Por VINÍCIUS DE OLIVEIRA PRUSCH*
Comentário sobre o filme de Wim Wenders
1.
Há aproximadamente dois anos, venho ensaiando uma interpretação de Paris, Texas, filme de Wim Wenders que retornou recentemente às telas de cinema brasileiras. Por conta da ocasião, retomei o projeto de análise e, enfim, consegui finalizá-lo. Confesso que não sei de onde exatamente vem a dificuldade da empreitada, mas desconfio que seja por gostar demais do filme. Encanta-me de verdade a obra, a cada assistida. Vamos, assim, aos poucos, começando pelas beiradas, elencando alguns dados que julgo serem de relevância para a análise.
Primeiro dado, bastante óbvio. O filme trata, centralmente, de um tipo de trauma. Pergunto-me se esse trauma pode ter uma origem social, ou seja, se ele não parte de um trauma histórico real.
Segundo dado, ainda óbvio. Temos uma confusão de lugares no centro do primeiro ato do filme e que lhe empresta seu título. Paris, Texas é uma cidade realmente existente nos Estados Unidos, mas a escolha por ele no filme está, é claro, no desentendimento que seu nome causa.
Terceiro dado, menos óbvio. A frequência de símbolos americanos no filme: a águia, a própria bandeira, a estátua da liberdade, a música de Ry Cooder, cuja slide guitar lembra os filmes de faroeste. Forçando um tanto a nota, mas não muito, pode-se dizer que a paleta de cores do filme em geral está muito próxima daquela da bandeira estadunidense. Abundam o vermelho e o azul, com alguma adição de verde aqui e ali.
Quarto dado. O fato de as relações no filme se darem majoritariamente mediadas por aparelhos tecnológicos, pela imagem ou mesmo pelo dinheiro. Travis acessa a lembrança do passado através de filmes caseiros, tem nas imagens das revistas a referência de como deve ser um pai, ele e Hunter falam entre si através de walkie talkies, eles encontram Anne por meio de um banco, Travis e Jane se falam por um vidro, em um contexto de “espetáculos”, e, por fim, Travis deixa uma mensagem para Hunter em um gravador. Mesmo o terreno em Paris, Texas só existe no filme a partir de uma foto.
Quinto dado. Walter trabalha fazendo outdoors. Isso reforça a presença constante da mercadoria no filme. Aliás, na primeira vez em que o personagem aparece, não temos como saber que ele está na frente de um outdoor, e, assim, confundimos propaganda e realidade.
2.
Comecemos a interpretar os dados. Que a busca de Travis seja por um lugar chamado Paris no interior do Estado americano do Texas sem dúvida é um acontecimento de interesse fundamental para nós. Como lembra Fredric Jameson (2021), a pós-modernidade (outro nome para o capitalismo tardio, nosso tempo histórico) é um tempo no qual a verdade da experiência individual coincide muito pouco com o lugar onde ela acontece, um tempo que é mais global do que local e que, portanto, embaralha as lógicas de pertencimento. Mais que uma mera piada, o foco em um lugar como este talvez diga respeito a este embaralhamento, a este paradoxo.
O espaço que, no filme, tem a força de um espaço originário, dotado, talvez, do poder de prover, novamente, sentido à vida de nosso protagonista, apresenta-se como um lugar deslocado, impossível. E a diversidade de origens dos familiares de Travis certamente também vai na direção de uma mistura de lugares, sem um centro definido.
Parece que começamos a encontrar o chão histórico do filme. Se essa relação faz sentido, pode ser que a centralidade da imagem e da mercadoria ela mesma na forma de Wim Wenders diga também respeito a esse momento do capitalismo tardio ou da pós-modernidade.
As referências à bandeira americana e aos símbolos dos Estados Unidos, por sua vez, aparecem como emblemas cansados no filme, quase ruínas de um mundo anterior, no qual o Estado-nação ainda estava mais no centro da experiência pública (vale lembrar que, com os desenvolvimentos mais recentes dos processos neoliberais, com os Trumps e Bolsonaros do mundo, ele volta a ter uma importância maior, mas este não é o caso do momento histórico do filme).
O mesmo pode ser dito a respeito da sombra do filme de faroeste que aparece através da trilha sonora. Ela está lá como um pastiche (para falar, novamente, com Jameson (1997)), a repetição de um estilo do passado já sem forças, mas que ressurge como uma espécie de fantasma.
