a terra é redonda

O cansaço despolitizado

Por BRUNO FARIAS*

O cansaço despolitizado é um estado de exaustão contemporâneo que se acumula na alma e nos corpos, mas que não se converte em enfrentamento, refletindo a precariedade das condições materiais de vida e a despolitização da vida cotidiana

1.

Em um artigo, publicado recentemente no site A Terra é Redonda, falei sobre a liberdade de expressão e a estratégia da extrema-direita. Mas deixei de abordar um tema que considero diretamente ligado a isso. Por isso, escrevo este novo texto.

Caio Fernando Abreu cunhou, em um conto chamado “Aconteceu na Praça XV”, a expressão “cansaço despolitizado” para nomear um estado de exaustão contemporâneo, sem linguagem coletiva, sem consciência de classe, sem organização. Um cansaço profundo, que se acumula na alma e nos corpos, mas que não se converte em enfrentamento. Esse estado é hoje, talvez, a forma dominante de existência entre as parcelas mais pobres da população brasileira, atravessadas por jornadas extenuantes, isolamento, violência simbólica e instabilidade permanente.

Esse cansaço não é um acaso. Ele é produzido. Não apenas pela precariedade objetiva das condições materiais de vida, mas também por um processo histórico e sistemático de despolitização da vida cotidiana, operado por múltiplas mediações, entre as quais as tecnologias digitais cumprem papel central.

É justamente aqui que reside a urgência política da esquerda construir uma presença sólida e estratégica nas redes sociais: não se trata de uma questão de “modernização da comunicação” ou de “atingir novos públicos”, mas de algo mais profundo: a negação desse espaço é, concretamente, a negação da fala com os mais pobres.

O deslocamento do espaço público para o privado, do coletivo para o individual, não é novo. Mas com as tecnologias digitais, ele se aprofundou de forma qualitativamente diferente. Se em meados do século XX a televisão já havia modificado a experiência coletiva do lazer das populações mais pobres – substituindo o teatro, as praças e os cinemas pela sala de estar –, hoje vivemos um estágio mais radical de reconfiguração social: o consumo cultural se dá em absoluto isolamento, por meio de uma tela individual, seja de celular ou computador, sem qualquer presença de escuta mútua, conflito ou confronto de ideias.

Se antes ainda era possível assistir um telejornal ao lado da mãe, do pai, de um irmão – ouvindo comentários, críticas e reações –, hoje, a maioria dos trabalhadores assiste vídeos no trajeto do trabalho, no quarto, no banheiro, com fones de ouvido e sem qualquer forma de troca ou debate. O isolamento não é apenas algorítmico: ele é físico, espacial.

Essa reconfiguração da experiência social é política. Ela molda a forma como se percebe o mundo, como se interpreta a realidade e, portanto, como se organiza ou não a ação coletiva. A indústria cultural, como Theodor Adorno e Max Horkheimer alertaram em Dialética do esclarecimento, já promovia uma padronização das consciências e a reprodução da ordem capitalista sob a aparência de entretenimento.

Mas hoje, essa lógica se tornou personalizada: cada sujeito recebe um cardápio moldado por algoritmos, que reforçam crenças preexistentes e isolam cada um em sua própria bolha informacional. Não há mais espaço para o contraditório, para a experiência do dissenso, para a politização das contradições vividas.

2.

A esse isolamento informacional, soma-se a individualização crescente das relações de trabalho. O home office, os aplicativos de entrega, os microempreendedores forçados, o trabalho remoto intermitente: tudo isso contribui para desagregar a classe trabalhadora, minar os vínculos coletivos, enfraquecer a consciência de pertencimento.

O trabalhador não se reconhece mais como parte de uma totalidade explorada, mas como um “empreendedor de si mesmo”, responsável individualmente por seu fracasso ou sucesso. A lógica meritocrática e o discurso do esforço pessoal substituem a compreensão estrutural da exploração. A despolitização se enraíza.

Herbert Marcuse, em O homem unidimensional, já alertava que as sociedades capitalistas avançadas produzem sujeitos incapazes de negação: adaptados, domesticados, resignados. A era digital levou isso ao extremo. A constante conexão digital não criou mais vínculos; criou vigilância, ansiedade e uma falsa sensação de participação. Não há comunidade real, apenas fluxo ininterrupto de dados. As redes sociais, que poderiam ser instrumentos de socialização, são, muitas vezes, dispositivos de vigilância, performatividade e solidão.

Diante desse cenário, a pouca capacidade da esquerda de se articular no espaço digital não é apenas um erro de comunicação, é uma omissão política gravíssima. Negar esse território é negar o diálogo com quem mais precisa ser politizado: a juventude periférica, os trabalhadores precários, os desempregados, os estudantes das universidades públicas, as mães solo, os entregadores de aplicativo. Todos esses sujeitos estão nos dispositivos móveis. Estão, diariamente, consumindo conteúdo isoladamente, esgotados, sem escuta, sem contraponto, sem comunidade.

