Por TIAGO BRANDÃO*
A extinção da FCT em Portugal não é mera reorganização administrativa, mas uma guinada filosófica. Substitui a ciência como bem público e de longo prazo por uma inovação subserviente ao mercado, sinalizando um retrocesso perigoso na autonomia do conhecimento e no projeto de desenvolvimento nacional
1.
Encerrando o mês de julho, no dia 31 – quando Portugal se preparava para “ir a banhos” nas praias do Algarve e do litoral alentejano –, a comunidade científica foi surpreendida por um gesto que muitos consideraram de desatino político, sintomático desta retomada de ciclo da nova direita no poder. Menos de dois meses após tomar posse, o Governo anunciou a extinção da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), principal agência pública de fomento à ciência no país, criada em 1997 pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano Gago – uma instituição equiparável, no contexto brasileiro, ao CNPq e à Capes.
Embora o anúncio tenha forte carga simbólica, sua relevância ultrapassa a memória de Mariano Gago: a FCT é fruto de uma longa trajetória de construção institucional, indissociável da própria afirmação da ciência como política de Estado em Portugal.
Essa trajetória remonta a 1929, com a criação da Junta de Educação Nacional, primeira agência de financiamento à ciência no país, responsável por um apoio pioneiro à formação científica por meio de bolsas. O desafio, no entanto, sempre foi mais amplo: articular ciência e tecnologia a um projeto estratégico de desenvolvimento económico e social. Em 1967, a criação da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica representou um primeiro passo nessa direção, embora marcada pelas ambivalências de um regime político conservador e autoritário.
Apenas com a consolidação democrática, a adesão às Comunidades Europeias e o acesso a fundos estruturais tornou-se possível erguer uma arquitetura institucional moderna, capaz de integrar Estado, comunidade científica, setor produtivo e sociedade civil no fortalecimento de ecossistemas de inovação e de uma economia baseada no conhecimento.
A criação da FCT, em 1997, consolidou esse processo ao estabelecer um arranjo que solucionou as tensões pré-existentes entre a JNICT e o INIC e, sobretudo, ao assegurar à ciência um lugar estável no orçamento de Estado. Em paralelo, fora criada em 1994, no âmbito do programa STRIDE (1991-1996) | Quadro Comunitário de Apoio II, a Agência de Inovação, com a missão de promover a valorização econômica dos resultados de I&D e a inovação de base tecnológica, envolvendo empresas e consórcios empresariais. Posteriormente renomeada Agência Nacional de Inovação (ANI), passou a desempenhar papel relevante no financiamento às empresas portuguesas, por meio do SIFIDE (Sistema de Incentivos Fiscais à I&D Empresarial) e de outros programas, como os de co-promoção e demonstradores tecnológicos.
Em 2018, por exemplo, foram aprovados 96% dos projetos candidatos ao crédito fiscal, correspondendo a 642,1 milhões de euros em investimentos em I&D – 75% do valor declarado pelas empresas nas candidaturas –, dos quais 51,6% foram devolvidos sob a forma de incentivos fiscais. Desde 2006, o Estado atribuiu 2.348,8 milhões de euros em benefícios fiscais a 3.193 empresas.
Fica claro, portanto, que não se pode alegar falta de uma entidade dedicada a incentivar a inovação no setor privado. Qualquer proposta de fusão entre FCT e ANI não se justifica por carência institucional, mas por uma opção política que ignora as especificidades de cada missão e, em vez de resolver tensões históricas, arrisca criar novos conflitos e fragilizar o sistema de fomento.

2.
Apesar da relevância, a trajetória da FCT não esteve livre de limitações. Persistem fragilidades estruturais e assimetrias – regionais, disciplinares, institucionais, geracionais e relacionadas à diversidade e à inclusão –, sobretudo no apoio à ciência. Destacam-se a precariedade das carreiras científicas, o excesso de burocracia e taxas de aprovação frequentemente irrisórias. O desgaste não é recente, mas a fundação segue sendo a principal referência no financiamento estruturante da ciência em Portugal.
O anúncio de sua extinção surpreendeu pelo momento, mas não surgiu do nada. Desde o experimento governamental de 2011-2015 – com o XIX Governo de Pedro Passos Coelho e Nuno Crato no Ministério da Educação e Ciência – circulava nos bastidores a hipótese de fusão com a ANI. Esse cenário insere-se numa proposta de reforma do Estado com tonalidades gerencialistas – o “enxugamento”, como se diz no Brasil – que enquadra a política científica numa lógica de eficiência administrativa e impacto económico imediato. Não é cedo para perceber o que está em jogo, nem é verdade que não houvesse sinais: há anos observa-se uma inflexão das prioridades para a inovação empresarial, acompanhada da despromoção das humanidades e ciências sociais, da limitação da investigação fundamental, do agravamento das restrições nas bolsas e no acesso à carreira científica.
