, vagaroso, tem no trabalhador e no seu fazer-se, pelo
trabalho, o objeto privilegiado. Não é gratuito, portanto, que o processo de
trabalho receba um foco todo especial e chegue a ocupar a maior parte do filme.
Para Loach isso sempre foi fundamental e parece que agora é ainda mais. Em Você não estava aqui, o processo de
trabalho se impõe nas sequências do começo ao fim, como algo inarredável. Quase
como um inventário de “administração científica”, a câmera está ocupada em esquadrinhar
todas as etapas, instrumentos e habilidades do processo em suas minúcias.

Da
profissão de Ricky se compreende desde o uso do scanner (the gun), o
carregamento da van e o deslocamento pelas ruas, até a entrega da encomenda ao
consumidor. De Abby também se tem semelhante apreensão das atividades, com
ênfase nas viagens de ônibus, no uso de aparelhos de medição e relatórios. Não
há notícia, no cinema recente, do trabalho receber
uma representação visual tão ostensiva, explícita. A atividade exibida é árdua,
reiterada num movimento contínuo e repetitivo para que se imprima sua
concretude.

Quem
assume o primeiro plano é o trabalhador, ativo e altivo, que é submetido pelo
capital e ao mesmo tempo reage sobre o processo com sua destreza e conhecimento
(por mais aviltado que ele tenha se tornado). Ricky e Abby se afirmam dramaticamente
pelo modo como desempenham suas funções; é assim que eles e toda a classe
trabalhadora enfrentam a opressão diária. Não há chance para o parasitismo nem
para personagens ressentidos com patrões e com o mundo.

Em
que pese o acentuado esvaziamento do trabalho, gradualmente controlado por sistemas
e equipamentos telemáticos, esses trabalhadores mantêm algum orgulho do que
fazem. Neles persevera o trabalho como um valor ainda pertinente. Na cena da entrevista,
Ricky se assume um grafter, ou seja,
uma pessoa que trabalha duro e dispensa o lazer, e é a isso que se resume sua
rotina. Numa outra cena, em casa, ele procura convencer o filho de que o
trabalho é o único meio para sobreviver (na delegacia é o policial quem fará
isso). Ironicamente, toda dedicação a esse valor não resultou numa vida próspera
à família; mas para Loach o problema não é o trabalho, são as formas que ele
assume no capitalismo.

Para
Loach, o trabalho não pode deixar de ser a atividade nuclear da vida social e o
definidor da dinâmica e das fronteiras de classe. Classe que não é, todavia,
uma ideia vaga e trivial que pode ser aplicada indistintamente a qualquer
categoria oprimida ou pobre. Nesse ponto, o diretor inglês é cioso das determinações
materiais e, fazendo jus à faceta documentarista, se preocupa em entremeá-las
no tecido fílmico.

Aqui,
o cronista encontra o historiador. O microcosmo diário recebe a baliza dos
dados históricos. A classe de que se fala é inglesa, com seus hábitos e
dialetos; sintomaticamente mora em Newcastle, cidade célebre pelo seu passado
industrial e hoje um lugar dominado por comércio e serviços. A biografia de Ricky
faz parte dessa reestruturação produtiva (ele é originário de Manchester, berço
da industrialização e do movimento operário, e teve que se mudar).

Da
mesma forma, sua situação familiar é consequência da crise de 2008, e da quebra
do Northern Rock Bank, que arrastou uma multidão para o desemprego, segundo esclarece
a conversa entre Abby e sua cliente Molie, uma ex-militante de esquerda, hoje
com sérias dificuldades de locomoção e abandonada pela família. Aliás, esse é
um momento significativo. É quando Molie, mostrando fotos para Abby, lembra de
sua participação no comitê de apoio à célebre greve dos mineiros contra o
governo Thatcher, em 1984.

A
greve foi massiva, prolongada, e se insere nos primeiros embates diante contra
a primeira grande onda neoliberal. Loach também estava lá, apoiando e filmando,
e produziu dois documentários engajados sobre a greve (which side are you on? (1984) End of the Battle… Not the End of the War?(1985)). A lembrança,
portanto, tem um peso singular; por um lado aponta para a origem do desmonte
institucional que se vive hoje; por outro, sinaliza o passado operário
combativo e o papel do próprio diretor nesse contexto.

