Imperialismo e dependência

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No capitalismo neoliberal, a subordinação da economia dos países dependentes entra numa nova fase. Mais desnacionalização da economia, desindustrialização precoce. Reativação, em bases históricas novas, de alguns elementos do tipo de dependência do período pré-1930

A política econômica do Governo Bolsonaro sugere que devem ser revistas algumas teses consagradas sobre o capitalismo e o Estado brasileiro no período recente. Talvez, seria melhor dizer, devem ser retificadas. Escrevo este texto com a intenção de iniciar um debate sobre essa retificação.

Dois fatos ocorridos no início do mês de fevereiro servem como ponto de partida para a reflexão. O Banco Central voltou a reduzir a taxa Selic e o Ministério da Fazenda suspendeu alguns obstáculos legais que dificultavam a participação das construtoras estrangeiras em obras de infraestrutura no Brasil. Não são fatos isolados. Quem acompanha o noticiário sabe que o Governo Bolsonaro tem tomado várias medidas que não são propriamente do agrado de segmentos importantes do capital financeiro e outras tantas que atendem amplamente os interesses do capital internacional.

Predomina amplamente no meio acadêmico e no jornalismo progressistas a visão segundo o “capital financeiro” genericamente apresentado domina o “capital produtivo”, também apresentado nessa caracterização geral. O modelo geral é muito bem conhecido e foi aplicado tal e qual aqui no Brasil. Antecipo uma observação: uma tese produzida nos países centrais e tendo em vista, fundamentalmente, a realidade do capitalismo desses países, foi transplantada e aplicada tal e qual em um país de capitalismo dependente como o Brasil. Voltaremos a esse ponto.

Agora, vejamos o tal modelo geral: (a) na atual fase do capitalismo, teríamos a acumulação de capital sob a égide do capital financeiro – o capital que se valorizaria sem deixar a esfera financeira, segundo a definição de François Chesnais inspirada no conceito de capital portador de juros de Marx; (b) tendo o Brasil ingressado, pelo menos desde os governos Fernando Henrique Cardoso, no modelo capitalista neoliberal, predominaria aqui o capital financeiro e, terceiro passo do raciocínio, (c) estaríamos sob a hegemonia política dessa fração da burguesia.

A pergunta então é a seguinte: o Governo Bolsonaro estaria desafiando o modelo atual de capitalismo? Sim, porque o Banco Central, sob o seu governo, vem derrubando sistematicamente a taxa básica de juros e o presidente da República usou os bancos públicos para pressionar os bancos privados a reduzirem a taxa de juros do cheque especial. O presidente chegou a fazer provocações públicas aos banqueiros, afirmando algo como: “A Caixa Federal vai tomar todos os clientes deles”. Paulo Guedes, por sua vez, discursou em Davos contra a escravização da economia brasileira por meia dúzia de bancos. Parecem-se com as afirmações feitas pelo ex-Ministro da Economia Guido Mantega, afirmações às quais se atribuiu aquela que teria sido a participação ativa do capital financeiro no movimento golpista.

Uma primeira tentativa de solução seria considerarmos a hipótese de que o capital financeiro não domina a economia brasileira e tampouco detém a hegemonia no bloco no poder. Mas, os fatos e análises existentes são consistentes para vetar esse caminho. Um segundo encaminhamento seria perguntarmos se a noção de capital financeiro e a representação do seu conflito com o capital produtivo não seriam utilizadas sem as devidas adaptações à realidade do capitalismo brasileiro, que é um capitalismo dependente. Esse é o caminho que nos parece mais indicado. A solução ficaria, mais ou menos, como segue.