O problema é também de processo: não houve avaliação formal prévia, auscultação da comunidade científica, consulta pública ou estudo independente que justificasse medida de tal magnitude. O que se apresentou foi um conjunto de diapositivos eletrônicos com organogramas redistribuindo agências e instituições sem critérios claros.[i] Decisões desta envergadura exigem debate público informado e transparente e não podem ser tomadas à porta fechada.
O debate público se instalou. Defensores – como Helena Canhão, secretária de Estado de Ciência e Inovação – veem na integração oportunidade de criar um ecossistema unificado de ciência e inovação, com financiamento previsível, cooperação reforçada, alinhamento com a economia e maior capacidade de resposta a desafios estratégicos. Críticos – como Alberto Amaral – alertam para riscos de perda de autonomia científica, subordinação a interesses económicos imediatos, mercantilização da investigação, redução do financiamento de longo prazo e ausência de debate público.
O confronto opõe, de um lado, acadêmicos e cientistas – muitas vezes rotulados nas redes sociais como “velhos do Restelo” – e, de outro, empreendedores de perfis diversos (em geral engenheiros, consultores e empresários), cuja visão sobre o ecossistema científico e sua cultura de base tende a aproximá-los mais do mercado e da retórica inovacionista. (Canhão & Amaral, 2025)
Quadro-síntese distinguindo argumentos contra e pró à fusão/extinção da FCT e criação da Agência para a Investigação e Inovação (AI²)
| Posição | Principais argumentos | Fontes (crónicas/reportagens) |
| Contra | – Ausência de debate público e consulta à comunidade científica antes da decisão. – Risco de subordinar a ciência a agendas de inovação e mercado, comprometendo a autonomia e a diversidade disciplinar. – Provável marginalização das ciências sociais, humanas e investigação fundamental. – Perda de memória institucional e de competências acumuladas pela FCT. – Incerteza sobre estrutura legal, liderança e operacionalização da nova agência. – Falta de diagnóstico técnico robusto que justifique a fusão, quando estudos prévios apontavam apenas para reorganização interna. – Precedentes internacionais mostram que fusões desse tipo podem enfraquecer a capacidade de formulação de políticas científicas específicas. – Risco de interrupção de concursos e projetos em curso durante a transição. | Maria Fernanda Rollo; Ana Ferreira; Bruno Soares Gonçalves; Duarte Barral; João Ramalho-Santos; Manuel Heitor; Teresa Firmino (estudo FCT); Teresa Firmino (reportagem anúncio); Luís Magalhães |
| Pró | – Integração ciência–inovação pode gerar maior coerência estratégica e reduzir fragmentação do sistema. – Possibilidade de definir prioridades transversais e alinhar produção de conhecimento com desafios estratégicos (transição verde, digital, IA, ciências da vida, etc.). – Potencial para ganhos operacionais e redução de redundâncias administrativas entre FCT e ANI. – Promessa de financiamento plurianual (4 anos), aumentando previsibilidade e estabilidade. – Autonomização da agência em relação ao ministério, com gestão mais profissionalizada. – Reforço de investimento também na ciência fundamental, segundo compromisso governamental. – Alinhamento com tendências europeias e internacionais de aproximação entre ciência e inovação. – Oportunidade para corrigir problemas crónicos de gestão e organização interna da FCT. | Helena Canhão; Fernando Alexandre; João Rocha (com reservas); Madalena Alves; Teresa Firmino (reportagem anúncio) |
3.
Não é a primeira vez que Portugal enfrenta dilemas semelhantes. Nos anos 1960, discutiu-se a criação de um grande centro internacional de investigação – como um Instituto Oceanográfico apoiado pela NATO – defendido por Leite Pinto e António Gião, inspirado na ideia de “tratamento de choque” para impulsionar a ciência nacional. A proposta contrastava com a visão gradualista de António Gouveia Portela, favorável a fortalecer centros já existentes. Esse tensionamento entre visões reaparece hoje. (Brandão, 2017 [2012])
A postura pró-inovação na política científica portuguesa atual tem raízes em exercícios de definição de prioridades desde os anos 1980, influenciados por recomendações da OCDE e metodologias da UNESCO. Um estudo da JNICT de 1981, por exemplo, promovido por João Caraça e João de Deus Pinheiro, hierarquizou áreas estratégicas segundo carências de inovação e impacto no desenvolvimento, privilegiando I&D aplicada e setores produtivos específicos.
