Por GREGORY AUGUSTO CARVALHO COSTA*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Renato Kinouchi
1.
Sem exageros, a teoria da probabilidade pode ser considerada um dos programas de pesquisa mais progressivos dos últimos dois séculos. Seus resultados são amplos e não se restringem à matemática, com desdobramentos significativos nas ciências empíricas e até mesmo na filosofia.
Da mecânica estatística de Boltzmann aos enormes avanços da mecânica quântica, das inovações estatísticas introduzidas por Galton, Fisher e Haldane no estudo das populações humanas e não-humanas aos sofisticados métodos econométricos atuais, sem ignorar, claro, a genética e a genômica, a bioinformática e a epidemiologia, a ciência de dados e a climatologia, dentre inúmeras outras disciplinas.
Não obstante díspares, todas elas – e inúmeras outras não citadas – se assemelham em pelo menos um aspecto. Desde fins do século XIX, elas têm passado por uma espécie de “revolução probabilística”, ainda em voga e longe de se esgotar.
Na filosofia, tivemos as inúmeras propostas de solução do problema da indução pelo conceito de probabilidade, a teoria da decisão, a epistemologia bayesiana, debates a respeito de determinismo e acaso. Na epistemologia, aliás, o probabilismo – posição segundo a qual o conhecimento é apenas provável, dado em graus e jamais certo – tem sido uma abordagem cada vez mais discutida. Hoje, nem as ciências e nem a filosofia podem prescindir da teoria da probabilidade.
A loteria na filosofia: probabilidade, risco e incerteza se insere nesse contexto e surge como uma notável contribuição para o campo, com especial atenção para as relações entre filosofia e teoria da probabilidade. Algo, inclusive, praticamente inédito no mercado editorial brasileiro. Nele, o autor Renato Kinouchi traz mais do que uma introdução aos diversos problemas filosóficos motivados pela noção de probabilidade.
Com efeito, os três conceitos que nomeiam o livro – probabilidade, incerteza e risco – se amalgamam numa concepção probabilística da realidade e da condição humana. Nós, seres finitos e falíveis que somos, estamos fadados a viver envoltos em incerteza num mundo regido pelo acaso. Qualquer certeza nos é vedada e nos resta apenas o lenitivo de adquirirmos conhecimento de forma gradual e metódica, colhendo evidências aqui e acolá, confirmando ou refutando hipóteses nunca definitivas. E sempre sob o risco de que nossas ações resultem em consequências imprevisíveis e muitas vezes indesejadas.
2.
Dividido em quatro partes referentes a quatro grandes eixos temáticos, o livro versa sobre questões que vão dos fundamentos da teoria da probabilidade a controvérsias atuais que perpassam disciplinas diversas como a lógica, a epistemologia, a filosofia da ciência e a sociologia.
Na primeira parte, Renato Kinouchi expõe os fundamentos filosóficos e matemáticos da teoria da probabilidade. Ao leitor não tão versado em matemática, não se aflija. Em sua maior parte, as discussões matemáticas não exigem mais do que o domínio das operações aritméticas básicas.
Apenas em alguns momentos se mostra necessário conhecimento de tópicos um pouco mais avançados como funções, continuidade e descontinuidade, além de um nível elementar de compreensão de limites. Mas nada muito carregado de formalismos; aqui, a matemática da probabilidade nos é apresentada em vista dos problemas filosóficos que nela há, como uma introdução para o que depois virá.
O primeiro capítulo nos mostra um intrigante problema historiográfico: por que, afinal de contas, a teoria da probabilidade foi tão tardiamente desenvolvida, apenas entre os séculos XVII e XVIII? Nenhum povo antigo desenvolveu sequer um protótipo de teoria da probabilidade, nem mesmo os gregos, conhecidos por axiomatizarem a geometria e por inúmeras outras inovações em matemática. Por quê?
