Encarando os estragos

Imagem: Kaique Rocha
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Impossível menosprezar a possibilidade de reeleição do atual presidente. A maioria dos brasileiros não tem noção do que isso representa para suas vidas

Lula teve mais votos do que seu adversário. Governadores progressistas foram eleitos no primeiro turno; outros, podem ganhar no segundo. O PT aumentou sua bancada na Câmara… Polianas apaziguam almas inquietas, detestam encarar estragos.

O fato é que um Hamilton Mourão sem carisma toma a vaga de um ícone da resistência democrática. O impiedoso Eduardo Pazzuello é campeão de votos no Rio. Um ex-juiz destroçador de empregos, de capacidades técnicas e de instituições ganha cadeira no Senado. Um destruidor de florestas e um astronauta que menospreza a ciência são consagrados no poderoso e civilizado estado de São Paulo. Um desconhecido supera Fernando Haddad se apresentando como cumpridor de “missão do capitão”.

Impossível menosprezar a possibilidade de reeleição do atual presidente. A maioria dos brasileiros não tem noção do que isso representa para suas vidas. Muito menos alcança a significação mundial desta eleição.

O que as sondagens de intenção de voto não captam é a capacidade de articulação e mobilização de uma vasta, intrincada e azeitada (endinheirada) rede de atores políticos decididamente mobilizados e sob coordenação eficiente.

Com inexcedível capilaridade, espalhada em cada pedaço de chão, capaz de responder em tempo real aos estímulos de um emissor não claramente identificado, essa rede conduz as emoções coletivas. Sabe, inclusive, manipular jornalistas, acadêmicos e líderes políticos tarimbados.

Os calculadores de intenção de voto detêm o mapa das ruas do Brasil dominadas por milicianos? Teriam noção de como funciona o controle territorial estendido de norte ao sul? Dimensionariam efetivamente o poder das milhares de “igrejas” sobre milhões de desesperançados? Fariam uma ideia das profusas e densas correias de transmissão da desconhecida “família militar”?

As análises do que ocorreu giram em torno de “migrações” de votos (quem teria sido beneficiado pelo “voto útil”), pendores do baronato financeiro, reacionarismo de homens endinheirados, reações de integrantes de tribunais superiores… Levam em conta o Brasil de verdade? Conhecem esse Brasil?

As análises tendem a pressupor que o nordestino vota em Lula porque passa fome e é manipulável por crendices. Não levantam a hipótese de que seja mais infenso ou resiliente ao choque cognitivo ou ao pânico moral bem programado por terroristas da internet. Repelem a ideia de que o Brasil se nordestinize politicamente.

As análises tendem a pressupor um Brasil em que os golpes se davam com o emprego de tanques, não com o manuseio de ansiedades e temores coletivos. Não captam que os comandantes militares, além de conduzir fileiras, foram treinados para conduzir operações “psicossociais”.

A esquerda institucional parou, faz tempo, de chamar os mais sofridos à luta. Acostumou-se a convocá-los às urnas para consagrar representação política prometedora de benesses. Ora, as urnas foram arrumadas para manter a ordem iníqua. O presidente atinge o coração de muitos quando, encarnando o sistema em sua essência cruel, conclama contra o sistema.

Contra esse farsante, Lula deve chamar o povo para mudar o Brasil, não para retornar ao tempo em que comia picanha, viajava de avião e tinha chance de alcançar o ensino superior.

A política encerra a promessa de um bem, dizia Aristóteles. O bem que os brasileiros esperam não é o retorno quimérico ao passado, mas a ruptura com o legado colonial.

Lula deve apostar na inteligência do povo e descrever tim-tim por tim-tim o que pensa em fazer para mudar o Brasil. Ainda dá tempo.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • Silvio de Almeida e Anielle Francoescada espiral 06/09/2024 Por MICHEL MONTEZUMA: Na política não há dilema, há custo
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • A chegada do identitarismo ao Brasilcores vivas 07/09/2024 Por BRUNA FRASCOLLA: Quando a onda identitária varreu o Brasil na década passada, os seus oponentes tinham, por assim dizer, uma massa crítica já formada na década anterior
  • Breve introdução à semióticalinguagem 4 27/08/2024 Por SERAPHIM PIETROFORTE: Conceitos derivados da semiótica, tais quais “narrativa”, “discurso” ou “interpretação”, tornaram-se fluentes em nossos vocabulários
  • O judeu pós-judeuVladimir Safatle 06/09/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Considerações sobre o livro recém-lançado de Bentzi Laor e Peter Pál Pelbart

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES