Hino nacional brasileiro

Imagem: Elyeser Szturm
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Por LISZT VIEIRA*

São muito poucos os brasileiros que compreendem todo o hino nacional. Talvez 10%, provavelmente menos. Enquanto isso, o povo canta sem entender o Ovirudu

Na maioria dos países, o hino nacional é compreensível a todos, alfabetizados ou não. Resolvi dar uma olhada no hino nacional de vários países, em geral não há dificuldade na compreensão.

No caso dos países latino-americanos, consultei os hinos nacionais e todos celebram a luta de libertação nacional contra o colonizador e conclamam o povo a morrer pela pátria. Uma influência remota da Idade Média (Pro Patria Mori). Em brilhante ensaio, o escritor Ernst Kantorowicz mostrou que a atitude de morrer pela pátria tem uma essência religiosa de origem medieval. Já escrevi um artigo sobre identidade nacional tratando desse assunto e mostrei que a única exceção é o Brasil. Nosso hino nacional, embora diga superficialmente no final que o brasileiro não teme a morte, celebra a natureza e não fala em morrer pela pátria.

Não vou repetir aqui o que disse no artigo. Se alguém estiver interessado, pode consultar meu artigo “Morrer Pela Pátria: Notas Sobre Identidade Nacional e Globalização”, no livro Identidade e globalização,(Record) ou procurar no meu site: www.lisztvieira.com.br.

Vou apenas citar um pequeno trecho:

A exaltação da natureza como afirmação de nossa identidade foi ilustrada nos versos da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, que se institucionalizaram definitivamente na letra do Hino Nacional: Canção do Exílio, versos 5, 6, 7 e 8: Nosso céu tem mais estrelas/ Nossas várzeas têm mais flores/ Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida mais amores. Hino Nacional, versos 31,32 e 33: Do que a terra mais garrida/ Teus risonhos, lindos campos têm mais flores/ Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida no teu seio mais amores.

O hino nacional brasileiro está repleto de imagens e metáforas ligadas à natureza. Foram as margens plácidas do Ipiranga que ouviram o brado retumbante de um povo heroico que estava ausente e não bradou nada. Sol da liberdade, formoso céu risonho e límpido, gigante pela própria natureza, deitado em berço esplêndido, sol do novo mundo, terra adorada, abundam no hino nacional metáforas naturais. Aqui reside, sem dúvida, um dos elementos que explicam a síntese surpreendente de Nelson Rodrigues: O Brasil é uma paisagem.

Vou abordar agora no presente texto uma outra questão que também me intriga. O estilo parnasiano do hino nacional brasileiro dificulta a compreensão. Quando eu era professor da PUC-Rio, há muitos anos, dei aula de sociologia e sociologia jurídica na Faculdade de Direito. Um dia, escrevi no quadro as duas primeiras frases do hino nacional e pedi para os alunos colocarem em ordem direta.

“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heroico o brado retumbante”

Era um teste para ver quantos compreendiam o hino que cantavam desde criança. Para minha surpresa, metade da turma errou. Ou seja, não compreendiam o hino. Isso ocorreu numa Faculdade de Direito de uma universidade privada de elite. Acho que no povão a incompreensão deve beirar os 100%.

Esse fato me fez lembrar uma estória real com um jogador de futebol ocorrida no passado, nos anos 1960, creio. Ele dava uma entrevista a um repórter quando foi chamado para cantar com os outros jogadores o hino nacional. Ele interrompeu a entrevista dizendo: Agora vou cantar o Ovirudu. Era como ele entendia a primeira frase do hino.

Sei que o hino nacional é tabu, mas já pensei em iniciar uma campanha para o hino nacional passar a ser a canção Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. É bonita e todo mundo entende. Bastava encontrar outra rima para “brasileiro”. Afinal – com todo o respeito, Seu Ary – ninguém sabe o que é mulato inzoneiro (e hoje seria considerado preconceituoso). Mas todo mundo entende a brilhante conclamação: “Abre a cortina do passado/Tira a mãe preta do cerrado/Bota o rei congo no congado”.

Um amigo me disse que eu correria risco de vida. É perigoso mexer com símbolos. Nem vou discutir aqui o problema da apropriação dos símbolos nacionais pela extrema direita, isso seria um outro assunto. Acho apenas que, um dia, alguém ou alguma organização vai ter o desejo e a força para propor mudar o hino. Minha ideia é cada século ter seu hino nacional.

O nosso é do século XIX. O século XX suportou mal o hino nacional. No século XXI, ele é uma cansada relíquia: a letra é invertida, cheia de imagens de descrição da natureza, de inspiração romântica, e ao mesmo tempo com uma sintaxe extremamente elaborada, de estilo parnasiano, que o povo não entende. O hino hoje está completamente deslocado da cultura nacional.

Com as florestas e rios sendo degradados e destruídos, teria mais sentido celebrar os que lutam pela conservação da natureza. O berço onde o Brasil está deitado eternamente não é mais esplêndido, o mar e a luz do céu profundo estão poluídos, assim como os rios. Nossos lindos campos com mais vida, nossos bosques com mais flores estão degradados e não são mais símbolos do lábaro que ostentas estrelado, nem do verde-louro dessa flâmula.

Um novo hino nacional, compatível com o século XXI, certamente ficaria deslocado no século XXII que irá merecer o seu próprio hino. Acho que 100 anos é um bom tempo de vida para um hino nacional. A ideia de um hino eterno é parte de uma visão conservadora de mundo. Em 100 anos, mudam as leis e os costumes. Por que não muda também o hino nacional? A cada século, seu hino, é a minha proposta.

Como um novo hino vai demorar, se é que realmente um dia vai mudar, até lá não serão muitos os brasileiros que compreendem todo o hino nacional. Talvez 10% da população, no máximo, provavelmente menos. Enquanto isso, o povo canta sem entender o Ovirudu.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). https://amzn.to/3sQ7Qn3


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