Essa lógica foi reforçada por programas como o PMCT (1987) – Programa Mobilizador de Ciência e Tecnologia da JNICT, e por sucessivos planos estratégicos – STRIDE, Plano Tecnológico, ENEI (este último, apostando na ideia de ‘especialização inteligente’) – que internalizaram orientações internacionais, promovendo especialização, coordenação centralizada, redução da infraestrutura pública autónoma e expansão da participação empresarial.
Muito do que Robert Merton (1957, 1970) diagnosticou como “deslocação de objetivos” (goal displacement) permanece atual: quando a ciência procura adaptar-se a imposições externas, introduz assimetrias no seu curso normal de desenvolvimento.[ii] O resultado é uma política científica em que a “seleção ex-ante” de áreas e setores tornou-se critério normativo, sustentando reformas que visam fundir ciência e inovação numa mesma arquitetura institucional. O risco é subordinar a ciência à lógica da inovação tecnológica e mercantil – algo já em curso no desenho de concursos, na avaliação de projetos, na evolução orçamental da FCT e da ANI e nos orçamentos universitários.
Ciência e inovação, embora interligadas, têm lógicas distintas. A ciência – sobretudo a fundamental e as humanidades – constrói-se no longo prazo, com imprevisibilidade de resultados e valor intrínseco do conhecimento. A inovação, especialmente empresarial, opera em prazos curtos, orienta-se para aplicações imediatas e depende de retorno mensurável. A cultura científica funda-se numa ética de objetividade, ceticismo organizado, comunalismo, universalismo e desinteresse, articulando valores epistémicos como coerência, clareza, imparcialidade e responsabilidade social. Fundir ambas numa lógica única significa reduzir o espaço da investigação fundamental e fragilizar áreas sem retorno imediato.
A experiência internacional confirma o alerta. O Research Excellence Framework no Reino Unido gerou hipercompetição, precariedade acadêmica e desinvestimento em áreas não lucrativas. Em França, desde os anos 2000, os pôles de compétitivité canalizam recursos para a inovação tecnológica regional em detrimento de laboratórios com vocação científica autónoma. Nos Países Baixos, o movimento Science in Transition denuncia a perda de liberdade acadêmica e a pressão produtivista.
No Brasil, a fusão do Ministério da Ciência com a Inovação e o das Comunicações, entre 2016 e 2020, levou ao desfinanciamento da pesquisa básica, causando a contração dos orçamentos de agências como a Capes e o CNPq. Em países como Chile (2018-2020) e México (2023), reformas nas agências de ciência enfraqueceram a autonomia institucional e reduziram a capacidade de formulação de políticas públicas específicas para a ciência – no caso mexicano, sem qualquer consulta pública.[iii]
Casos mais recentes, como o da Alemanha, com a criação da SPRIN-D | Federal Agency for Disruptive Innovation (2019), e do Reino Unido, com a ARIA | Advanced Research and Invention Agency (2023), diferem: são agências de ‘inovação disruptiva’ – eventualmente também de ciência aplicada, no caso mais expresso da ARIA – criadas ex novo, coexistindo com estruturas tradicionais de fomento científico. Embora possam dinamizar a translação de conhecimento e estimular tecnologias de alto risco e alto impacto, enfrentam críticas quanto à sustentabilidade do financiamento, à falta de transparência e ao risco indireto de condicionar as agendas científicas a prioridades tecnológicas e de mercado de curto prazo.
4.
O caso português dialoga com o brasileiro. Entre 2016 e 2025, a Capes sofreu retração de 45% nos valores empenhados, de R$ 7,77 milhões para R$ 3,26 milhões; essa queda fragiliza a base de formação de recursos humanos e compromete a sustentação da pós-graduação – pilar incontornável do tripé universitário brasileiro (ensino, pesquisa e extensão).
O CNPq, por sua vez, passou de R$ 1,60 milhão (máximo histórico de R$ 2,13 milhões em 2014) para R$ 1,80 milhão em 2024, o que representa um aumento de apenas 12% face à inflação (cálculo em valores deflacionados), enfraquecendo o apoio direto à pesquisa científica e às bolsas de produtividade. Em contrapartida, o FNDCT, gerido pela Finep, apresentou um crescimento de 84% – reforço que, porém, não necessariamente fortalece a ciência fundamental, dado o perfil empresarial da agência.
Essa reorientação de recursos reflete tendência mais ampla de reconfiguração do papel do Estado, substituindo a provisão coletiva por agendas de inovação orientadas ao mercado. Como alertara Sekera (2016) e Ranson & Stewart (1989), o bem comum – resultado de deliberação democrática, financiamento coletivo e implementação pública – perde centralidade quando métricas privadas definem prioridades.
Persistem ainda visões ultrapassadas, como o modelo linear de inovação herdado de William R. Maclaurin (1907-1959), engenheiro do MIT, e popularizado no pós-guerra, por meio do célebre Relatório Bush (Science, the Endless Frontier, 1945), que ignora a natureza interativa e não linear dos processos inovadores. Em contraste, estudos posteriores – em sociologia rural, gestão e difusão de inovações, bem como programas de estudo empírico como o Minnesota Innovation Research Program, 1983-1987) – demostraram já que a inovação é um processo não linear, marcado por ciclos de avanço e recuo, múltiplas trajetórias possíveis, negociações, redes e coalizões que se reconfiguram ao longo do tempo. (Van de Ven et al. 2000 [1989])
É uma perspectiva que envolve múltiplos atores, contextos dinâmicos, trajetórias divergentes e realimentações constantes, invalidando a visão de etapas rígidas e previsíveis, e que contrasta com a abordagem schumpeteriana dominante nas escolas de gestão, centrada no ciclo econômico de inovação-difusão-lucro extraordinário-queda do lucro-crise, que tende a enquadrar a inovação como ‘destruição criativa’ e motor macroeconômico previsível. Ao contrário, a evidência empírica enfatiza que a ‘jornada da inovação’ é contingente, aberta e sujeita a reorientações estratégicas constantes, mais dependente de interações e contextos do que de fases fixas ou inevitáveis.
Em qualquer caso, a questão da arquitetura institucional é central, reflete escolhas políticas. Extinguir a FCT dilui a política científica como política pública com identidade própria, substituindo-a por entidade polivalente, vulnerável a ciclos políticos e agendas externas. Se o objetivo fosse reforçar a articulação entre ciência e inovação, haveria caminhos menos disruptivos: manter a FCT como agência autónoma, dedicada à investigação fundamental e ao financiamento estruturante, e a ANI como promotora da inovação tecnológica e empresarial, fortalecendo a cooperação entre ambas e ampliando as relações universidade–empresa.
Quadro “Para Além da Fusão”: Alternativas e Garantias para a Política Científica
| Argumento | Recomendação |
| Falta de debate público e consulta prévia | Promover consultas públicas estruturadas, audiências parlamentares e envolvimento formal das associações científicas e acadêmicas antes da implementação de reformas estruturais. Reformas devem ser construídas com diálogo, participação e base em evidências, evitando decisões por decreto numa lógica gerencialista e tecnocrata. |
| Integração ciência–inovação reduz fragmentação | Criar estruturas de coordenação interinstitucional que preservem autonomia científica e assegurem sinergias operacionais sem perda de diversidade disciplinar. Como alternativa à fusão, manter a FCT como agência autônoma dedicada à investigação fundamental e a ANI como responsável pela inovação tecnológica e empresarial no Ministério da Economia, fortalecendo a articulação entre ambas. |
| Risco de subordinar a ciência a agendas de mercado | Garantir um orçamento protegido para a investigação fundamental, com critérios de avaliação que não dependam exclusivamente de métricas de impacto. |
| Potencial para alinhar prioridades com desafios estratégicos | Estabelecer um processo transparente de definição de prioridades, com participação de múltiplos stakeholders e revisões periódicas baseadas em evidências científicas. |
| Marginalização da investigação fundamental e áreas não lucrativas | Introduzir quotas ou linhas de financiamento dedicadas a ciências sociais, humanas e áreas emergentes sem retorno econômico imediato. Preservar a missão específica da FCT como financiadora estruturante destas áreas. |
| Possibilidade de financiamento plurianual estável | Formalizar compromissos plurianuais em lei ou contrato-programa, blindados contra alterações orçamentais discricionárias. |
| Perda de memória institucional e competências da FCT | Assegurar mecanismos de transição que mantenham equipas-chave, bases de dados e processos internos, com transferência ordenada de responsabilidades. |
| Ganhos operacionais e redução de redundâncias | Realizar auditorias de processos antes da fusão para identificar sobreposições e simplificar fluxos, sem criar novas camadas burocráticas. Reformas organizacionais devem incluir redução da burocracia, aumento da previsibilidade nos financiamentos, melhoria das taxas de aprovação e reforço das bolsas e carreiras científicas. |
| Incerteza sobre estrutura e transição | Divulgar um plano detalhado de implementação, com cronograma, organograma e regras para concursos e contratos em curso. |
| Alinhamento com tendências europeias/internacionais | Adaptar as melhores práticas internacionais ao contexto nacional, assegurando que não haja mera importação acrítica de modelos externos, e privilegiar arranjos institucionais que preservem as especificidades de cada política pública. |
5.
