a terra é redonda

A captura do Estado

Por Antônio Sales Rios Neto*

A pandemia do Coronavírus, com todo o seu poder de destruição, provocará a reflexão necessária acerca da urgência de mudarmos o modelo civilizacional que tem como centralidade o mercado?

Em tempos de pandemia provocada pela Covid-19, percebemos que a linha
editorial dos diversos formadores de opinião, mesmo aqueles mais voltados para
a reflexão crítica frente à destruição patrocinada pelo capitalismo, seguem uma
tônica similar às adotadas em crises econômicas do passado. Cumprindo seu
objetivo de avaliar sistematicamente o movimento do capitalismo financeirizado
e de buscar alternativas viáveis para as crises que se instalam, observamos
diariamente uma enxurrada de artigos, opiniões e entrevistas examinando a
conjuntura atual provocada pelo Coronavírus ao redor do mundo.

Via regra, o ponto de vista predominante das análises, ao qual me
associo, é o de que o capitalismo sem um Estado forte se mostra inviável como
modo de vida hegemônico e que precisamos, portanto, recorrer às receitas
marxistas e keynesianas para viabilizar, por meio da intervenção do Estado, a
contenção da crise ou pelo menos mitigar as consequências devastadoras que
afligem grande parte da humanidade e o sistema Terra já seriamente
comprometido. Precisamos, portanto, aprofundar mais nossas análises e
consequentemente as alternativas para pensar e articular um outro modo de
funcionamento das sociedades.

Ao contrário do que é comum observar em muitas análises que defendem
haver uma crise do capitalismo (chegando por vezes até mesmo a anunciar o seu
fim e a reivindicar uma atuação do Estado mesmo com seu viés intrinsecamente
autoritário), na verdade o que existe e sempre existiu foi um capitalismo de
crises e, nos tempos atuais, um capitalismo de desastres gerador de distopias.
Quem diria que um dia a visão distópica de Raul Seixas, na música O dia em que a Terra parou,
se realizaria?

A cada sobressalto da economia mundial, a história tem mostrado que o
mercado se reinventa, captura os modelos mentais, direcionando-os para o
individualismo, o consumismo e a acumulação desenfreada, e assim ele vai se
sofisticando e consolidando cada vez mais sua hegemonia. O neoliberalismo que
nasceu da globalização e da financeirização do capital, a partir dos anos 1980,
é apenas o ápice desse longo processo gerador de crises cada vez mais
avassaladoras e de um fosso entre ricos e pobres sem precedentes na história, a
ponto do líder da maior potência econômica da história do capitalismo, o
presidente Barack Obama, ter afirmado por ocasião do seu discurso de despedida
na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2016, que “um mundo no qual 1% da humanidade controla uma riqueza equivalente à
dos demais 99% nunca será estável”.

No entanto, o elemento mais preocupante no modo de operação do
capitalismo frente às sucessivas crises que ele provoca é a captura sistemática
do Estado. Por isso, o que estamos assistindo não é o fim do capitalismo, mas o
fim do casamento entre mercado e Estado, ou seja, o fim da democracia de
mercado. O mercado, ao capturar o Estado, transmuta-o conforme à sua imagem. Em
artigo
recente
, Marilena Chaui, ao identificar no neoliberalismo uma nova forma de
totalitarismo, descreveu bem a gravidade do atual cenário: “em lugar da forma do Estado absorver a
sociedade, como acontecia nas formas totalitárias anteriores, vemos ocorrer o
contrário, isto é, a forma da sociedade absorve o Estado. Nos totalitarismos
anteriores, o Estado era o espelho e o modelo da sociedade, isto é, instituíam
a estatização da sociedade; o totalitarismo neoliberal faz o inverso: a
sociedade se torna o espelho para o Estado, definindo todas as esferas sociais
e políticas não apenas como organizações, mas, tendo como referência central o
mercado, como um tipo determinado de organização: a empresa – a escola é uma
empresa, o hospital é uma empresa, o centro cultural é uma empresa, uma igreja
é uma empresa e, evidentemente, o Estado é uma empresa.”

