Por EMILIO CAFASSI*
A lei da eutanásia representa a culminação lógica de uma sociedade laica: se podemos legislar sobre como amar e viver, por que não sobre como morrer com dignidade?
Uma história de artesanato político, o trabalho paciente de sete anos de formigas militantes obsessivas em busca da expansão de direitos no Uruguai, marcada por bloqueios e atrasos, aproxima-se agora do seu ápice.
Décadas de agonia silenciada – de apelos que ricocheteavam nas paredes de mármore do parlamento e anos recentes de protelações e artimanhas sob o domínio da coalizão ultrarreacionária que governou o mandato anterior – devem ter se passado antes que a eutanásia só agora esteja se aproximando das portas do Senado. Lá, onde a coalizão Frente Amplio (FA) agora detém a maioria, a balança de poder finalmente se inclina para a dignidade.
Tempo humano versus tempo legislativo
No entanto, o tempo legislativo, pesado e solene, parece ignorar a fragilidade do tempo humano: efêmero, urgente, irremediável. Enquanto a doença devora os corpos e a lucidez nos deixa em meio a soluços quase inaudíveis, a política adia a concessão do que deveria ser um direito fundamental. O Uruguai, tantas vezes pioneiro em conquistas civis, permitiu-se o luxo de relegar o alívio derradeiro, como se a dignidade pudesse esperar sua vez na antessala da morte.
Em 2019, um pequeno grupo de figuras dos direitos civis e sociais – Isabel Villar, fundadora e diretora por três décadas do suplemento feminista La República de las Mujeres, Margarita Percovich, Clara Fassner, Ítalo Bove, Alicia Fajardo e outros membros da coalizão Frente Amplio – começou a elaborar os primeiros rascunhos de um projeto de lei para uma morte digna.
Um ano depois, o então deputado Ope Pasquet surpreendeu a todos ao apresentar seu próprio projeto, apesar de ser filiado a um Partido Colorado que hoje não passa de uma caricatura grotesca daquele que defendia proteções e liberdades nos tempos de Dom Pepe Batlle. Ainda mais agora que o último progressista, o agora deputado Fernando Amado, se filiou à Frente Amplio. Nesse espaço político, só restam defensores da impunidade.
Como tantas vezes acontece, os projetos da Frente Amplio são inicialmente concebidos na sociedade civil até que a Frente Amplio finalmente decida adotá-los. Assim, em 2021, surgiu um projeto de lei mais abrangente, que superou o caráter meramente penalista do texto de Ope Pasquet – limitado à descriminalização da responsabilidade médica – e colocou o direito soberano sobre o próprio corpo no centro.
A lei agora em análise no Senado é, em última análise, a convergência de projetos divergentes, mas também a confluência de memórias de sofrimento e anseios de liberdade, destilados em um texto que aprimora substancialmente a estrutura inicial de Ode Pasquet.
Direito, autonomia e dignidade
Este projeto de lei não abre simplesmente uma porta legal. Ele consagra, na linguagem solene da lei, o direito de toda pessoa de se despedir da vida de cabeça erguida e não sob o chicote da dor. O Artigo 2º Proclama inequivocamente: todo adulto, mentalmente apto, em fase terminal de doença incurável ou sofrendo sofrimento insuportável, tem o direito de solicitar a eutanásia para morrer em paz e com dignidade.
Não se trata de uma permissão concedida de cima, mas da afirmação de um direito fundamental no limiar da existência. Em última análise, é a cristalização de uma autonomia há muito negada: uma vitória do indivíduo sobre o tempo legislativo, que sempre chegava tarde, um ato de justiça contra o atraso insuportavelmente implacável do poder.
O caráter progressista da lei é reforçado em cada detalhe: a possibilidade de revogação da decisão a qualquer momento, sem qualquer formalidade ou procedimento; a obrigação de todos os profissionais de saúde – mesmo militares ou policiais – de garantir a prática; a objeção de consciência limitada a indivíduos, nunca a instituições; a isenção de responsabilidade para quem assiste; e a criação de uma Comissão Honorária de Revisão composta pelo Ministério Público (MSP), a Universidade da República, a Ordem dos Médicos, o Instituto Nacional de Direitos Humanos e a Ouvidoria.
Até mesmo o simbolismo é cuidadosamente considerado: a morte por eutanásia “será considerada natural”, embora “a causa básica da morte seja indicada, e também se declare que a eutanásia foi a causa final” (Artigo 10), restaurando o esplendor de uma escolha legítima ao ato de morrer. Trata-se, em suma, de um texto que não apenas descriminaliza, mas também afirma direitos, reordena hierarquias entre pacientes e sistema e esculpe no mármore institucional a convicção de que a dignidade só se encerra com a própria vida.