Reformas são necessárias – redução da burocracia, previsibilidade orçamental, critérios transparentes, proteção da ciência fundamental e das áreas não lucrativas, melhoria das taxas de aprovação e valorização das carreiras –, mas devem ser construídas com diálogo, participação e base em evidências, e não impostas por via tecnocrata. Preservar a autonomia e as missões específicas de cada agência é condição para que a articulação ciência-inovação sirva ao interesse público e ao bem comum.
Num contexto de crise climática, transição energética, revolução tecnológica e tensões geopolíticas, a ciência é mais essencial do que nunca para o bem-estar coletivo, a soberania e a democracia. Não há justiça social sem justiça cognitiva, nem coesão territorial sem conhecimento situado, nem futuro sustentável sem investimento estável e coerente em investigação e educação. Extinguir a FCT não é modernizar: é retroceder.
Qualquer reorganização da política científica deve ser precedida de avaliação independente, consulta pública e compromisso político de preservar a autonomia da ciência como bem comum, com direcionalidade clara quanto ao papel do Estado em proteger áreas que não são e não devem ser exclusivamente comercializáveis. Defender instituições científicas fortes e independentes não é capricho corporativo: é proteger o futuro do país.
*Tiago Brandão é professor visitante estrangeiro do bacharelado em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Referências
Almeida, Jorge (2025). “A mudança inesperada numa tarde de verão e as inquietações na ciência em Portugal”. Público, 3 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/03/ciencia/opiniao/mudanca-inesperada-tarde-verao-inquietacoes-ciencia-portugal-2142660
Barral, Duarte (2025). “Sobre a extinção da FCT e o futuro da investigação em Portugal”. Público, 7 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/07/ciencia/opiniao/extincao-fct-futuro-investigacao-portugal-2143088
Brandão, Tiago (2017 [2012]). Da organização da Ciência à política científica em Portugal (1910-1974). A emergência da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. Lisboa: Caleidoscópio. Publicação da sua Tese de Doutoramento intitulada «A Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (1967-1974). Organização da ciência e política científica em Portugal», NOVA-FCSH, 2012.
Canhão, Helena; Amaral, Alberto (2025). “A fusão da FCT com a Agência Nacional de Inovação é positiva?”. Expresso, 7 de agosto. https://expresso.pt/semanario/primeiro/a-abrir/duelo/2025-08-07-a-fusao-da-fct-com-a-agencia-nacional-de-inovacao-e-positiva–b7f3172f
Cerca, Nuno (2020). “O curioso caso das taxas de sucesso da FCT”. Público, 13 de novembro. https://www.publico.pt/2020/11/13/ciencia/noticia/curioso-caso-taxas-sucesso-fct-1938919.
