O jantar

image_pdf

Por Lincoln Secco*

Em 20 de fevereiro de 1933, numa tarde de segunda feira, 24 magnatas da Indústria alemã foram recebidos no palácio do Presidente do Reichstag. Foram cumprimentados um a um por Hermann Göring enquanto aguardavam a chegada do Führer. De repente Hitler adentrou o recinto e começou a falar. Alguns o viam pela primeira vez. Ele se fazia afável, afinal as eleições de março se aproximavam. Discursou por meia hora e se retirou. Então, Hjalmar Schacht, o animador da recepção, bradou: “Ao Caixa!”. A cena é narrada por Éric Vuillard em seu belo livro A Ordem do Dia, (editora Planeta) cujo estilo faz lembrar o quanto a ciência histórica pode tangenciar a arte.

Schacht havia conhecido Hitler em um jantar na casa de Goering três anos antes. Em março de 1933, após a vitória eleitoral nazista, Schacht assumiu a presidência do Reichsbank. No entanto, não pertencia à elite nouveau riche que ascendia diretamente das milícias e do partido. Já havia ocupado o mesmo cargo durante a República de Weimar.

Farsa

A nossa história parece menos trágica, suas personagens menos relevantes e a pantomima foi substituída por lives. Numa economia desindustrializada as classes são indefinidas, salvo a oligarquia agrária. Assim era na República Velha, como o historiador Edgard Carone demonstrou. Assim é na pós Nova República, como a participação da indústria de transformação no PIB nos revela e nosso vibrante agronegócio, com sua baixa capacidade de agregar valor, nos informam.

Sob a hegemonia do latifúndio e o domínio dos milicianos, a Constituição de 1988 pode se tornar tão fictícia como a de 1891 ou tão insignificante quanto a de Weimar sob o nazismo.

Se assim é, podemos então tomar o palhaço pelo mímico; Skaf por Krupp; a Riachuelo pela Siemens; Hans von Loewenstein zu Loewenstein pelo “Véio da Havan”; o genial oportunista Schacht por um Ministro ressentido com os colegas da PUC; a tragédia pela farsa.

Arroz com Pato

Em 11 de junho de 2019, numa terça-feira, o presidente Bolsonaro falou a 50 empresários na casa de Paulo Skaf. Enquanto jantavam arroz com pato e um carré de cordeiro, o animador da festa, Paulo Guedes, tranquilizava os que ainda duvidavam da conversão liberal do “Mito” e exibia o seu empenho em acabar com a aposentadoria da classe trabalhadora como uma prova.

É verdade que alguns nomes importantes não apareceram. Mas os Feffer, Ometto, Diniz e Brandão estiveram lá. Assim como no passado frequentaram a mesa de outros presidentes. E também já se converteram à Democracia, tantas vezes quanto foi necessário. O que importa é que serviram lealmente à sua pátria e aos seus lucros.

Não sabemos o que acharam dos efeitos da política econômica sobre o PIB. Nem se concordaram depois com The Wall Street Journal que saúda o governo por expor “as indústrias locais há muito acostumadas ao protecionismo aos desafios do livre comércio”.

Ao contrário de seu par alemão, o ministro brasileiro não criará títulos para financiar o investimento industrial e nem vai construir uma Autobahn ou qualquer outra coisa. Na teologia liberal o dinheiro nasce de artimanhas financeiras e não da produção. E no ideal fascio-evangélico da lumpem burguesia a prosperidade dos outros não pertence ao reino deste mundo.

Depois de Tudo

Éric Vuillard mostra como os Siemens, Krupp, Opel e todos os grandes capitalistas alemães financiaram Hitler; como os conservadores austríacos toleraram o nazismo até serem surpreendidos por ele; como a política de apaziguamento ocidental pavimentou o caminho para a Segunda Guerra Mundial. Mas fundamentalmente, ele nos revela que depois os mesmos empresários que doaram quantias astronômicas aos nazis, negociaram até o último centavo as indenizações aos judeus sobreviventes que trabalharam como escravos em suas empresas.

Quanto tempo durará essa experiência é impossível prever. Por ora já se mostram arrependidos os que foram mordidos pelas feras que eles próprios tiraram do zoológico. Já é um número considerável. Todavia, ainda existem outros tantos que esperam a arma secreta que o Führer tem, mas nunca usou.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES