Estilhaços

Imagem: Suzy Hazelwood
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Por RITA COITINHO*

Comentário sobre o livro de Paulo Nogueira Batista Jr.

1.

Estilhaços não é um livro de economia, como alguém que conhece o autor poderia imaginar ao vê-lo exposto em uma vitrine de livraria. Conhecido e reconhecido como economista, com grande capacidade de intervenção no cenário político atual, figura pública, Paulo Nogueira Batista Jr. é, de fato, um economista. É esse o título, aliás, do elogio que lhe escreveu certa vez Ariano Suassuna: “um economista”.

Mas acontece que Paulo Nogueira Batista Jr.não é um economista que fala economês. Quer dizer, ele conhece o idioma, navega dentro dele e tem tido sucesso em sua trajetória entre seus pares, embora sua recusa ao dogmatismo neoliberal tenha lhe rendido também um bom punhado de desafetos no campo. Porém recusa-se a escrever em economês. Talvez seja justamente por isso que consegue transitar nas rodas mais diversas, opinar em espaços mais amplos, ser figura pública conhecida e querida de muitos, em variados matizes teóricos e políticos.

Meu argumento nesta breve apresentação é que Estilhaços, embora seja bastante diferente das outras obras de Paulo Nogueira Batista Jr., não é apenas um ponto fora da curva. Está mais para um ponto de chegada de um escritor que, a bem da verdade, nunca deixou de flertar com a literatura e de buscar imprimir, em seus textos – em especial em suas colunas destinadas ao grande público – um estilo próprio.

Os livros que Paulo publicou antes são, de fato, livros de economia ou pelo menos sobre ela: Mito e realidade na dívida externa brasileira (1983, Paz e Terra); Da crise internacional à moratória brasileira (1988, Paz e Terra); A economia como ela é… (2000, Boitempo Editorial); O Brasil e a economia internacional: recuperação e defesa da autonomia nacional (2005, Elsevier) e O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata (2019, Casa da Palavra/LeYa)

Esse último eu tive o prazer de comentar num dos lançamentos, na mesma livraria em que apresentei, recentemente, Estilhaços. Já não era mais um livro de economia, como os outros, embora escrito por um economista. Era já um livro de memórias, escrito em primeira pessoa e que refletia sobre temas que vão das finanças às Organizações Internacionais. Por meio dele temos uma ideia dos bastidores do FMI, no Novo Banco do Desenvolvimento (apelidado de Banco dos Brics) e de histórias peculiares dos bastidores da política nacional e internacional, além de textos sobre a própria vida de Paulo Nogueira Batista Jr.

2.

E esse Estilhaços? É o próprio autor que explica o título na apresentação do livro. Ele queria que a obra se chamasse “estilhaços do coração”, mas foi desencorajado por alguns amigos, que acharam um pouco piegas. Ficou apenas Estilhaços e sim, esse título define bem o tipo de obra que temos em mãos, porque não se trata de um texto contínuo, como um romance, dividido em capítulos, mas com um fio condutor amarrado em um enredo.

Nem de um livro de ensaios, pois não temos aqui um conjunto de ensaios; tampouco de uma coletânea de contos ou de crônicas: temos uma obra mista, embora bem dividida no trabalho editorial, que agrupou os textos pela sua semelhança estilística ou temática.

Sobre essa forma livre, permito-me aqui citar, a propósito, o comentário de Michel Butor sobre a Comédia Humana de Balzac: “Trata-se do que se poderia chamar um móbile romanesco, um conjunto formado de um certo número de partes que pode ser abordado quase que na ordem por nós desejada; cada leitor traçará (…) um trajeto diferente; é como uma esfera ou recinto circular com muitas portas” (apud CAMPOS, 1976, p 28). O livro de Paulo Nogueira Batista Jr. não é um “móbile romanesco” porque a forma escolhida não é o romance. Mas a ideia, presente nessa passagem, de que se pode começar por qualquer parte da obra, encaixa-se perfeitamente aos Estilhaços.

Uma primeira parte traz textos bem curtos, alguns de apenas duas linhas, ou no máximo um pequeno parágrafo, que poderiam ser chamados de aforismos. Aqui Paulo divide com o leitor pequenos insights que revelam seu amplo arsenal literário e filosófico. Os aforismos de Paulo Nogueira Batista Jr.são, sem sombra de dúvida, convites irresistíveis à discussão. Cada um renderia uma mesa cheia de especialistas. Temos por exemplo o lançamento de um debate historiográfico, onde Paulo não deixa espaço para o Clash of Civilizations de Samuel Huntington, mas sumariza o The Rise and Fall of the Great Powers de Paul Kennedy: “Qualquer civilização cabe nos abismos da história”.

Encontramos entre os aforismos menções a muitos dos grandes, e um particularmente tocante recorda a recém falecida Maria da Conceição Tavares, a quem Paulo homenageou em colunas publicadas em revistas e sites de notícias: Joan Robinson, Conceição Tavares. Fenômenos não fazem escola.

Recolho aqui também uma crítica certeira aos apologistas da “estabilidade”, que não poderia deixar de sair da pena de um mordaz crítico do dogma estabilizante dos neoliberais:

“Estabilidade Ilusória. A constância inventada por meio de palavras é uma necessidade apenas prática, sem validade teórica. Convenções, não realidades”.

E em meio a temas tão complexos, um aforismo arranca-nos um sorriso com o recurso à fina ironia, à moda de Nelson Rodrigues: “Uma singularidade o brasileiro: muito jogo de cintura, pouca espinha dorsal”.

3.

E por aí vai. Depois vem um conjunto de crônicas e lembranças, parte maior do livro, que inclui temas como o amor, as opiniões peculiares do Paulo sobre as mulheres (bastante antiquadas, mas discutam lá com ele), a infância, Nelson Rodrigues e, é claro, não poderia faltar: um pouco de Brasil.

Na parte final temos pequenos contos que, cá entre nós – e o autor de certo modo o confessa, na página 299 – não são completa ficção: há ali muito de autobiográfico e biográfico, recortes da própria vida e da existência de outros, que de alguma maneira acompanhou.

A propósito dos Estilhaços, recordo as observações feitas pelo poeta paulistano Cláudio Daniel em seu trabalho A estética do labirinto: barroco e modernidade em Ana Hatherly. Nesse texto ele explora a obra da escritora portuguesa Ana Hatherly e um dos trabalhos abordados, 463 Tisanas, tem alguns pontos de contato com o livro que estamos discutindo aqui. Tisanas, para quem não está acostumado ao termo, é uma infusão de ervas e frutas.

Ana Hatherly não quis chamar seus textos de contos, de aforismos, de poemas em prosa. Ela entendeu esses textos como infusões. Nas palavras de Cláudio, “As Tisanas são um conjunto de composições híbridas, entre a prosa e a poesia. Foram publicadas seis edições desse livro, entre 1969 e 2006, e a cada nova edição foram incluídos novos textos, que oscilam entre o aforismo, a parábola, a narrativa ficcional, o koan budista, o verbete de dicionário ou enciclopédia, o diário e a fábula, dispostos de maneira aparentemente caótica, descontínua, sem uma ordem sequencial linear. Este é um work in progress que desafia a própria classificação dos gêneros literários, bem como a distinção tradicional entre prosa e poesia, em favor da noção de texto criativo”.

Cláudio Daniel também resgatou, em seu comentário sobre a obra de Ana Hatherly, a ideia de “texto” do teórico Max Bense: “Faz-se algo na linguagem, deve-se fazer algo com a linguagem. Prosa e poesia são conceitos que caracterizam algo que pode ser feito na linguagem, quando ela já se apresenta pronta, suas formas são conhecidas e dadas, usáveis e consumíveis. Texto é algo que é feito com a linguagem, portanto, a partir da linguagem, algo porém que, ao mesmo tempo, a transforma, acresce, aperfeiçoa, interrompe ou reduz” (BENSE, 1971: 172).

E por que resgato essas ideias suscitadas pela obra sobre Ana Hatherly para apresentar o livro de Paulo Nogueira Batista Jr.? Porque o seu livro é, na forma, um tanto próximo da proposta das 463 Tisanas: os estilhaços são como infusões textuais.

4.

Os Estilhaços recusam a forma longa – que já foi, antes, recusada por J.L.Borges, Como lemos na página 46, “A vida não forma um todo, nunca é uma totalidade coerente, organizada. Não pode, assim, ser retratada senão aos pedaços. Fragmentos, sempre, Ou estilhaços, como estes, Tratados, romances, nunca. A forma longa está sempre a um milímetro do tédio – tédio contra o qual, dizia Nietzche, até os deuses lutam em vão”.

É também um livro autobiográfico, ao mesmo tempo que é universal. Discute-se com os grandes nomes da filosofia – nota-se que Nietzche está entre seus favoritos, o que sugere que vem daí a sua vontade de se expressar por meio dos aforismos –, nomes incontornáveis do pensamento universal, como Kant, Descartes, Marx (este, sempre em chave crítica) e também do nacional, de Nelson Rodrigues a Maria da Conceição Tavares, de Fernando Pessoa e Heine, e também Nelson Rodrigues e Tom Jobim. Sobrou até uma canelada em Engels – injusta, aliás, como não posso deixar de destacar.

Do lirismo à turba da bufunfa, ou como ele diz no texto Ideias? Vade retro!, “a figura sinistra do bufunfeiro”, ao Brasil que já aparecia no livro anterior,  O Brasil não cabe no quintal de ninguém. O país também aparece no texto Brasil, país-planeta (ou saudades do futuro), onde nosso autor parece um pouco menos otimista do que no livro anterior, pero sin perder la ternura jamás.

Para terminar este meu comentário, que já está ficando meio longo (e aqui ouvi a voz do Paulo Nogueira Batista Jr., que volta e meia se censura por alongar-se em demasia), retomo as ideias acerca de Ana Hatherly, pois o que ela diz do próprio texto parece-me que se aplica muito aos Estilhaços do Paulo: “Todas as tisanas relatam um acontecimento”, diz a autora, “são um acontecer ou um acontecido”. Pois é simultaneamente do passado e do porvir que tratam os estilhaços do coração aqui publicados.

*Rita Coitinho é doutora em geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Referência

Paulo Nogueira Batista Jr. Estilhaços. São Paulo, Editora Contracorrente, 2024, 320 págs. [https://amzn.to/482WA9u]

Bibliografia

BENSE, Max. Pequena Estética. São Paulo: Perspectiva, 2003.

BUTOR, Michel. Citado em CAMPOS, Haroldo de. A operação do texto. São Paulo, perspectiva, 1976, p 28.

HATHERLY, Ana. 463 Tisanas. Lisboa: Quimera, 2006

TEIXEIRA, Claudio Alexandre de Barros [Cláudio Daniel]. A estética do labirinto: barroco e modernidade em Ana Hatherly. 2009. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível neste link.

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