Bolsonarismo, integralismo e fascismo

Christine Borland, gêmeos fantasmas, 1997
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Por GUILHERME SIMÕES REIS*

Prefácio do livro recém-lançado de Sergio Schargel

Da necessidade de investigar os fascismos sistematicamente

Estudar fascismo é obter satisfação em meio às sombras, justamente criando condições para alertar quando elas estão cobrindo os caminhos da democracia e da justiça. E que enorme alegria ver a excepcional dissertação de Sergio Schargel, que tive o prazer de orientar no Programa de pós-graduação em ciência política da UNIRIO, convertida neste belo livro.

Considero que o fascismo é um dos temas mais relevantes a serem debatidos acerca da política contemporânea, obviamente alinhando-me ao conjunto de estudiosos com a visão que Sergio Schargel classificou como “fascismo maleável” – e na qual ele também se enquadra, perdoem-me o spoiler. O mais interessante deste trabalho, ainda mais do que o consistente estudo do estado da arte do debate sobre o tema que é realizado no início, é que o autor discute a atualidade do problema voltando-se paralelamente, também, para o passado.

O mergulho profundo na produção textual do fascismo italiano permite, de modo bastante rico, perceber que o próprio movimento sofreu adaptações, ajustes, mudanças bastante drásticas ao longo das décadas. Isso reforça a deficiência de definições muito engessadas desse fenômeno político. Mesmo se tomado um único caso, este não permanece estático, exatamente com as mesmas características, ao longo do tempo.

Um conceito aplicável a mais casos necessariamente requer parâmetros menos conjunturalmente restritos. Evidentemente, há de se tomar a precaução de não incorrer no que Giovanni Sartori chamou de “conceptual stretching”, isto é, “esticar” demais o conceito de modo a que se aplique a qualquer situação que se queira. Sergio Schargel menciona vários casos em que o termo “fascismo” foi adotado desse modo. A frouxidão com que por vezes se usa o “fascismo” como expressão de ataque não torna seu oposto, a negação do fascismo como fenômeno existente, postura intelectual mais produtiva.

O modo como Sergio Schargel explora os sinuosos percursos traçados por Mussolini e seus seguidores ajuda bastante no entendimento do fenômeno em sua complexidade e, por extensão, permite a projeção do problema em outros contextos espaciais e temporais. São analisados documentos e discursos desde o primeiro programa fascista, publicado em 1919 no jornal Il Popolo d’Italia, até a Doutrina, de 1932.

A mesma metodologia se volta ao Brasil, que, para além de grupelhos menores diretamente inspirados na vertente de Benito Mussolini e no nazismo alemão, teve, na época clássica do fascismo, um significativo movimento autóctone e original, ainda que inspirado na experiência italiana: o Integralismo. O movimento liderado por Plínio Salgado também produziu documentos, que são analisados, com os mesmos parâmetros teóricos e metodológicos, por Sergio Schargel, a partir do Manifesto de Outubro de 1932.

A rejeição a individualismos e classismos são vistos, tanto no Fascismo italiano como no Integralismo brasileiro, como desvios egoístas à unidade nacional. É desse modo que ambos nascem se opondo ao liberalismo, ainda que isso se dilua com o tempo e que alianças com o empresariado liberal ocorram em diversos momentos. É brutal o contraste dessa inconsistente oposição ao liberalismo com o perene e virulento anticomunismo, com a aversão visceral à visão classista da esquerda, com o completo e eterno repúdio à concepção de luta de classes, em nome de supostos interesse e unidade nacionais: os “vermelhos” sempre serão seus inimigos.

Luta de classes, é importante esclarecer, dada a confusão sobre o tema, não se limita a situações de confronto físico, ao que Antonio Gramsci chamou de “guerra de movimento”. Luta de classes se refere a todo antagonismo de interesses entre a classe trabalhadora, “dependente de salário” como se referiu Wolfgang Streeck, e a classe capitalista. Refere-se a todo conflito distributivo entre elas.

Tal oposição se reflete em cada reforma que amplia a regressividade dos impostos ou desregulamenta os direitos trabalhistas, em cada (des)ajuste da política econômica no sentido de maior austeridade, em cada (ir)racionalização do sistema de transportes que reduz os gastos dos empresários que o exploram privadamente ao passo em que amplia o quanto se desperdiça do tempo de lazer e descanso dos trabalhadores dentro do ônibus ou do vagão do trem.

O estudo do fascismo requer uma mente atenta e não acomodada a fórmulas e simplificações exageradas. Isso porque é preciso identificar os padrões comuns, próprios ao fascismo, ao mesmo tempo que cada caso é único, com seus respectivos “bodes expiatórios” específicos, com seus repertórios nacionais singulares, com o passado que cada um deles idealiza e utiliza como espelho da ordem que pretende construir, uma vez destruída a atual.

A preciosa investigação de Sergio Schargel justamente explora as idiossincrasias de cada caso e, simultaneamente, traça as pontes e aproximações entre eles. Sem a rigidez escessiva, comum entre os historiadores, de resistir a agrupar casos distantes em um mesmo grupo, devido aos aspectos únicos que obviamente cada um deles tem, o autor é hábil em conectar os fascismos clássicos ao contemporâneo bolsonarismo, e o fascismo central italiano aos fascismos periféricos brasileiros.

Essa capacidade de sistematização no nível macro é uma das virtudes da ciência política – que, por óbvio, tem também seus pontos fracos, como toda disciplina acadêmica. A formação plural de Sergio Schargel, mestre também em literatura, possibilitou que tal ordenamento, próprio dos politólogos, esmiuçasse com desenvoltura as produções textuais dos três casos de fascismo mobilizados neste livro, analisando-se os discursos, as mensagens, as autoimagens.

A missão intelectual em que o autor vem se engajando é a de esmiuçar as influências e penetrações da política na literatura e da literatura na política. Assim, são inevitáveis os pontos de contato com seu livro anterior, O fascismo infinito, no real e na ficção: como a literatura apresentou o fascismo nos últimos cem anos, produto de sua outra dissertação de mestrado, em literatura na PUC-Rio, de cuja defesa tive a oportunidade de compor a banca avaliadora.

Naquele livro, ele constatou que o fascismo podia estar de volta – aqui, uma referência ao excelente filme alemão Er ist wieder da, e ao romance homônimo de Timur Vermes do qual foi adaptado. No presente livro, Sergio Schargel mostra que o fascismo efetivamente está de volta, inclusive no Brasil.

Estudar o bolsonarismo é mais que investigar as condições que permitiram sua ascensão, que passa pela criminalização da política via Lava Jato e pela quebra do pacto democrático pelos partidos de direita do establishment, com o não reconhecimento da derrota eleitoral pelo candidato tucano Aécio Neves e pelo golpe de Estado disfarçado de impeachment contra a petista Dilma Rousseff.

O bolsonarismo, podemos dizer na linguagem econômica, tem o lado da demanda e o lado da oferta. Do lado da demanda, havia o espaço aberto para uma figura autoritária, reacionária, que se põe como outsider destrutivo de todas as bases do sistema político. Esse ponto eu havia desenvolvido em artigo em 2017, “O fascismo no Brasil: o ovo da serpente chocou” (Desenvolvimento em Debate, vol. 5), em coautoria com Giovanna Soares. O lado da oferta, por sua vez, tem a ver com quem é essa figura, com o coincidentemente trágico sobrenome Messias.

Sergio Schargel faz sólida pesquisa sobre o impacto com que o pensamento autoritário militar, com seus devaneios paranoicos de “marxismo cultural”, incidiu sobre o indisciplinado e precocemente aposentado militar Jair Bolsonaro, que, após longa trajetória como deputado federal do “baixo clero”, viria a se tornar presidente da República nestes tristes tempos que a democracia retrocede em todo o planeta.

Também como documento textual, é analisado ainda artigo de Ernesto Araújo, que sintetiza traços da “terraplanista” leitura que o bolsonarismo faz da política mundial. Além do alinhamento submisso a Donald Trump, há xenofobia orientalista (no sentido de Edward Said mesmo!), teorias conspiratórias, islamofobia.

Como Sergio Schagel chama a atenção, a extrema direita tem conseguido, em todo o mundo, beneficiar-se mais do que outros grupos ideológicos do uso das redes sociais. É interessante notar que os fascismos também tiraram proveito de outras tecnologias de comunicação, em outros momentos históricos, com particular eficiência. Os nazistas, os seguidores de Mussolini e os agitadores reacionários estadunidenses do pós-guerra estudados pelos frankfurtianos foram, todos eles, especialistas no uso do rádio. O nazismo teve também conhecido sucesso no cinema, com os icônicos filmes de Leni Riefenstahl promovendo os ideais de superioridade racial, o antissemitismo e insuflando o imperialismo e a guerra.

O fato de o fascismo mobilizar emoções, ódio, medo, desejo, em vez de argumentos racionalmente encadeados, torna os meios de comunicação de massa muito propícios para os seus fins. O bolsonarismo faz o mesmo na era dos memes, das correntes em aplicativos de mensagem, dos pulverizados canais patrocinados do YouTube onde qualquer “influenciador” tem autoridade equivalente ou superior à de um estudioso especialista ou à de alguém com vasta experiência no tema em questão.

O livro que apresento neste prefácio ajuda a compreender esse fenômeno que há um século ressurge em contextos muito diferentes, com aspectos distintos, mas sempre intolerante, hostil, autoritário e reativo a avanços civilizatórios na direção de um mundo mais justo e solidário (eu me refiro a solidariedade com o diferente, não a companheirismo dentro do séquito).

Para enfrentar um problema, não basta preocupação e disposição, é preciso identificar a ameaça. E não podemos esperar décadas para nos debruçarmos sobre isso, pois o perigo cruza diariamente conosco na calçada.

*Guilherme Simões Reis é professor da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Referência


Sergio Schargel. Bolsonarismo, integralismo e fascismo. Rio de Janeiro, Folhas de Relva, 2024, 308 págs. [https://amzn.to/3ySJo7F]


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