Os defensores da eutanásia partem de um axioma tão básico quanto subversivo: ninguém é dono do corpo alheio, nem o Estado, nem a Igreja, nem a família. O direito à vida não se confunde com a obrigação de subsistir na indignidade. Mesmo sob cuidados paliativos, a dor pode persistir, e a medicina – convertida em indústria da esperança e do prolongamento artificial – busca frequentemente curar o incurável: a própria morte.
Assim, a eutanásia é reivindicada como um direito humano e um imperativo ético, como a última conquista da autonomia em sociedades que já aprenderam a legislar sobre o amor, a reprodução e a identidade, e que agora ousam legislar sobre a despedida.
Do outro lado, ergue-se um coro monótono de objeções, envolto em um paternalismo que se aferra ao seu cetro. O Código Penal é invocado como se letra morta pudesse decretar a eternidade do sofrimento; fala-se de ternura e apoio espiritual como se fossem equivalentes à liberdade; e o paciente é até infantilizado, desconfiando de sua capacidade de decidir por si mesmo.
A aparência suave dos cuidados paliativos muitas vezes esconde o desejo de prolongar o tormento, como se a dignidade fosse um luxo dispensável. Aqueles que negam a eutanásia temem que a medicina seja “contaminada” pela morte, quando, na verdade, o que ela faria é se reconciliar com suas limitações. Preferem uma obstinação terapêutica que transforma os corpos em prisões, em vez de admitir que a soberania do indivíduo se estende até o último suspiro.
É quase comovente – senão trágico – ouvir certos guardiões da moralidade insistirem que “não existem mortes indignas”, como se estertores prolongados, corpos consumidos pela morfina e mentes presas na escuridão não fossem a própria personificação da indignidade. Em sua retórica, a liberdade é degradada em “libertinagem” (um termo que não ouvia desde o discurso daquele moralismo vitoriano do início do século XX), e a compaixão se torna cumplicidade com a dor.
Falam em oferecer afeto enquanto decretam o prolongamento da agonia; pregam a sacralidade da vida enquanto negam a essa mesma vida o direito de escolher seu desfecho. Nessa disparidade quase grotesca, toda a sociedade é retratada: um pé em uma modernidade que legisla direitos sem precedentes e o outro ainda mergulhado na superstição arcaica de que a morte pertence aos deuses e não à humanidade.
Como alerta o filósofo Michel Onfray em sua crítica ao monoteísmo, essas religiões elevaram o sofrimento ao status de virtude, como se a dor fosse uma transição necessária para a redenção. Essa moralidade da tortura, que transforma a agonia em mérito, explica grande parte da resistência conservadora à eutanásia. Em contraste, uma ética materialista e libertária –aquela que o Uruguai se prepara para consagrar em lei – entende que aliviar o sofrimento não é apenas um pecado, mas um gesto de justiça. Onde a religião glorifica a ferida, a razão secular deve oferecer um bálsamo.
O atraso da Comissão de Saúde do Senado na sessão anterior não foi mera paralisação burocrática: foi uma afronta aberta à dignidade. Por mais de um ano, a maioria parlamentar ultraconservadora ignorou tanto a vontade expressa nas pesquisas – mais de 80% da população e a maioria da classe médica – quanto os clamores daqueles que vivenciavam sofrimento intolerável.
Essa resistência não foi neutralidade, mas cumplicidade; não foi atraso, mas um prolongamento calculado da dor alheia por motivos políticos ou dogmas espirituais. Foi, em suma, um desrespeito aos direitos fundamentais disfarçado de prudência.
Este projeto insere-se na mais ampla e nobre tradição dos direitos humanos. A Declaração Universal proclama a dignidade intrínseca de todas as pessoas; o Pacto de San José consagra a integridade física e moral; a própria Constituição uruguaia reconhece as liberdades inerentes à personalidade humana. A esse arcabouço de direitos soma-se agora o direito de decidir sobre o próprio fim, não como uma dádiva do Estado, mas como a confirmação de que a liberdade deve acompanhar a vida até o seu último suspiro.
O Uruguai, tantas vezes um farol de conquistas civis, aparece aqui dividido entre suas melhores tradições e sua inércia mais rançosa. O debate sobre a eutanásia o coloca novamente diante de seu espelho: um país capaz de abolir a escravidão precocemente, secularizar escolas e cemitérios, legalizar o divórcio e o aborto, ou legalizar a cannabis durante o governo da Frente Amplio de Pepe Mujica, mas também capaz de se atolar durante anos em comitês que se recusam a legislar o óbvio.
