Por AIRTON PASCHOA*
Seis peças curtas
Capitalismo utópico
Escapou por um fio da maldição. Conheceu uma moça pobre como ele, amou-a e levou-a ao altar. A jovem esposa se revelou segura e com o tempo foram acertando a sorte. Às vezes pensa que lograram uma façanha digna do seu Hércules, Deus o tenha! Quantos subiram na vida honestamente, trabalhando como mulas e sem dissimular? Pode ser que tenham gastado as melhores horas enredados na contabilidade doméstica, mas como deixar de contar com o fantasma nada impalpável da insolvência? Estabelecidos, podiam agora se dar ao luxo de pensar, como às vezes pensa ele, aposentado, na rede, ou de passear, como às vezes passeia ela, de domingo, com as filhas moças, duas. Que vai ser delas, das meninas, — é a única coisa que ainda faz ranger a rede, nestes dias carentes de bom partido, associações de classe, cooperativismo?
Jornal Nacional
Confundia, vá entender a alma humana! coquetel com candelabro. Os dois eram chiques, via em filmes, mas talvez não fosse só isso. Talvez as caras acesas, os sorrisos luminosos, os tipos meio sebosos em torno de uma chama maior… Depois, apagado o coquetel, ou acabado o candelabro, não é que saíam todos derreados, mal se aguentando em pé os toquinhos de gente? Salvo um ou outro, quase sempre aquele chamariz central, e que devia ser o dono da festa, o tal de Molotov. Pode ser que confundisse mais coisas, ecologia com escatologia, banquete com bancada, bancada com cambada, robe com hobby, lobby com sigla, BNDES com benesse, FMI com Mobral, ONG com OVNI, mas não acreditava em tudo, não, que o homem foi na Lua, que andava melhor o país, que não era besta. No fundo, no fundo, e sentia um ímpeto de peito que só se acalmava com outro trago, não acreditava em nada, candelabro, cão que ladra, pé de cabra, abracadabra, cruz-credo, credo-em-cruz, encruzilhada, Embratel, coquetel, — tudo visagem, e se erguia de golpe. Quando nem a bebida o amansava, a TV pagava e apagava. Saía então do buraco, o breu era bom, e logo se distraía, contando a miséria de barracos amontoados, acesos, antenados… Tudo iluminado! E tudo toquinho de gente! Não podia ser, mas bem podia ser, pensou, uma puta — quermesse? Mercosul? Nunca que ia saber. Matou o rabo de galo e entrou ver a novela.
Meio circulante
O dinheiro é meio circulante porque faz as pessoas circularem. Quem tem circula, pelo shopping, pela cidade, pelo país, pelo planeta. Quem não tem, não circula. Fica parado. Geralmente pensando em como arranjá-Lo, ou na falta que Ele faz, ou no mal que Ele provoca, ou no quanto circularia atrás d’Ele se tivesse Ele por trás, ou esquece que Ele existe e começa a andar em círculos, ora maiores, ora menores, até cair no bueiro, quebrar a bacia, parar num pronto-socorro público e sair (força de expressão) amputado das pernas. Se por fortuna for maior o círculo, não o social, mas aquele que descreve o sujeito parado por falta de meio circulante, pode parar na periferia (do grego “circunferência”), círculo final em que a escassez de meio circulante é suprida pelo corre-corre incessante, nem sempre em círculo mas sempre animado, seja por quem vigia a pólis, o círculo menor, seja por quem teima, por bem ou por mal, em fazer circular o meio circulante. Recomenda-se nesse caso dispor das duas pernas. Caso contrário, em desobedecendo às ordens de “circulando, circulando”, sujeitar-se-á às penas da Lei.
Sem bálsamo
Vão se despedindo as balsas, é verdade, preteridas que são pelas pontes, meio de transporte que quadra melhor ao tempo. Vai o mundo ficando sem margens, outra grave verdade, e os balseiros sem eira nem beira. Quem lhes há de valer, meu Senhor dos Navegantes, se não sabem senão ir e vir, se não aprenderam sequer a fazer versos? Temo que fiquem zanzando pelas pontes os zumbis, de ponta a ponta, pelo menos enquanto não se decidem a se atirar
delas.
Desgosto
Morreu de desgosto, dizia minha mãe. Como é que se morria disso? Eis aí um dos maiores enigmas da minha infância. Aliás, o que era isso? Desgosto… Como se podia senti-lo? Tinha gosto o desgosto? Passava um tempão boquiaberto, nem sei se pensando mas com aquilo na cabeça rodando, respeitável que era o contingente de viventes abatido pelo flagelo, — perto de pandêmico pelos meus cálculos atuais, pois pouco contava o que oficialmente constasse do óbito. Tinha morrido de desgosto… Mas não foi fechando a boca que principiei a sentir gosto tão esdrúxulo e tão familiar, a intuir a natureza sub-reptícia do mal. Foi assim à toa, fechando um dia os olhos, baixando a cabeça naturalmente, lentamente espalmando sobre a mesa as mãos, tamborilando-a de leve com um e outro dedo, uma espécie de sinal, de pedido de água ao fim da jornada, tal e qual fazia meu pai. Que morreu de desgosto, dizia minha mãe.
Museu de cera
Meu avô ouvia no rádio Vicente Leporace.
O avô do meu neto assistia Artur da Távola na TV.
Um falava de política, outro de música clássica.
O neto, mudo, não vê nem ouve.
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*Airton Paschoa é escritor. Autor, entre outros livros, de Post streptum: espólio (e-galáxia). [https://amzn.to/4oHE6kK]
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