A respeito do trauma, alguma proximidade certamente pode ser encontrada entre o estado de apatia inicial de Travis e a depressão tal qual entendida por Maria Rita Kehl (2009). Para a autora, o depressivo pode ser compreendido como um indivíduo que desiste da disputa com o pai pelo falo. Ele recua, escolhendo a proteção materna e cedendo em seu desejo, o que gera culpa.
Mais importante que isso, contudo, é a relação que Maria Rita Kehl faz entre a depressão e a sociedade contemporânea, vendo-a como um sintoma social. Em um tempo no qual a face imaginária do Outro é positivada pela indústria do espetáculo, em que a norma impõe mais pela sedução e pelo pedido do gozo que pela imposição, em que “as imagens, em sua forma mercadoria, é que organizam prioritariamente as condições do laço social” (Kehl, 2009, p. 93), o depressivo recusa sem saber essa relação. Ele resiste caladamente às propostas constantes de felicidade consumista.
O estado de Travis não é, contudo, exatamente um estado depressivo. Apesar de colocar-se fora da vida em sociedade e de não conseguir mais se expressar, ele não desistiu do seu desejo. Pelo contrário, ele busca seu lugar de origem, uma espécie de objeto primordial, dotado de importância quase mitológica – ao mesmo tempo em que muito pessoal. Simultaneamente, seu encontro, primeiro com o irmão, e, depois, com o filho, mostram que sua busca é impossível, e outra busca coloca-se, então, em seu lugar: refazer sua família, ainda que já sem ele. Ele se retira do quadro, talvez, novamente, como o depressivo, mas o sentimento é menos de uma desistência do que de uma clareza e um domínio com relação ao que ainda é possível fazer.
O caso é que começa a tomar forma o trauma a que o filme responde. Trata-se do trauma de uma sociedade mediada pela imagem, de capital fictício, em que o mundo material se torna uma espécie de deserto – para conversar tanto com o início do filme quanto com Ricardo Antunes (2005), que fala em uma “desertificação social”. Um mundo, mais especificamente, de princípios de neoliberalismo.
O neoliberalismo, dizem alguns dos teóricos mais interessantes a respeito, é, além de um modelo político, um modo de subjetivação. Em primeiro lugar, temos o consumidor soberano (Olsen, 2019), que seria um sujeito isolado que, por meio das suas escolhas, coloca o mercado em movimento. Essa é, é claro, a ideologia neoliberal. A verdade é que temos sujeitos isolados, sim, e que lidam com o mundo a partir de uma lógica de consumo, mas que não têm qualquer domínio sobre esse mundo. Em segundo lugar, temos o empreendedor de si (Dardot; Laval, 2016): ele lida com tudo como se fosse um investimento e enxerga a si mesmo como “capital humano”.
Uma forma de ler o neoliberalismo é como uma radicalização das lógicas do capitalismo tardio, sua espécie de “forma final” (enquanto não vierem outras piores). E não é de se estranhar que esse modo de subjetivação traga, digamos, efeitos colaterais como o estudado por Maria Rita Kehl e o que parece estar na origem da forma de Paris, Texas.
3.
O mais interessante, contudo, talvez seja o fato de que o achatamento que Jameson (1997) encontra nas obras pós-modernas não parece estar presente no filme de Wim Wenders. Pelo contrário, nele cada elemento é pleno de sentido. Além disso, existe um elemento utópico claro na narrativa: é como se assistíssemos a um processo de cura. Saímos de uma situação aparentemente sem saída senão pelo perambular sem motivo racional e chegamos a uma resolução, até onde possível, do mal-estar que está no centro do filme.
Além disso, o andamento lento da narrativa sugere certa quietude, certa calmaria que nos induz a um estado de contemplação. Contrasta, assim, com o ritmo acelerado do capitalismo tardio.
Vale lembrar que o cinema é uma arte da atenção involuntária, como defende Hugo Münsterberg (2018, p. 28). Vejamos o que ele diz sobre esse tipo de atenção: “A influência diretiva lhe é extrínseca. O foco da atenção é dado pelas coisas que percebemos. Tudo o que é barulhento, brilhante e insólito atrai a atenção involuntária. Automaticamente, a mente se volta para o local da explosão, lemos os anúncios luminosos que piscam”.