Enquanto Holanda, Bélgica, Espanha, Canadá e Nova Zelândia – para citar apenas alguns exemplos, com suas diferenças e particularidades – já reconheceram a eutanásia como um direito, o Uruguai só agora ousa trilhar esse caminho. Não é tarde para a história, mas também não é pontual: chega em seu próprio ritmo, entre avanços pioneiros e atrasos tão dolorosos quanto a agonia. A lei da eutanásia finalmente recupera esse caminho humanitário: reconhecer que não há morte digna sem a liberdade de escolher como e quando dizer adeus, porque dignidade, sem liberdade até o último momento, torna-se uma palavra vazia.
Alguns detratores acenam com a velha máxima de que a eutanásia poderia se tornar uma punição para os pobres, os idosos ou as pessoas com deficiência. A falácia é evidente: o projeto de lei nunca inclui a velhice, a vulnerabilidade social ou a deficiência como critérios de elegibilidade. Apenas o estágio terminal de uma doença incurável, com sofrimento insuportável, qualifica a solicitação.
Qualquer outra coisa é semear o medo onde as garantias deveriam ser aplicadas. A pobreza mata na negligência do Estado, não nos hospitais; a marginalização ceifa vidas em bairros esquecidos, não nas enfermarias onde se busca alívio. Transformar o direito de decidir em uma ameaça aos fracos é um recurso retórico tão cruel quanto hipócrita, usando os vulneráveis como escudo para negar-lhes o próprio direito que alega defender.
A lei da eutanásia não surgiu do nada, mas segue um caminho já trilhado no Uruguai. Desde 2008, durante o primeiro governo da Frente Amplio, a Lei de Direitos e Obrigações dos Pacientes e Usuários reconhece a autonomia para aceitar ou recusar tratamento, inclusive revogar o consentimento; estabelece o direito aos cuidados paliativos; e garante a não prolongação artificial da vida quando não há perspectiva de melhora. A eutanásia surge, portanto, não como uma ruptura, mas como o próximo passo na mesma lógica de respeito à vontade dos chamados pacientes: a ampliação do horizonte de liberdade no limiar da morte.
Algo semelhante acontece com a Lei das Diretivas Antecipadas de Vontade, aprovada em 2009, que autoriza qualquer pessoa a declarar sua rejeição a tratamentos médicos que prolonguem sua vida em condições terminais. Se o sistema jurídico já prevê o direito de dizer “não” à obstinação terapêutica, por que agora negar o direito de dizer “basta”, acompanhado por um médico? A eutanásia nada mais é do que a coerência levada às últimas consequências: dar continuidade à palavra prometida em vida, quando a voz do paciente se esvai em meio aos suspiros de agonia.
Os opositores da eutanásia recorrem a um repertório discursivo que se enquadra precisamente no que Michel Foucault chamou de biopolítica: o poder que se arroga a gestão da vida e dos corpos, em nome de uma suposta normalidade coletiva.
Sob a capa da moral médica ou religiosa, buscam gerir a duração da existência como se a vida fosse um simples recurso produtivo, reduzindo o doente terminal a uma engrenagem de uma máquina social que decide quanto ainda vale a sua respiração. A fórmula foucaultiana de “deixar viver e deixar morrer” ressoa claramente aqui: enquanto o Estado protege e prolonga a vida dos corpos considerados úteis, deixa morrer – ou melhor, força a prolongar a agonia – daqueles que não se conformam aos parâmetros de saúde ou produtividade.
Ao negar o direito à eutanásia, perpetua-se o controle sobre a vida biológica, impondo o sofrimento em nome de uma sacralidade abstrata. Não se trata de salvar, mas de disciplinar; não de acompanhar, mas de reter o poder de decidir quem pode dispor do seu corpo e quem não pode.
Diante dessa pretensão de gestão da existência, a eutanásia surge como um gesto de insurreição biopolítica radical: a reapropriação da única coisa que verdadeiramente pertence ao indivíduo, seu próprio corpo. Decidir o momento do próprio fim é romper o cerco do biopoder, arrancando um bastião de soberania íntima do território mais monitorado pelo Estado: a própria vida. É por isso que ela tanto perturba os guardiões da moral e da política hipócritas do fim do século: porque desafia o monopólio de decidir não apenas como se vive, mas também como se morre.
Michel Onfray nos lembra, com razão, que o corpo é o primeiro território de emancipação. Não há liberdade sem soberania sobre a própria carne, e essa soberania também inclui o direito de decidir o momento do próprio fim. Negar a eutanásia equivale a perpetuar a persistente colonização religiosa da vida biológica, impondo uma tutela que infantiliza os cidadãos e os priva de sua autonomia máxima.
