A contrarrevolução produtiva

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Por LINCOLN SECCO*

Comentário a partir das investigações de Fernando Sarti Ferreira

A nova ascensão eleitoral do fascismo levou muitas pessoas a revisitarem o fenômeno político e as teorias dos anos 1920. Mas poucas se voltaram para um processo tão importante quanto os movimentos fascistas: a reestruturação da produção capitalista.

Naquela época, Antônio Gramsci deixou notas impressionantes sobre o americanismo e o fordismo que constituem uma via de interpretação de fenômenos econômicos, políticos e culturais como um todo. No século XXI também vivenciamos o impacto da informatização, da telemática e inúmeras técnicas produtivas nas relações trabalhistas.

Além da existência de um campo ideológico neoliberal poderoso e dos prolongados efeitos da crise de 2008, uma parte da dificuldade de recomposição política e sindical da classe trabalhadora reside nas formas presentes que o trabalho assumiu; algumas delas resumidas pelo neologismo uberização.

Os Anos 1920

A Revolução Russa de 1917 abriu um período ofensivo da classe trabalhadora que se seguiu até 1921, quando uma fase de estabilização capitalista se impôs, marcada pela recuperação  após a crise econômica do pós guerra. Para a Internacional Comunista, depois da última tentativa revolucionária alemã de 1923, acabara-se qualquer possibilidade revolucionária no curto prazo. A partir de 1928, previa-se um terceiro período de ascensão revolucionária que  não se verificou.

Houve um aprofundamento da dominação capitalista, cuja estabilidade repousava em instáveis arranjos constitucionais sociais democratas e, em determinados países, no regime fascista. Em ambos os casos, uma combinação diferente de repressão e cooptação de trabalhadores cumpriu um papel importante. Claro que a forma política democrática ou ditatorial nunca é indiferente para a classe trabalhadora.

Mas é evidente que as fases acima assinaladas não foram estritamente políticas. O poder econômico  das classes sociais se modificou em função de novas relações de produção. O fim da onda de greves e a pacificação social dos anos 1920 podem ser observados a partir da organização científica do trabalho.

Mas aquilo que foi apresentado como inovação técnica, em Detroit, foi inspirada no processo de abate e corte de bovinos da indústria frigorífica de Chicago, como diz Fernando Sarti Ferreira em sua tese A contrarrevolução produtiva:refluxo e estabilização do conflito social em Buenos Aires, 1924-1930, defendida na Universidade de São Paulo em 2020. A organização científica prescinde da mecanização, como o próprio exemplo de Taylor o comprova. A “desmontagem” do boi antecedeu a montagem do Ford T, logo não é algo esdrúxulo tratar disso num país periférico agro exportador como a Argentina de ontem ou no Brasil de hoje. A periferia testa os limites das formas de extração de mais valia.

A Estrutura

Fernando Sarti Ferreira explica como, naquele período, as indústrias se alimentavam da “capitalização da renda agrária”, mas parte de seus lucros era revertida na forma de uma “territorialização do lucro industrial”, mediante aquisição de propriedades rurais. Ou seja, as classes dominantes argentinas diversificavam investimentos, de modo que jamais se colocou a possibilidade de uma revolução burguesa que ameaçasse o papel do setor agroexportador enquanto motor da economia nacional e principal vínculo desta com o mercado mundial.

Afirma o autor que “o crescimento industrial em uma zona periférica terminou por ampliar sua dependência do comércio exterior, uma vez que diversificou seus laços e nexos com o mercado internacional, ao criar a demanda por maquinaria e insumos industriais”. Problema semelhante ao constatado por Caio Prado Júnior no Brasil, já que para ele a instalação da indústria provocava demanda nova que o país não podia satisfazer e precisava importar, agravando o problema da dívida. Isso dizia respeito tanto à procura de meios de produção quanto ao consumo derivado do aumento da renda da população.

Para Sarti Ferreira não fazia nenhum sentido para as classes dominantes desviar recursos da reprodução do complexo agro exportador para financiar uma autêntica Revolução Industrial. Por outro lado, alguma industrialização interessava ao próprio imperialismo na medida em que o comércio de insumos industriais e bens de capital ampliava a possibilidade de captação do excedente produzido no país pelas potências centrais, em especial, até a década de 1920, a Grã-Bretanha e,  em seguida, os Estados Unidos.

Os países centrais, dada a emergência do capitalismo monopolista, da segunda Revolução Industrial e da empresa multidivisional (em que a mão invisível do mercado cedeu lugar ao planejamento gerencial da Visible Hand cunhada pelo historiador Alfred D. Chandler Jr) desenvolveram uma política imperial, pois o  volume de sua produção e as oportunidades de crescimento da taxa de lucro não cabiam mais nos limites do mercado interno, problema que Rosa Luxemburgo conceituou como  o problema da realização da mais valia.

O autor nota, portanto, que aquela nova dinâmica imperialista se expressa no crescimento dos valores investidos em máquinas e equipamentos duráveis durante a década de 1920 na  Argentina. O aumento da composição técnica do capital industrializou e diversificou a produção, mas isso ocorreu numa economia, a rigor, sem um Departamento I (este é externo ao modelo econômico). A renda do setor agrário, capaz de gerar divisas e recursos para importação de máquinas, não podia ser um substituto meramente “contábil” do Departamento I.

A produção agro exportadora tem sua dinâmica afetada pela demanda exterior de commodities, pelo comportamento de preços formados no mercado internacional e não no mercado interno. O dínamo de uma economia industrializada é o capital industrial nacional, isento da necessidade de importar tecnologia, de pagar royalties e de remeter lucros. Em resumo, a Argentina não podia reproduzir de maneira endógena e autônoma o Departamento que produz os bens de capital.