Comecemos pelo modelo explicativo mais geral. No capitalismo neoliberal, a subordinação da economia dos países dependentes entra numa nova fase. Mais desnacionalização da economia, desindustrialização precoce e concentrada nos segmentos de maior densidade tecnológica, isto é, reativação, em bases históricas novas, de alguns elementos do tipo de dependência do período pré-1930. O capital financeiro, nesse modelo, precisa ser desmembrado. Temos um segmento no Brasil, o mercado de bancos comerciais principalmente, que é dominado por grandes bancos nacionais públicos e privados. Quem é prejudicado pelas medidas de política econômica do Governo Bolsonaro é o segmento nacional do capital financeiro. É contra ele que se pronunciou Guedes em Davos e é contra ele que Bolsonaro delegou ao presidente do Banco Central a autoridade para abrir o mercado bancário nacional aos bancos estrangeiros.

O objetivo parece ser o mesmo que Fernando Henrique e Pedro Malan perseguiram, com êxito, na década de 1990. Sim, Fernando Henrique não representava o “capital financeiro” em geral, mas, particularmente, o capital financeiro internacional. Essa política sofreu uma reversão durante os Governos Lula. Do que é que estamos falando? Do imperialismo e da dependência. No Brasil, não se pode importar, sem especificações, a tese do predomínio do capital financeiro. Aqui, o conflito mais importante no seio da classe capitalista tem sido, ao longo dos últimos anos, o conflito entre a grande burguesia interna, que compreende inclusive o capital bancário, e a burguesia associada ao capital internacional, que abrange segmentos do capital produtivo.

Os dois sistemas de fracionamento se cruzam. Do mesmo modo que no segmento do capital financeiro temos um setor que integra a burguesia interna e outro que integra a burguesia associada, assim também no segmento do capital produtivo temos burguesia interna e burguesia associada. Essa divisão é clara na indústria de transformação e na cúspide do agronegócio, onde a JBS convive com a Bunge. Os dois sistemas de fracionamento se cruzam, mas qual seria o principal?

Desde a crise de 2015-2016, os conflitos intraburgueses entraram numa fase de moderação. A burguesia interna sem ter se dissolvido como fração de classe, já que mantém uma política de pressão sobre o governo como estamos vendo na resistência à redução da tarifa comum do Mercosul, abandonou a posição de fração autônoma, isto é, dotada de um programa político próprio com vistas à hegemonia política, ao aderir, em sua maioria – atraída por políticas como a reforma trabalhista e reforma da previdência – ao Governo Bolsonaro.

É um conflito que, mesmo moderado, permanece e, nele, o Governo Bolsonaro toma partido claramente do lado do capital internacional: privatizações que estão passando empresas públicas para as mãos do capital estrangeiro, venda da Embraer, abertura do mercado de obras públicas após a destruição das empresas de engenharia nacional, alinhamento passivo e explícito com a política externa dos Estados Unidos e assim por diante.

O Governo Bolsonaro não representa prioritariamente o capital financeiro em geral. Representa o segmento associado e internacional desse capital – bancos de investimentos brasileiros voltados para a captação de recursos externos, seguradoras e bancos de investimentos estrangeiras. A posição dos grandes bancos privados nacionais, que, diga-se de passagem, sustentaram o Governo Dilma até a véspera do impeachment, como mostra pesquisa de André Flores Penha Valle, está ameaçada. Eles continuam com lucros altíssimos, mas perderam o controle da política de Estado. Poderão, nos próximos anos, perder também o controle do mercado bancário nacional. O mesmo vale para o segmento produtivo da burguesia interna. Muitas empresas industriais e do agronegócio poderão ter o mesmo destino que tiveram as grandes empreiteiras.

No interior da burguesia interna, temos sim um conflito entre o capital financeiro interno e o capital produtivo interno, mas esse não é o principal conflito existente no interior da burguesia brasileira. O principal é o conflito do conjunto da grande burguesia interna com a burguesia associada e o capital internacional. É do lado desses dois últimos segmentos que se encontra, sem possibilidade alguma de dúvida, o governo neofascista de Jair Bolsonaro.

Os analistas da política brasileira do período recente e atual que supõem ser possível discorrer sobre o conflito entre “rentistas” e “capital produtivo”, omitindo a dependência e o imperialismo, precisam rever suas análises.

*Armando Boito é professor titular de Ciência Política na Unicamp.

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