O segundo capítulo, por sua vez, nos leva diretamente à modernidade, quando a teoria da probabilidade de fato começou a ser desenvolvida. Aqui, Kinouchi discute o problema dos pontos. Dois jogadores apostam certo montante num jogo de melhor de cinco e quem vencer três rodadas primeiro, leva o prêmio total; porém, a certa altura, o jogo precisa ser interrompido. Como dividir o montante?
As soluções de Pascal e Fermat deram ensejo para o desenvolvimento da teoria da probabilidade, pois, agora, o montante deveria ser dividido em termos da pontuação faltante para cada jogador vencer. Tanto Pascal quanto Fermat passaram a olhar para a expectativa matemática de vitória para cada jogador; nisso, as bases da teoria da probabilidade foram lançadas.
No terceiro capítulo, nos é apresentada a falácia do jogador e o importante conceito da independência entre eventos. Caso joguemos uma moeda honesta dez vezes e nos dez lançamentos o resultado foi cara, a probabilidade de sair cara no décimo primeiro lançamento não é de maneira alguma influenciada pelos resultados passados, isto é, o próximo lançamento ainda continua a ter 50% de probabilidade de ser cara e 50% de ser coroa.
A falácia do jogador nos leva a imaginar que as dez caras aumentam a probabilidade de o próximo lançamento resultar em cara. Nela, desconsidera-se que cada um desses eventos é independente e nenhum influencia o outro.
Os capítulos 4, 5, 6 e 7 finalizam a primeira parte com uma exposição dos fundamentos matemáticos da teoria da probabilidade. Neles, Renato Kinouchi expõe conceitos importantes como a definição de probabilidade, os axiomas de Kolmogorov, condicionalização, a regra de Bayes, variáveis aleatórias, distribuições, o teorema do limite central, dentre outros. Além, claro, do curioso problema de Monty Hall.
Num programa de TV, um apresentador nos pede para escolhermos uma porta dentre três porque uma delas esconde um prêmio (por exemplo, um carro); escolhemos uma, e logo em seguida o apresentador abre uma das portas não escolhida por nós e mostra não haver prêmio algum nela, nisso, ele nos questiona se desejamos mudar nossa escolha. Devemos manter nossa escolha pela primeira porta ou escolher a outra porta ainda fechada? A regra de Bayes e a teoria da probabilidade nos diz que devemos escolher a outra porta, pois assim aumentamos as nossas chances.
3.
Renato Kinouchi dedica a segunda parte para tratar questões relacionadas à teoria da decisão, tal como decisões sob incerteza e decisões sob risco. O capítulo 8 trata dos fundamentos da teoria da decisão. Nesse capítulo, o autor apresenta a noção de utilidade esperada e como podemos maximizá-la, ponderando as probabilidades de certas consequências de ações possíveis por sua utilidade estipulada numa matriz de decisões.
No capítulo 9, o conceito de risco é apresentado, definido como valor esperado de um evento indesejado. Aqui, Kinouchi discute o paradoxo de Allais e sua importância para os trabalhos de Daniel Kahneman e Amos Tversky, cujas descobertas mostraram que nossas decisões são pautadas mais pela aversão ao risco do que pela maximização da utilidade.
Nos capítulos 10 e 11, somos apresentados a dois dos problemas filosóficos mais interessantes relacionados à decisão. O capítulo 10 traz o célebre argumento a favor da existência de Deus conhecido como aposta de Pascal. Deveríamos crer ou descrer na existência de um Deus que não se manifesta diretamente e da qual não temos evidência de sua existência?
Pela aposta de Pascal, devo apostar que Deus existe e crer Nele, pois assim terei direito à recompensa infinita da vida eterna. Não se trata, na verdade, de um argumento que prove de fato a existência de Deus; ele apenas tenta indicar que crer em Deus seria a decisão mais racional pois ela maximizaria a utilidade esperada.