É um dado do qual se poderia derivar muitas
leituras. Por ora basta a nota melancólica que se extrai da cena. Após Molie
expor as fotos desse evento de extrema envergadura política, Abby apresenta,
constrangida, as fotos da sua vida familiar. No encontro dessas duas gerações
de trabalhadores, por meio das fotos confrontadas, ficam implícitos os reveses
político-econômicos que esfacelaram a identidade e a organização da classe nas
últimas décadas. Contudo, apesar das mudanças de perfil, despolitizado e
individualista, Loach parece não propor uma condenação desses novos trabalhadores
e de suas atitudes; são eles que compõem a classe na atualidade. É preciso olhá-los
e compreendê-los como são, com objetividade.

Uma
das preocupações de Loach, em Você não
estava aqui
e em toda sua obra, é estabelecer com os personagens e seus
dramas alguma forma de tratamento objetivo, jamais neutro ou isento. Um dos
procedimentos para dar conta dessa abordagem é a maneira como Loach tenta
rearticular a relação entre a câmera e o ponto de vista dentro das cenas. Ainda
que o mecanismo de identificação clássica esteja presente, ele não é subscrito fielmente
durante todo o filme.

Os
planos de conjunto, os ângulos da câmara discrepantes com a perspectiva do
personagem e a descontinuidade de alguns cortes são recursos que imprimem um
certo distanciamento emocional diante da cena. As cenas que mostram diálogos e
práticas de trabalho são, com frequência, enquadradas em conjunto, em planos
mais longos, e parcamente decupadas. Objetos ou pessoas surgem entre a câmera e
o evento filmado, demarcando tanto o afastamento como a posição à espreita do
espectador.

Isso
ocorre, por exemplo, no hospital, quando Abby esbraveja contra Maloney. O
enquadramento se move de Ricky para Abby, que se levanta e é mantida num plano
médio enquanto fala; algumas pessoas atravessam no primeiríssimo plano,
indicando o distanciamento da câmera (e do espectador) frente àquele momento
dramático. O corte para as faces espantadas dos demais pacientes transfere o
ponto de vista para aqueles olhares, que se firmam como testemunhas de uma
situação dolorosa sobre a qual não podem interferir, apenas se indignar. O
sentimento de quem assiste não se funde totalmente ao sentimento dos protagonistas
postos em cena. Não cabe o envolvimento catártico.  Loach se restringe a conduzir o espectador para
dentro daquela família de trabalhadores, sem torná-lo um dos membros.

A
construção desse distanciamento é crucial para Loach indicar que se trata do
coletivo, a classe, e não do indivíduo. A condição dessas pessoas transcende qualquer
particularidade e remete a um movimento histórico, objetivo, traçado pela luta
entre capital e trabalho. Isso não quer dizer que personagens e situações sejam
meras caricaturas alegóricas ou tipificações de um anacrônico realismo
socialista. O filme, como se tentou demonstrar, está assentado numa estruturação
sem uma diegese muito precisa, os personagens não são expressão de agentes
sociais esquemáticos, a encenação não se prende a um roteiro restritivo e é
feita em locações. O esforço é ancorar o ficcional na realidade presente,
documentada, e produzir uma obra que dialogue e intervenha sobre o mundo.

Ken
Loach é um cineasta efetivamente político. Ele toma partido. Sua câmera tem
ética e está a serviço da classe trabalhadora. Desde o início, vem realizando
obras que visam dar conta das lutas e das formas de ser de trabalhadoras e
trabalhadores. Você não estava aqui é
fiel a esse posicionamento. Vale mais pelo que afirma e do que pelo que nega.

A
precarização do trabalho arrasa a vida de Ricky e Abby, contudo, é a fibra e a
resiliência dos dois que importam. É a dignidade do trabalho e de toda uma
classe que reside e resiste naquela família. Na visão de Loach, a classe pode
capitular, mas não compactua. Nessa linha, alguns poderiam dizer que o filme é
pessimista e não leva ao conflito. De fato, pelo viés da acusação, a engrenagem
parece moer inexoravelmente os trabalhadores. Entretanto, viu-se que Loach é um
cronista social interessado em fortalecer a imagem da classe trabalhadora em
ato, no seu existir cotidiano. Não está para ele dirigir um levante operário,
principalmente pelo filme. O diretor se insere na luta, mas não pretende ser
seu guia. O final em aberto evidencia isso. O salto histórico está fora da
cena, fora da arte. Nas mãos da classe.

Numa
época em que explosões de ressentimento inundam as telas e são saudadas como
ações emancipatórias e redentoras, Ken Loach é um antídoto necessário.

*Roberto
Noritomi

é doutor em sociologia da cultura pela USP.

Você não estava aqui – 15/03/2020 – 1/1
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