Antônio Cícero, o nosso estoico

Banco Alan, Porta, 2016
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Por ANDRÉ RICARDO DIAS*

Em sua carta de despedida: a vida à mão; em um abraço, um país

Na obra de Antônio Cícero a filosofia e o seu estudo ganharam espaço próprio através do cinema, da literatura e da música. No livro Poesia e filosofia (2012), diz: “A poesia está no poema; a filosofia está nas ideias”. Ali, discorre sobre a materialidade da poesia e o caráter dispensável da escrita para a filosofia. Sustenta este argumento recorrendo aos exemplos de Sócrates e Pitágoras. Enquanto com estes a filosofia está inscrita na alma, é meio, segundo a citação trazida de W.H. Auden, o poeta não é alguém que tem algo de importante a dizer, mas quem gosta das palavras – curti-las. Ou ainda, com Mallarmé, para quem “um poema não se escreve com ideias, e sim com palavras”.

Entretanto, seu ponto de contato entre filosofia e poesia se dá de variadas formas, dentre outros aspectos, estruturalmente, na racionalidade – métrica –, na lógica – precisão – e na coerência das ideias – concatenação.

Sua geração, na continuação do pós-tropicalismo, passou da sobriedade e do medo que caracterizaram este influxo tropicalista nos anos de chumbo, para o desprezo desdenhoso das estruturas; gente da contracultura, do noturno, do marginal, do lixo. A obra de Antônio Cícero, talvez, faça um desvio da forma vulgar da contracultura marginal, mantendo um elo a este movimento através dos aspectos e das temáticas soturnas, desencantadas; como mais tarde, em Virgem, são as luzes que se ascendem, mas não por você – sequer precisam de você.

Poesia

Há algo de poesia concreta no manuseio arteiro do verbo guardar em seu poema homônimo, aqui, tomado enquanto “mirar, vigiar”, a antítese daquilo que se “perde de vista”: “Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que se quer guardar”.

Ainda em Virgem, filosofia e poesia no verso reto: “As coisas não precisam de você”.

Em Fullgás, cria um neologismo “supermoderno” que transita entre a fugacidade do instante e um ritmo pop full gas à-todo-vapor.

O arquétipo da vida sóbria e prazerosa como espelho de sua obra o fizeram uma figura singular de nossa intelectualidade, transitando entre o conforto mediano proporcionado por nossa vida pequeno-burguesa e o olhar atento ao hit pop do momento não só da indústria fonográfica, mas como metáfora da insanidade desenfreada de nosso tempo. Igual conjugação encontramos desde a noturna Inverno, em que, “pouco antes de o Ocidente se assombrar” se deu o arroubo de um romantismo substituído pelo melancólico mundo desencantado, a uma leve frivolidade à francesa: “os momentos felizes não estão escondidos, nem no passado, nem no futuro”.

O “agoral”

No livro “O mundo desde o fim” (1995), coletânea de ensaios de caráter filosófico, a busca por um sentido e um cerne da modernidade, a saber, negativo,[i] o faz transitar, em seus termos, entre Descartes (“Meu pensamento”) e Heidegger (“a Apócrise Incipiente”), passando, como de costume, por Kant (“a Apercepção Abstrata”), Hegel (“o Absoluto Abstrato e o Absoluto Concreto) e Marx (“Gemeinschaft e Gesellschaft”).

Na continuidade destas linhas, faz da filosofia se não uma chave de interpretação, um meio para o exercício de compreensão da formação cultural brasileira. Se é próprio do moderno a quebra dos absolutismos históricos, nossa cultura é moderna, pois o moderno é negatividade por excelência feita contemporânea.

Em antecipação nossa, encontramos em seu pensamento a clivagem entre modernidade (o momento em sua queda no positivo, ou normativo) e o substantivo moderno erigido a conceito. Naquele ponto em que a cultura suporta a carga do contemporâneo – a positividade – que se constitui enquanto acidente e contingência, abra-se espaço para a ruptura; em um de seus subtítulos, a síntese: o moderno é “O Agoral”.

Com efeito, caberia a cada época a sua “supermodernidade”: “o moderno somente pode ser superado por outro moderno (…) não se pode consistentemente empregar o termo “pós-moderno” nem aqui nem em nenhum outro contexto”. À propósito, o bom tempo da vanguarda se dá quando chega à sua conclusão. Há um filósofo a guardar.

Diz Antônio Cícero que “o artista é esquisito”, acrescendo ao nosso significado corrente do termo o latino “exquisitus, de requintado”. E como “centro negativo do mundo”, nosso artista deu-se a si mesmo uma finitude eudaimônica, o que requeriria pouco mais que lucidez e sobriedade. A isto, o poeta acrescenta a amizade. Em sua carta de despedida: a vida à mão; em um abraço, um país.

*André Ricardo Dias é psicanalista e professor de filosofia na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

Nota


[i] “A concepção moderna do mundo é insuperável, pois não é concebível ir-se “além” da negação negante ou da apócrise” (p. 164).


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