Por SUZELEY KALIL*
Prefácio do livro recém-lançado de Ana Penido
O retorno ostensivo dos militares ao governo que aconteceu com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016 dirigiu os holofotes para as Forças armadas, redundando no crescimento de publicações que objetivam compreender o que são e o que fazem os militares. No entanto, tal crescimento nem de longe representa o volume que corresponderia à presença militar na política brasileira. Como estudiosos de diferentes matizes políticos apontam, as Forças armadas estiveram presentes em todos os eventos políticos importantes da história política do Brasil, na maioria das vezes como protagonistas.
A educação, por outro lado, é tema de discussões e trabalhos constantes, leigos ou especializados; dirigidos ou gerais. Pode-se dizer que o foco na educação responde a sua permanente importância no processo de sociabilização do ser social. A educação e, em seu interior, o ensino, apesar do advento de novas tecnologias, especialmente da internet, continua a ser o principal mecanismo de construção do sujeito-cidadão. É na escola que se vivencia o processo de sociabilização no qual criam e se transformam valores próprios de determinada sociedade que permitem sua reprodução e transformação (Durkheim, 1978).
Observe-se que se a academia pouco se dedicou aos estudos das ffaa, menos ainda enfocou a educação do militar. E mesmo a literatura mais recente apenas menciona a educação porque é impossível não relacioná-la com a doutrina prevalente na caserna, um dos pilares do pensamento que dominou a administração pública pós 2016.
É na confluência destes dois temas, educação e forças armadas, que Ana Penido dedica sua pesquisa. Assim, sinto-me privilegiada por apresentar este livro que tem como primeira qualidade a coragem de jogar luzes sobre um tema desafiador tanto pela importância em si da educação dos militares – qualquer transformação real deve iniciar-se no interior dos muros escolares –, quanto pela falta de informações e acesso a fontes que o cerca.
O livro que o leitor tem nas mãos originou-se de dissertação de mestrado defendida em 2015 e laureada como a melhor dissertação do Programa de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense. Tal prêmio aponta ao menos duas outras qualidades do trabalho: além de corajoso, é bem escrito, bem fundamentado e original. Enfatize-se que a pesquisa foi realizada entre 2013 e 2015 e, portanto, muito antes dos holofotes voltarem-se para os militares. Isso mostra a perspicácia da autora na escolha de seu tema de pesquisa.
Partindo do pressuposto de que as Forças armadas são profissionais, isto é, são formadas e treinadas em habilidades que lhes permitam exercer funções de defesa nacional, a autora envida esforços para compreender como se processa a profissionalização dos militares brasileiros, daí debruçar-se sobre a educação dos oficiais, os futuros generais/comandantes das Forças armadas. Na impossibilidade de estudar todas as escolas de formação, Ana Penido toma como exemplo a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), que é a responsável por formar os profissionais do Exército. A escolha da AMAN não é, todavia, aleatória: trata-se de analisar a escola responsável por formar os profissionais da força mais numerosa e com maior participação política entre as três Forças armadas nacionais.
Assim, no primeiro capítulo a autora descreve o estado da arte sobre profissionalização militar. Nele ela aponta como, por exemplo, a profissionalização não pode ser compreendida como um conceito único e universal, pois quando assim tratada, leva a discrepâncias substantivas. Esse é o caso, por exemplo, da avaliação de Samuel Huntington (1996), que entende existir uma relação direta entre profissionalização e apolitismo das Forças armadas. Esta proposição pode ser verdadeira para países como os EUA, que é o foco da análise do autor, mas não o é para países ex-coloniais, como é o caso do Brasil. Aqui as Forças armadas são altamente profissionais, mas participam ativamente do processo político.
Em razão da profunda leitura da literatura sobre relações civis-militares, Ana Penido propõe uma adaptação no conceito de profissionalização, chamando-o de “profissionalização à brasileira”. Ana Penido dedica o segundo e o quarto capítulos à construção deste conceito. Parte, então, da premissa que qualquer processo de profissionalização – o processo de transformar o sujeito leigo em especialista em algo -, transige segundo fatores externos e internos ao país. Considerando especialmente os internos, um dos mais importantes é a autonomia crescente que preside o desenho da formação profissional dos militares, apartando mais e mais o profissional das armas dos demais, inclusive aqueles da própria burocracia do Estado.