O Método

É a partir dessa “falsa industrialização” (para usar a expressão do historiador Milcíades Peña) que Fernando Sarti Ferreira correlaciona as greves dos anos 1920 e as flutuações econômicas de curto prazo. Matiza a historiografia, redimensiona a suposta paz social daquele decênio, qualifica a intensidade das greves, o seu caráter ofensivo ou defensivo e o faz com o brilhantismo de um historiador que sabe interrogar as suas fontes primárias.

Ele enfrenta os problemas conceituais e metodológicos em torno do fenômeno grevista. Afinal, qualquer  paralisação por qualquer motivo pode integrar o seu levantamento quantitativo? Para ele as greves resultam de “mobilizações coletivas, intencionais e declaradas, que resultaram na paralisação das atividades produtivas e serviços, independentemente de seu tempo de duração e do número de pessoas envolvidas, em torno de reivindicações de caráter econômico, político e/ou social.”

Ele constatou um ciclo econômico expansivo de 1922 a 1924; 1925-1926, estagnação. De 1927 em diante expansão. Decerto, ele não deixa de lado os fatores políticos, pois as greves, depois de breve interrupção em 1929, voltaram no ano seguinte para decaírem em função do golpe militar de 1930.

Para reconstituir as etapas do processo produtivo na Argentina, o autor recorreu a uma miríade de fontes: cartas, manuais de engenharia, folhetos, propagandas, jornais e uma vasta bibliografia. Mas duas fontes avultam em sua investigação: os dados do Departamento Nacional del Trabajo e os jornais operários. No primeiro caso, ele complementou o número de greves e grevistas e calculou a intensidade dos movimentos paredistas com um extenso  levantamento quantitativo  e  qualitativo,  realizado  por  ele mesmo a partir da imprensa operária.

Da estrutura econômica do país, do seu papel na divisão internacional do trabalho e de como ela se entrelaçou com as oscilações de conjuntura nos primeiros decênios do século XX chegamos à fábrica.

A Hegemonia na Fábrica

Para além dos problemas macroeconômicos, parte da explicação das dificuldades organizacionais da classe trabalhadora argentina nos anos 1920 estava na reestruturação produtiva. Aqui adentramos um universo de caldeiras, rebitadores, maçaricos, martelos pneumáticos, máquinas, motores, pistolas, pulverizadores para pintar as carrocerias etc. O autor faz esse movimento para o interior da máquina coletiva que é a fábrica.

Ele retira das próprias condições materiais de produção e das relações sociais condicionadas pela nova maquinaria importada a brutalidade dos capatazes, o desrespeito à lei de descanso dominical, as jornadas extenuantes de até doze horas diárias nos momentos de maior demanda, os empresários de duvidosa procedência, os engenheiros a soldo do capital enquanto ideólogos, os policiais, os fura greve (crumiros), os capatazes, os padrões estandardizados de produção, os incentivos salariais e as punições, os maus tratos, a hora extra, o ritmo de trabalho, as prisões, enfim a dimensão do cotidiano da classe operária.

O estudo do caso da fábrica da General Motors inaugurada em abril de 1925, em Buenos Aires, ilustra as formas que aquela classe encontrou para resistir à contrarrevolução produtiva do capital. É aqui que a análise se torna mais fina porque o autor consegue encontrar no particular a universalidade  dos conflitos, vozes e posicionamentos políticos de vários grupos sociais. O mesmo se encontra no caso dos estaleiros Mihanovich.

Os trabalhadores deslocam o centro das suas manifestações e conflitos para fora da fábrica com paralisação, boicote, sabotagem; os demitidos são contratados por empresas menores concorrentes, os militantes sindicalistas são parte integrante do cotidiano da resistência e não apresentados como se fossem seres estranhos ao meio obreiro.

Uma moda já passada da historiografia trouxe a curiosa substituição da visão do dirigente sindical ou partidário, pela dos acadêmicos (arvorados em veículos neutros da verdadeira fala da classe trabalhadora). Forjou-se um “marxismo imaginário” economicista em contraposição a outro que resgataria a centralidade das culturas de classe.

A Totalidade

Fernando Sarti Ferreira não recai nesse engano e busca a interação dos relatos dos operários comuns com a dos militantes, dos empresários e engenheiros que transformavam a maquinaria num novo evangelho industrialista. Da multiplicidade dessas visões, confrontada com os índices macroeconômicos, a conjuntura internacional, a política institucional e a organização ideológica das classes é que chegamos à totalidade.

Reencontramos então desde o socialismo argentino, o anarquismo, o comunismo, a organização em partido, sindicato, célula, por local de trabalho etc até as leituras que as classes sociais fizeram da natureza social das mudanças na produção.

Para os socialistas do jornal La Vanguardia, por exemplo, as novas formas de organização do trabalho foram defendidas dentro dos marcos evolucionistas; já o La Protesta denunciava que  a ciência estava a serviço do capital. Muitos militantes atacavam a inevitabilidade do progresso técnico como uma fé irracional. Ainda assim, ambos os jornais se abriram para dar voz aos trabalhadores do chão de fábrica e tiveram que tratar das consequências concretas da reestruturação produtiva: intensificação do trabalho e desemprego.

Uma vez definida a estrutura econômica, a posição dos grupos sociais diante da produção, as relações entre eles e a consciência de classe possível tangenciamos a totalidade. A dominação de classe se projeta como processo e o seu sentido como uma síntese de múltiplas contradições.

Sarti Ferreira conclui que o “mundo do trabalho” não pode ser apartado de outros aspectos da vida material e intelectual; dessa forma ele restitui a importância da estrutura produtiva para a análise dos conflitos sociais, ilustra num caso concreto como a hegemonia nasce na fábrica e fornece um exemplo de brilhante reconstituição dialética da história.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê Editorial).

 

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