Um Estado laico não pode legislar a partir de superstições: deve garantir que todos possam se despedir da vida sem cadeias ou tutelas que os despojem de seu verdadeiro eu.
O debate cultural e seus atores
No calor do debate, emergiram dois grupos que cristalizaram a disputa para além dos muros do parlamento. “Empatia Uruguai” personificou o movimento progressista e pluralista, composto por cidadãos comuns, ativistas feministas e membros de diferentes partidos. Seu nome, longe de ser coincidência, evoca a virtude que a política frequentemente esquece: colocar-se no lugar do outro.
Onde a retórica conservadora busca controlar os corpos e prolongar a agonia, a Empatia propõe acompanhar a liberdade até o fim. Não se trata de uma Frente Amplio disfarçada, mas de um mosaico social que entende que a eutanásia, mais do que uma concessão legal, é o ápice de uma jornada histórica de expansão de direitos (https://www.empatia.uy/).
Do outro lado da história, surgiu Prudencia Uruguai, autoproclamada defensora dos mais vulneráveis, mas cujo estilo lembra o antigo manual da extrema direita: manipuladora, humilhante, crivada de fundamentos de fachada e um arsenal retórico destinado a semear o medo. Citam confusão, discriminação, falta de cuidados paliativos e ausência de avaliações psicológicas, mas essa aparente preocupação revela o cerne da biopolítica foucaultiana: o desejo de gerir a vida e a morte de cima para baixo, desconfiando da capacidade do sujeito de decidir sobre seu próprio corpo.
Seu selo mais sinistro é a assinatura de Guido Manini Ríos, ex-general e senador que ocultou torturadores e genocidas, o que transforma Prudencia em uma fachada ideológica consistente com a tradição da impunidade. “Prudência” é, na realidade, a máscara de um paternalismo autoritário que infantiliza os pacientes que sofrem e prolonga a agonia como se fosse uma forma de proteção (https://www.prudenciauy.org.uy/).
Ambos os grupos, nascidos do mesmo debate, são mais do que lobbies circunstanciais: são espelhos de dois projetos nacionais. A empatia encarna a tradição uruguaia das liberdades civis, que outrora soube secularizar escolas e cemitérios; a prudência representa a nostalgia da tutela, a sombra de um Estado que busca continuar a se firmar como guardião das consciências.
O Senado legislará, mas o campo de batalha cultural se estende à sociedade: entre aqueles que querem fazer da dignidade um direito universal e aqueles que insistem em administrá-la como se fosse um privilégio.
Um Parlamento que se orgulha de ser moderno, laico e republicano não pode se rebaixar a discutir dogmas religiosos. Pessoalmente, respeito a fé e a consciência de cada crente, na privacidade de sua própria jurisdição, mas nunca como uma questão de política de Estado. Aqueles que se opõem ao aborto devem assumir todas as gestações que sua vida sexual acarreta; aqueles que rejeitam a eutanásia devem prolongar sua agonia enquanto seus corpos puderem suportar. Mas a lei não deve se curvar ao infantilismo ou à superstição. A dignidade do cidadão exige instituições seculares, não púlpitos disfarçados de parlamentarismo.
Nesta hora decisiva, é oportuno prestar homenagem àqueles que, com obstinada perseverança e combativa ternura, abriram caminho: os membros do Movimento Uruguaio pela Morte Assistida com Dignidade (MADU), Ítalo Bove , Alicia Fajardo, Clara Fassler e Isabel Villar. Eles souberam transformar as tempestades da dor em trincheira e a perda em horizonte de dignidade, os verdadeiros artífices deste direito. Saudá-los é saudar a memória dos que partiram e a esperança dos que ainda esperam.
Que sua luta seja inscrita como um hino à liberdade suprema: a liberdade de escolher o momento final, de cabeça erguida, sem as correntes ou tutelas que buscam impor aqueles mesmos que, com o mesmo dogma, continuam se opondo ao aborto, talvez aqueles que também glorificam a prescrição que deixa impunes torturadores e genocidas.
Diante daqueles que prolongam a agonia em nome da fé, do medo ou de ambos, esta lei restaura a dignidade de um povo que soube abolir a escravidão e secularizar as consciências. Projetos militantes e perseverança como este devem despertar os cidadãos para uma direita neofascista que germinou há muito tempo neste pequeno país e que chegou a governar os últimos cinco anos, bloqueando conquistas sociais ou, pior ainda, revertendo-as.
É por isso que este triunfo deve ressoar como um aviso e uma promessa: “Nunca Mais” correntes nos corpos. “Nunca Mais” dogmas sobre a vida.
*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.
Tradução: Artur Scavone.
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