Outra qualidade de Ana Penido que está no livro é sua sincera humildade, pois ela afirma em mais de uma oportunidade que há várias lacunas no trabalho, não apenas porque faltou acesso a fontes ou tempo para uma investigação mais acurada, mas porque sua proposta não foi apresentar uma análise completa da educação dos militares, até porque tal postura alimenta pesquisas futuras. A isso nomeio talento acadêmico, pois representa deixar sempre aberta a discussão, brechas que permitam a crítica e o debate. Aproveito esta oportunidade, então, para mencionar alguns pontos que divirjo da autora e que, infelizmente, é impossível aprofundar aqui.
O primeiro ponto que menciono é que uma das características que a autora imputa como particular da profissionalização militar pode, entretanto, ser vista como comum ao ensino superior brasileiro: a disputa entre teoria e prática (o que seria mais importante, uma educação filosófica ou uma educação técnica?) – na linguagem militar, tarimbeiros versus bacharéis – que atravessou boa parte das discussões que antecederam seja a implantação do ensino superior no Brasil, seja o debate das distintas reformas legais (Saviani, 1997).
Outro ponto a destacar é a afirmação de que é responsabilidade da influência externa sobre a doutrina militar a profissionalização à brasileira ter como central “atender aos interesses das camadas dominantes na sociedade” e também “atender interesses externos, e não para o país” (p. 76). Concordo que as Forças armadas brasileiras estão longe de serem nacionais, de serem forças voltadas para defender o país. Porém, duas questões mereceriam ser colocadas de antemão: (i) exceto, talvez, pelos exércitos revolucionários, existe alguma força armada que não se prepare para atender os interesses da classe dominante? E também: (ii) como camadas dominantes de sociedades dependentes podem ser autônomas?
Marx e Engels (1848) ensinaram que o Estado nada mais é do que o comitê executivo da burguesia. Se a força armada é o meio específico que define o Estado, igualmente elas são o meio específico para atender os interesses das camadas dominantes. A segunda observação, corolário da primeira, é (quase) uma tautologia: se as camadas dominantes na sociedade brasileira são subordinadas (ou dependentes) das camadas dominantes dos países centrais, então seus interesses também o são e, portanto, as forças de defesa brasileiras devem ser profissionalizadas para atender interesses forâneos.
Acrescento: se usarmos lentes de aumento para ver os fundamentos doutrinários da profissionalização militar, é bastante provável que concluamos que há um “nacionalismo à brasileira” que faz parte do processo civilizatório da chamada débil e frouxa sociedade seguir as orientações das sociedades desenvolvidas, pois somente assim alcançaremos o progresso. Autores como Azevedo Amaral, Alberto Torres e, quiçá o mais conhecido, Oliveira Viana são representantes desse pensamento. Assim, minha opinião é que a doutrina que arrima a profissionalização à brasileira não foi forjada apenas pelas missões exteriores que aqui estiveram, mas estas encontraram um bom caldo de cultura para florescerem.
Em síntese, ao estudar profissionalização militar por meio da educação, Ana Penido passa em revista o processo de sociabilização do soldado. Em razão disso, toca em distintos temas que, como ela por vezes informa, merecem investigações mais acuradas. Entre estes, destaco: a questão da (quase impossível) compatibilidade entre especialização profissional e amplitude de funções exigidas do militar, o que é, lembra a autora, comum a uma variedade de profissões; a questão da escolha das armas, que tem apontado tendência discrepante entre o oficial desejado pela instituição e a eleição individual; o isolamento imposto ao militar que, se é funcional às exigências de disciplina e hierarquia, é disfuncional à defesa nacional; o impacto da diversidade religiosa sobre o comportamento dos cadetes e oficiais; o anacronismo dos programas disciplinares e de treinamento que alimenta o insulamento militar, etc.
Por todas as qualidades, mas também pelas lacunas, este Como se faz um militar? é um livro indispensável para todos aqueles que querem conhecer o profissional das armas, mas principalmente é um livro de educação em defesa e, portanto, é leitura obrigatória para a cidadania.
*Suzeley Kalil é professora de Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Referência
Ana Penido. Como se faz um militar? A formação inicial na Academia Militar das Agulhas Negras de 1995 a 2012. São Paulo, Editora Unesp, 2024, 256 págs. [https://amzn.to/3Zw8KBV]
Bibliografia
Durkheim, E. (1978). Educação e Sociologia. S. P., Ed. Melhoramentos.
Huntington, S. P. (1996). O soldado e o Estado. R.J., Bibliex.
Marx, K.; Engels, F. (2012) Manifesto do Partido Comunista (1848). S.P., Cia. das Letras.
Saviani, D. (1997). A nova lei de educação: trajeória, limites e perspectivas. Campinas, Autores Associados.
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