Sendo, assim, o cinema, diferente de um quadro e mais que o teatro, uma forma ligada à atenção involuntária, é possível argumentar que se trata de uma forma mais afeita à economia da atenção. O filme de Wim Wenders, contudo, respeita a atenção de quem assiste. Dá mais valor à imagem, que fica por mais tempo na tela. Há menos close-ups, mais planos abertos. Há poucas coisas “barulhentas, brilhantes e insólitas”.
Ainda sobre a atenção, a cor rosa, que surge com Jane, nos cativa. Isso acontece porque ela contrasta com o resto do filme, que não tem rosa (mas tem verde, relembro, que é a cor complementar).
As duas cenas com Jane, aliás, certamente são as partes mais formalmente complexas do filme. E elas dependem muito de Nastassja Kinski, que precisa fingir uma atuação fraca que, ao mesmo tempo, dá a ver algo da personagem por baixo ou por trás dessa atuação.
Também enxergo uma ambiguidade na posição de Jane. Ela ao mesmo tempo se apresenta como imagem pornográfica e retoma certo valor perdido da imagem no filme. A superabundância de imagens no capitalismo tardio torna difícil que qualquer coisa marque o indivíduo de verdade, e as cenas com Jane certamente marcam.
Outra coisa interessante é que o acontecimento central do filme não é mostrado, só narrado, e com um dos personagens de costas. A imagem parece invasiva demais, violenta mesmo. Por isso, é preciso evitá-la em certos momentos. Um filme pior talvez começasse com o acontecimento traumático, mas não Paris, Texas.
4.
Vimos que não só a narrativa de Paris, Texas chega a uma resolução do trauma que está em seu centro, mas que a própria forma do filme como que tenta compensar, digamos, o mal-estar neoliberal.
É difícil ignorar, contudo, o fato de que não há lugar para Travis no final do filme. Ele reuniu sua família, sim, mas já sem ele. Os motivos intradiegéticos pelos quais ele se ausenta são óbvios, mas esse fato não é tão fácil assim de se interpretar historicamente.
Estou num terreno menos seguro, mais incerto aqui, mas quero propôr uma resposta. Travis se retira do quadro porque o filme trata justamente do ocaso do self-made man, do ocaso do indivíduo para quem o futuro é um reino de possibilidades. Para Travis, até há futuro, mas não com quem ele ama. Há futuro, mas ele foi, ao menos até certo ponto, esvaziado.
O filme tenta compensar os efeitos adversos do capitalismo tardio, mas, no fundo, ele sabe que se trata de uma tarefa possível somente até ali. Ele faz o que costumávamos esperar da arte, e cada vez esperamos menos: apresenta, ao mesmo tempo, o nosso mundo e um mundo outro, invertido. Mas ele é consciente o suficiente da realidade histórica para saber que as possibilidades reais de resolução do trauma de que ele parte são pequenas.
Dizendo de outro modo: Paris, Texas quer nos apresentar um outro tipo de experiência, diferente do que experienciamos cotidianamente no neoliberalismo. E ele, até onde vão minhas luzes, consegue. Simultaneamente, porém, não se trata de ignorar os problemas sociais em nome dessa experiência outra. Muito pelo contrário: eles estão no centro de tudo, ainda que não explicitamente. E o final é bonito, mas não nos promete que teremos tudo o que desejamos.
Vinícius de Oliveira Prusch é doutorando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Referência
Paris, Texas
França e Alemanha, 1984, 145 minuto.
Direção: Wim Wenders.
Roteiro: Sam Shepard e L.M. Kit Carson.
Fotografia: Robby Müller
Trilha sonora: Ry Cooder.
Elenco: Harry Dean Stanton, Nastassja Kinski e Hunter.
Bibliografia
ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal do Brasil (Collor, FHC e Lula). São Paulo: Autores Associados, 2005.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
JAMESON, Fredric. Mapeamento cognitivo. In: Revista Porto Alegre. Tradução de Gabriel Tupinambá e Luisa Marques. 29 de julho de 2021. Disponível em: http://revistaportoalegre.com/mapeamento-cognitivo/
______. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1997.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
MÜNSTERBERG, Hugo. “A atenção”, “A memória e a imaginação” e “As emoções”. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz & Terra, 2018, pp. 25-54.
OLSEN, Niklas. The sovereign consumer: a new intellectual history of neoliberalism. Londres: Palgrave Macmillan, 2019. (Consumption and Public Life)
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