Conde, João (2025). “Cativações recorde e dívidas malparadas: como a FCT se tornou o travão invisível da investigação”. Expresso, 29 de julho. https://amp-expresso-pt.cdn.ampproject.org/c/s/amp.expresso.pt/opiniao/2025-07-29-cativacoes-recorde-e-dividas-malparadas-como-a-fct-se-tornou-o-travao-invisivel-da-investigacao-8b2b576c
Ferreira, Ana (2025). “A extinção da ciência”. Público, 2 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/02/ciencia/opiniao/extincao-ciencia-2142717
Firmino, Teresa (2025a). “É o fim da FCT. Vem aí uma agência que casa a ciência com a inovação”. Público, 1 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/01/ciencia/noticia/fim-fct-vem-ai-agencia-casa-ciencia-inovacao-2142517
Firmino, Teresa (2025b). “Estudo para a reorganização da FCT não previa o seu fim nem a sua fusão”. Público, 10de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/10/ciencia/noticia/estudo-reorganizacao-fct-nao-previa-fim-fusao-2143322
Firmino, Teresa (2025c). “Extinção da FCT: do Porto a Faro, o que dizem os cientistas?”. Público, 11 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/11/ciencia/noticia/extincao-fct-porto-faro-cientistas-2143448
Gonçalves, Bruno Soares (2025). “FCT: Extinguir para inovar?”. Público, 1 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/01/ciencia/opiniao/fct-extinguir-inovar-2142527
Magalhães, Luís (2025). “Reformar = extinguir ou fundir? É inaceitável. Público, 18 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/18/ciencia/opiniao/reformar-extinguir-fundir-inaceitavel-2144039
Moreira, Cristina Faria (2025). “Governo extingue FCT e mais dez organismos na área da educação”. Público, 31 de julho. https://www.publico.pt/2025/07/31/sociedade/noticia/governo-extingue-fct-dez-organismos-area-educacao-2142463
Ramalho-Santos, João (2025). “Requiem pela FCT”. Público, 6 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/06/ciencia/opiniao/requiem-fct-2142715
Ramalho, Tiago (2025). Governo quer reorganizar FCT e incluir “inovação” na Lei da Ciência”. Público, 9 de julho. https://www.publico.pt/2025/07/09/ciencia/noticia/governo-quer-reorganizar-fct-incluir-inovacao-lei-ciencia-2139569
Rollo, Maria Fernanda (2025). “FCT: a extinção que subordina a ciência e ameaça o bem comum”. Público, 2 de agosto. https://www.publico.pt/2025/08/02/ciencia/opiniao/fct-extincao-subordina-ciencia-ameaca-bem-comum-2142550
Van de Ven, Andrew H., Angle, Harold L., & Poole, Marshall. S. (Eds.). (2000). Research on the Management of Innovation: The Minnesota Studies. New York, NY: Harper & Row, 1ª ed. 1989.
Ranson, Steward; Stewart, John (1989). Citizenship and Government: The Challenge for Management in the Public Domain. Political Studies, XXXVII, 5-24. https://doi.org/10.1111/j.1467-9248.1989.tb00262.x
Sekera, June (2020). The public economy: Understanding government as a producer. A reformation of public economics. Working-paper, WP 2020-01. London: UCL Institute for Innovation and Public Purpose. https://www.bu.edu/eci/2018/06/19/the-public-economy-understanding-government-as-a-producer-a-reformation-of-public-economics/
Notas
[i] Um estudo anterior sobre a reorganização da FCT sequer cogitava seu fim ou fusão (cf. Firmino, 2025b) e só durante o mês de agosto se divulgou, algo timidamente, um documento do Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação recomendando a integração do ecossistema de ciência e de inovação. De assinalar que toda a análise desse documento se baseia na escala TRL, que significa Technology Readiness Level, ou Nível de Maturidade Tecnológica, uma escala internacional (desenvolvida pela NASA, originalmente) e usada para medir o grau de desenvolvimento de uma tecnologia, desde a sua conceção teórica até à aplicação comercial. Evidência do viés pró-inovação na organização da Ciência, é importante notar, contudo, que a escala TRL não é aplicável a todas as áreas científicas: grande parte da investigação acadêmica, sobretudo em domínios não tecnológicos, não pode ser avaliada através desta métrica. (ex. Almeida, 2025)
[ii] O conceito de goal displacement (ou deslocamento de objetivos) aparece nos escritos sociológicos de Robert K. Merton em diferentes contextos, sendo particularmente relevante tanto na sociologia das organizações quanto na sociologia da ciência. Ocorre quando meios ou procedimentos formais passam a ser tratados como fins em si mesmos, seguidos com mais rigor do que os objetivos originais da instituição ou atividade. A noção está também presente na crítica mertoniana às distorções do ethos científico, especialmente quando valores normativos — como o desinteresse ou o comunalismo — são substituídos por interesses externos, como prestígio, recursos financeiros ou competição por prêmios. Nesta linha argumentativa, a inovação é um valor externo ao ethos científico, no máximo (e implicitamente) presente quando nos deparamos com rupturas epistemológicas (cf. Bachelard, ou revoluções científicas, se seguirmos Kuhn).
[iii] Cf. Fernando Gonzalez, “La nueva Ley de Ciencia es oficial en México, el Conacyt se convierte en Conahcyt” Maio de 2023. https://es.wired.com/articulos/el-conacyt-se-convierte-en-conahcyt
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA





