O capítulo 11 foca no dilema do bonde e o problema da imposição de riscos. Um bonde desgovernado está próximo de atropelar cinco pessoas, porém, é possível puxar uma alavanca para muda-lo de trilho, no qual o bonde atropelará apenas uma pessoa. Devo puxa a alavanca? Trata-se de um dilema cujas respostas possíveis mostram compromissos com diferentes perspectivas éticas. Kinouchi traz, ainda, uma analogia do dilema com carros autônomos e mostra a insuficiência de trata-lo sem que sejam consideradas as probabilidades de imposição de riscos.
A terceira parte é toda ela dedicada às interpretações filosóficas do conceito de probabilidade. Ao longo de seus cinco capítulos, Kinouchi coloca sob escrutínio cinco perspectivas distintas. Nessa parte, o conceito de probabilidade nos é apresentado mediante suas implicações lógicas, epistemológicas, científicas e mesmo metafísicas.
Os dois primeiros capítulos trazem os primeiros embates em torno do problema. O capítulo 12 traz a interpretação clássica, inaugurada por Laplace. Atribuímos um nível de probabilidade a algum evento porque não podemos conhecer todos os estados do universo que determinam o evento.
Caso pudéssemos conhecê-los, poderíamos de antemão prever todas as condições nas quais um evento ocorreria e não precisaríamos recorrer à noção de probabilidade. Laplace ilustrou essa nossa limitação contrapondo-a à figura de um demônio omnisciente dotado de uma inteligência suprema, o demônio de Laplace. Aqui, notamos o quão determinista a interpretação clássica ainda era.
Por sua vez, o capítulo 13 é dedicado à interpretação frequencista e sua guinada empirista. Segundo essa interpretação, a probabilidade seria o valor limite de uma série de eventos aleatórios. Para os frequencistas, nada poderíamos falar a respeito da probabilidade dalgum evento sem observá-lo repetidas vezes. Nesse capítulo, Renato Kinouchi discute ainda como o nascimento da estatística moderna esteve intimamente conectado à interpretação frequencista.
No capítulo 14, Renato Kinouchi expõe a interpretação da probabilidade como propensão e trata de fazer uma justiça histórica. Comumente, Popper é rotulado como o primeiro defensor dessa posição “propensionista”; Renato Kinouchi, entretanto, apresenta-nos Charles Sanders Peirce como o primeiro a defender de fato tal interpretação, ainda no século XIX.
Nessa visão, a probabilidade teria um caráter disposicional, pois ocorrências de certo fenômeno teriam uma disposição a se comportarem de certa maneira, sem que fossem estritamente determinados a exibirem esse comportamento.
É difícil fazer jus a toda a complexidade desse capítulo; Renato Kinouchi discute detalhadamente diversas questões da filosofia de Peirce, como sua concepção de probabilidade, sua metafísica da primeiridade, segundidade e terceiridade, e até o pioneirismo não reconhecido de Peirce em antecipar os desenvolvimentos da estatística moderna. Ao final, somos apresentados à leitura que Frank P. Ramsey fez de Peirce como um precursor também da interpretação subjetiva.
Os dois capítulos posteriores discutem as duas interpretações restantes. No capítulo 15, temos a exposição da interpretação lógica. Nele, são examinadas as propostas de Keynes (sim, o famoso economista também se aventurou na filosofia da probabilidade) e Carnap, que propôs um sistema de lógica indutiva baseada numa lógica da confirmação. Também somos apresentados aos conceitos de quase-verdade e probabilidade pragmática que foram propostos pelo matemático e filósofo brasileiro Newton da Costa.
Por fim, a interpretação subjetiva é discutida no capítulo 16, segundo a qual a probabilidade seria nada mais do que um grau de crença subjetivo. Aqui, Kinouchi retoma e expande a interpretação de Ramsey, contextualizando-a em sua relação com a influência de Peirce. Além disso, o capítulo traz importantes noções como o argumento do “bolão” holandês e o problema das probabilidades a priori, bem como desenvolvimentos contemporâneos da interpretação subjetiva na epistemologia bayesiana e nas ciências cognitivas.
