O Ancap

Imagem: Hannah Höch
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Por FAUSTO OLIVEIRA*

Apresentação pelo autor e trecho do romance recém-lançado

Thomas Piketty disse que o mundo vive um contexto similar àquele logo anterior à Revolução Francesa. Desconfio que não seja necessário recorrer ao clichê usual na comparação (“guardadas as devidas proporções”) para concordar. Concordo com Piketty sem reservas de linguagem e quiçá com ainda mais alarme. O mundo vive um acelerado estreitamento das possibilidades e futuros, exceto para os plutocratas e argentários de sempre, e seus acólitos.

Li com satisfação pessoal no jornal El País a entrevista de Piketty, porque a publicação coincidiu com a semana de lançamento do meu romance O Ancap. Considerei um bom presságio, talvez a manifestação de um espírito do tempo. O tampão que há quatro décadas interdita debates sobre alternativas mais benfazejas para as maiorias sociais parece, enfim, ter se rompido. Vazam críticas e propostas alternativas por todos os lados.

É neste contexto – razoavelmente desesperador para os próceres liberais no país -, que meu livro quer oferecer uma contribuição. O Ancap é uma ficção de acento econômico, mas cujo escopo se amplia para a natureza mesma da crise social que preme as sociedades contemporâneas. De onde vem tanto mal estar? Na superfície da narrativa, o livro explora aquilo que é factual: a predominância da economia financeira improdutiva e concentradora por sobre a economia real e seus encadeamentos. No território mais subjacente do livro, O Ancap conversa com o desejo egoísta arraigado e suas consequências sociais: uma juventude não solidária, revolucionária do individualismo (portanto reacionária), seduzida por projetos de rápido enriquecimento pessoal que apenas servem a projetos políticos de captura do Estado por argentários.

Uma sinopse: dois jovens estudantes de Economia rompem sua amizade quando um deles adere ao anarco-capitalismo, larga a faculdade, enriquece com trades financeiros e se torna influenciador de internet. O outro também enriquece, mas se associando em uma empresa industrial da área química. Seus caminhos voltam a se cruzar quando um lobby político se forma para construir a privatização total da saúde pública nacional. O jovem Ancap é usado pelo lobby, mas também o usa para propagar o famigerado projeto de destruição do Estado conhecido pela alcunha de “ancapistão”. Forma-se uma improvisada resistência que, no decorrer da narrativa, destrói criativamente o edifício conceitual das ideologias da supremacia do indivíduo.

Abaixo, um trecho de O Ancap.

“Todo economista tem espírito ordenador. Todos. Somos uma espécie que quer ser determinadora, e todo determinador precisa saber ordenar a seu modo. Se não sabe, deve fingir que sabe e pretender ordenar, que é o que a maioria dos economistas que entra no mundo das decisões políticas vem fazendo nos últimos muitos anos. Nossos acertos modestos e fracassos espetaculares alcançam representantes de todas as escolas de pensamento. Aqueles que se arriscam a ordenar as economias de seus países, sob a crença de que esse ordenamento pode existir de alguma forma independente de outros ordenamentos e dos interesses que o cercam, costumam responder por décadas. A regra geral é que, após nossas quase sempre malogradas passagens pelo governo, nós economistas somos filtrados negativamente por um prazo longo demais; muitas vezes nem erros médicos são cobrados assim. É da essência da atividade, não há escapatória.

Somos profissionais do gerenciamento de desequilíbrios, mas por uma dessas desgraças históricas, uma de nossas escolas de pensamento vendeu para a sociedade a ideia de que somos os fiadores do equilíbrio geral. Estes são os que mais praticam a negação, porque entram a gerir o interesse econômico coletivo afirmando ter o manual de controle de uma máquina extra-mundo, um sistema isolado que apenas paira sobre a vida, um celestial modelo meta-matemático que guarda em si a perfeição, apenas perturbado porque nós, seres humanos, somos imperfeitos. Uma visão que, por ser assim vaidosa, assim metafísica e assim delirante, só pode mesmo levar um economista a mais um fracasso espetacular. Que, por sua vez, precisará ser negado por longos anos de tergiversação e interpretação administrada com apoio de órgãos de mídia econômica que lhe prestem este favor. Negação, esta se tornou a chave de compreensão de fatos e processos econômicos que afetam a vida de todos desde quando o pessoal do equilíbrio metafísico ganhou um quase monopólio no debate público.

Margaret Thatcher foi quem deu a linha da negação ao negar, de forma bem espontânea e talvez até inadvertida, a própria existência da sociedade. Ela dizia que o povo passou a abusar dos benefícios do Estado, e que isso tinha um preço, aquelas coisas que todos ouvem todo dia, e de repente diz que “there is no such thing as a society”, que só existem homens e mulheres e famílias. E por aí se desfia o novelo de justificativas para todas as versões e adaptações de um pensamento recente, mas que reivindica origens no Liberalismo de Adam Smith, negando o fato de que Smith descreveu as belezas do trabalho socialmente dividido como a chave mestra para a grande construção social de riqueza que as sociedades humanas puderam passar a usufruir a partir de cerca de 200 anos atrás. Negou a existência da sociedade e, ipso facto, passou uma década negando à sociedade da Inglaterra aquilo que ela aprendera ser de direito seu. E bem, dizem os ingleses velhos que conheci que havia abusos em relação ao Estado de Bem-estar, e acredito que sim, deve ter havido muito abuso. Mas para um economista que não acredita em equilíbrio geral, isso é normal. Comprova o fato, de resto evidente, de que economia é gestão de desequilíbrios. Se há uma felicidade em não acreditar em equilíbrio geral, expectativas racionais e todo esse monte de absurdos, é que nós não precisamos negar sistematicamente.

O “there is no such thing as a society” da primeira-ministra inglesa havia virado um tipo de lema informal entre os Ancaps brasileiros, que eram e são vulgares e por isso vulgarizaram até a própria construção intelectual que há por trás do dito anarco-capitalismo. Fizeram camisetas com a frase, e outros produtos comerciais. O produto que mais destaque teve, e mais exerceu liderança, foi o canal de vídeos para jovens Ancaps interessados em enriquecer rapidamente e sem trabalho, que se chamava simplesmente “No such thing”, comandado por um jovem rico e talhado para excitar garotos a perseguir as virtudes da vida hiper individualista. O nome dele era Will Rich.

*Fausto Oliveira é jornalista. Editor do site Revolução Industrial Brasileira.

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