Na miríade de análises em torno da pandemia do Coronavírus, que em
alguns casos até ofuscam nossa capacidade de leitura das transformações no
mundo, me parece que boa parte das análises ainda são muito limitadas para
apontar saídas mais consistentes dessa condição de crise permanente, que é
inerente ao funcionamento do sistema capitalista. Temos que olhar e questionar
os modelos mentais que sustentam a visão de mundo hegemônica, ou seja, a trava
do condicionamento que nos impede de mudar nosso modo de relacionar com o
mundo. Nesse sentido, o teólogo Leonardo Boff, dias atrás,
expressou bem quais são os caminhos para sairmos da crise: “sustento a tese de que esta pandemia não
pode ser combatida apenas por meios econômicos e sanitários sempre
indispensáveis. Ela demanda outra relação para com a natureza e a Terra. Se
após passar a crise e não fizermos as mudanças necessárias, na próxima vez
poderá ser a última, pois nos fazemos os inimigos figadais da Terra. Ela pode
não nos querer mais aqui”. Ou seja, a solução passa pela revisão do
modelo mental vigente que estabeleceu uma relação de dominação e utilitarismo e
não de cuidado e integração com a natureza.

Ladislau Dowbor, no seu último livro A
Era do Capital Improdutivo
(Editora Op), desvenda com irrefutáveis fontes
de informação e pesquisa como o capital financeirizado sem fronteiras montou
uma estrutura de governança global cuja regulação tornou-se impossível até
mesmo dentro do próprio sistema capitalista. O trabalho de Dowbor nos fornece a
real dimensão de como um punhado de corporações financeiras apátridas e seus
intermediários acumularam um poder econômico e uma apropriação da política
fenomenais que travaram a economia produtiva, devastaram o mundo do trabalho e
os investimentos públicos, gerando prejuízos sociais e ambientais em escala
global.

De um lado, os paraísos fiscais aprisionam um estoque de ativos da ordem
de 25% a 30% (The Econimist arredonda para 20 trilhões de dólares) do
PIB mundial que gira em torno de 80 trilhões de dólares. A dívida pública
mundial alcança 50 trilhões de dólares, rendendo juros aos detentores desses
ativos. Do outro lado, diante da pandemia do Coronavírus e da crise financeira
decorrente, os Estados, muitos deles já combalidos, estão sendo convocados a
injetar mais recursos financeiros em suas economias, tanto para mitigar a tragédia
da pandemia quanto para “salvar” instituições financeiras. Ou seja, as
gigantescas cifras que outrora foram drenadas para o rentismo de 1% da
humanidade não retornam para salvar vidas dos 99% em momentos de calamidade
global como a atual, a qual tem potencial para ampliar a crise humanitária já
em curso. Trava-se uma disputa entre o capital, que é antivida por natureza, e
a vida do todo o sistema Terra.

Se o século XX, com as suas duas guerras mundiais e uma guerra fria, com
suas ogivas nucleares arriscando pôr fim à civilização, não foi suficiente para
questionar os modelos mentais que sustentam a visão econômica de mundo, receio
que o Coronavírus, com todo o seu poder de destruição da vida humana, não seja
capaz de provocar a necessária reflexão para mudarmos nosso modelo
civilizacional que tem como centralidade o mercado. O neurobiólogo chileno
Humberto Maturana, uma das maiores autoridades científicas na biologia do
conhecer, ou seja, na ciência de como percebemos o mundo, disse que “uma cultura é, para os membros da
comunidade que a vivem, um âmbito de verdades evidentes que não requerem
justificação e cujo fundamento não se vê nem se investiga, a menos que, no
devir dessa comunidade, surja um conflito cultural que leve a tal reflexão.
Esta última é a nossa situação”. Temo que ainda não chegamos a um nível
de conflito cultural capaz de provocar a metamorfose necessária para evitar o
colapso da civilização. Assusta-me pensar o que estar por vir.

Ao que tudo indica, tomando por base as experiências de crises
humanitárias do passado e do presente, os efeitos trágicos do Coronavírus serão
em boa medida mitigados mais uma vez pela solidariedade humana. São poucos os
países capazes de lidar adequadamente com a pandemia e, nos casos em que o
Estado já se encontra com sua economia quase colapsada pelos efeitos nocivos de
sua captura pelo mercado, só resta o espírito de solidariedade das pessoas que
aflora naturalmente em situações dramáticas como essa.

Evidentemente que o nível desse afloramento se dá a depender da visão de
mundo de cada indivíduo e de cada comunidade. Fica aqui o convite à reflexão
para reavaliarmos nossos modelos mentais, pelo menos no nível individual e
local, já que ainda estamos muito distantes de uma sociedade da cooperação, do
cuidado e de valorização da vida: o que cada um de nós, enquanto pessoa ou
enquanto empresa, está fazendo para ajudar aqueles no seu entorno, os quais já
se encontravam em situação de extrema vulnerabilidade antes do Coronavírus e
que agora são alvos inevitáveis da pandemia que assombra o mundo?

*Antônio Sales Rios Neto, engenheiro civil, é pós-graduado em Consultoria Organizacional pela FEAAC-UFC.

A captura do Estado – 24/03/2020 – 1/1
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