4.
A quarta e última parte trata de controvérsias teóricas e práticas envolvendo a teoria da probabilidade. Os três capítulos que a compõem constituem algo como um corolário de todos os capítulos anteriores; no entanto, vão além. Não discorrem simplesmente a respeito de algumas implicações decorrentes da teoria da probabilidade, algo que, aliás, já fora feito antes ao longo das três primeiras partes do livro.
A essa altura, Renato Kinouchi aborda questões que emergem de uma concepção filosófica da realidade cujos fundamentos não podem ser considerados senão probabilísticos.
No capítulo 17, Renato Kinouchi discute o problema da indução. Alguns tópicos a respeito dele já tinham sido discutidos de passagem, especialmente nos capítulos sobre as interpretações frequencista e lógica da probabilidade. Agora, contudo, Kinouchi aprofunda o problema e se ocupa das diversas questões que, historicamente, têm afligido os filósofos, de Hume à contemporaneidade. Aqui, somos apresentados às enormes dificuldades em solucionar o problema da indução, ao paradoxo da confirmação e ao falseacionismo proposto por Popper para supera-lo.
Por fim, Renato Kinouchi considera as evasões probabilísticas do problema, como as teorias da confirmação bayesianas. Para elas, o problema da indução não comporta uma solução direta, porém, podemos evadi-lo mediante um modelo razoável de mudança de crenças empiricamente informado (nesse caso, um modelo baseado na regra de bayes).
O capítulo 18 traz um dos problemas mais instigantes que têm sido debatidos na filosofia da ciência contemporânea, a saber, o risco indutivo. Por mais poderosos que sejam, testes de hipóteses científicas somente podem confirma-las parcialmente. Novas evidências podem levar à rejeição de hipóteses antes aceitas ou mesmo à aceitação de hipóteses antes rejeitadas (falsos positivos e falsos negativos, respectivamente).
Nesse sentido, há sempre um risco indutivo de erro na pesquisa científica. E como o erro pode ter consequências não-epistêmicas consideráveis, o risco indutivo deve ser ponderado por valores não-epistêmicos. Renato Kinouchi propõe ainda um modelo de seguro indutivo como instrumento de gestão do risco indutivo, cujo prêmio é proporcional ao dano potencial. Assim, um contrato de seguro indutivo acaba por ter uma natureza precautória contra pesquisas mal conduzidas.
Finalmente, o capítulo 19 expõe o problema dos riscos e incertezas civilizacionais, tão discutidos nos dias de hoje. A finalização do livro não poderia ser doutra forma, afinal, uma concepção filosófica probabilística deve culminar justamente na consideração dos riscos e incertezas que recaem sobre nós enquanto sociedade e grassam por um mundo interconectado. Especialmente se considerarmos que vivemos numa era que urge pelo enfretamento das mudanças climáticas globais.
Dessa forma, Renato Kinouchi traz para o debate sociólogos como Ulrich Beck e Anthony Giddens, que trabalharam sobre o conceito de sociedade de risco global, e Hermínio Martins, responsável por salientar a incapacidade da noção comum de risco para tratar corretamente as enormes incertezas que vicejam de nossa sociedade tecnológica.
O livro ainda traz um epílogo que condensa a visão construída nas páginas precedentes, nos mostrando a importância de pensar o acaso e a incerteza em nossas vidas cotidianas (o caso das bets é um exemplar perfeito de um bolão holandês que impõe aos jogadores um contrato de perda inevitável).
*Gregory Augusto Carvalho Costa é doutorando em filosofia na Universidade Federal do ABC.
Referência

Renato Kinouchi. A loteria na filosofia: probabilidade, risco e incerteza. São Paulo, Scientiae Studia, 2025, 280 págs. [https://abrir.link/faEZb]
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