A ideologia de esquerda nasceu como expressão política da classe trabalhadora, como tentativa de unificar, em um projeto emancipador, os diversos setores populares explorados e oprimidos. E a classe trabalhadora, hoje, está nas redes. Está consumindo vídeos, imagens, frases, músicas, narrativas, tudo isso em um contexto de extrema fragmentação. Se não se ocupa esse espaço com política, esse espaço será ocupado pela desinformação, pelo ódio, pela religião mercantilizada, pelos discursos individualistas e antipolíticos.

A comunicação digital, portanto, não é mais uma ferramenta entre outras, ela é hoje um dos principais campos da luta política e ideológica. Negar isso é abandonar o combate. E mais: é se afastar, de forma criminosa, da classe que o campo se propôs a representar.

3.

Outro aspecto que evidencia a importância de a esquerda ocupar esse espaço é quando observamos que a extrema direita, tanto no Brasil quanto internacionalmente, já ocupa esse espaço com clareza estratégica e profundidade ideológica. A estética bolsonarista nas redes não é apenas uma improvisação grotesca: ela é parte de um projeto político articulado que se enraíza em matrizes históricas longas.

A estratégia digital do bolsonarismo não foi criada no Brasil. Ela é uma importação adaptada do modelo forjado nos Estados Unidos por figuras como Steve Bannon, ex-estrategista-chefe de Donald Trump e articulador de uma rede internacional da extrema direita.

Essa rede opera sob um imaginário muito preciso: o da excepcionalidade da civilização branca cristã, herdeira dos chamados Founding Fathers e dos Pilgrims, os primeiros colonos protestantes da Nova Inglaterra, que afirmavam estar fundando, sob inspiração divina, uma “cidade sobre o monte”, símbolo de pureza moral, destino divino e superioridade cultural. Esse mito fundacional americano, posteriormente transformado em doutrina política sob a expressão Destino Manifesto, estabeleceu como princípio que os Estados Unidos teriam uma missão dada por Deus de liderar, civilizar e subjugar os povos tidos como inferiores, dentro e fora de suas fronteiras.

É justamente esse imaginário de supremacia racial, religiosa e cultural que estrutura os conteúdos da extrema-direita digital. O discurso da guerra contra o “marxismo cultural”, da restauração de valores “tradicionais”, da defesa da “família”, da “liberdade” e da “ordem” se apoia numa lógica de pureza étnico-cultural que jamais é dita de forma explícita, mas que sustenta simbolicamente os afetos e a agressividade política contra o outro, o pobre, o negro, o indígena, o LGBT, o comunista.

Essa estrutura ideológica, herdeira direta das teorias supremacistas norte-americanas, se traduz em estratégias comunicacionais altamente eficazes: produção em massa de conteúdo emocional, repetição incessante de palavras de ordem, construção de identidades políticas rígidas, uso intencional do humor como forma de violência simbólica e banalização da linguagem política como mero espetáculo.

Steve Bannon entendeu com antecedência que as redes sociais não são apenas canais, mas dispositivos de subjetivação. São nelas que o sujeito isolado, precarizado, cansado e ressentido encontra pertencimento simbólico, identidade e horizonte. O objetivo não é “convencer” o indivíduo no sentido clássico da política, mas capturá-lo emocionalmente, enraizá-lo em afetos de ódio e ressentimento, dar-lhe uma comunidade ilusória com inimigos claros e respostas simples.

O bolsonarismo brasileiro aprendeu e replicou essa lógica. O que se vê, portanto, não é improviso, mas método. E onde há método, há direção política.

A pouca importância adotada pela esquerda nesse campo se transforma não apenas em ausência de conteúdo, mas, também, em ausência de enfrentamento. E onde não há enfrentamento, a dominação avança. Se a esquerda se propõe a disputar a hegemonia, não pode ignorar o campo onde ela hoje se realiza de maneira mais intensa e direta.

A luta contra a extrema direita, contra o racismo estrutural e contra a destruição da democracia exige não apenas organização de base, mas também ocupação dos imaginários. E o imaginário hoje está sendo moldado, com velocidade e eficácia, dentro das plataformas digitais – sob comando de estratégias que articulam tecnologia, ressentimento e ideologia de dominação global.

Negar isso é não compreender o tempo histórico que vivemos. E não compreender o tempo histórico é abrir mão de transformá-lo.

Assim, a comunicação digital da esquerda deve ser, portanto, pensada não em termos publicitários, mas em termos gramscianos: como parte da disputa pela hegemonia. E hegemonia não é conquistar corações e mentes com estética moderna. É construir linguagem, sentido, coletividade, conflito e horizonte. A presença digital do partido deve ser uma forma de romper o isolamento, de politizar o cansaço, de reconstituir os laços esgarçados entre as pessoas e de colocar o sofrimento individual no campo da luta coletiva.

Sem isso, não haverá reconstrução de base, nem ascenso de consciência, nem retomada de protagonismo popular. Haverá apenas uma ideologia presa ao passado, incapaz de escutar, falar e agir no tempo presente. A comunicação digital é, hoje, o próprio conteúdo da política. E estar ausente dela é escolher a irrelevância. Por isso, se faz necessário uma comunicação digital crítica e emancipadora.

*Bruno Farias é graduado em economia e graduando em matemática.


CONTRIBUA

O cansaço despolitizado – 17/07/2025 – 1/1
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