Sueli Costa

Ceri Richards, Natureza morta com música, 1933
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Por ANDRÉ RICARDO DIAS*

Comentário sobre a trajetória da compositora, récem-falecida

Alguém que compôs “Coração Ateu”, “Jura Secreta”, “Face a Face”, “20 anos blue”, só pode ter um céu para si. Foi o que pensei, quando soube da morte de Sueli Costa. Por isso, escrevo algumas linhas sobre a compositora tão cara à memória recente da música brasileira.

As vozes que ouvíamos interpretar as canções da MPB, num período de hegemonia da televisão e do rádio, carregavam melodias que embalaram a vida no Brasil transcorrida na frente das TVs, exibindo novelas e suas trilhas sonoras. Dessa forma, a nossa estética audiovisual foi carregada pelas palavras e canções que falavam do amor e seus impasses, pura e simplesmente.

Sueli Costa, compositora, melodista e musicista, faz parte desse rol de músicos que, a partir dos anos 1970, compuseram, melodiaram e cantaram letras que tratam de afetos ligados a um romantismo bastante particular, mais próximo do grande público. Músicas que, de certo modo, abriam espaço em meio ao domínio do samba e da bossa nova, ao tempo em que, carregando essas bases, abarcaram as referências do pop no final dos anos 1960. São músicas que conseguem ecoar desde as baladas de amor da música francesa e italiana dos anos 50 e 60, à gêneros do jazz, isto, enquanto mantém forte laço com a poesia moderna. Em tempo: veja-se a própria Sueli Costa ao piano interpretando “20 anos blue”. Impossível não pensar de imediato em nomes como Nina Simone e Ella Fitzgerald.

De Cacaso à Antônio Cícero, podem ser poucos os compositores que se assumem poetas, ocupando de modo eletivo essa cadeira dentre a produção literária. Entretanto, podemos nós, leitores e ouvintes, reivindicar a posição de poeta para compositores como Fausto Nilo, Sueli Costa, Abel Silva, Paulo César Pinheiro, Tite Lemos – estes, parceiros de Sueli Costa em vários de seus trabalhos – e tantos outros.

Apenas para pincelar o argumento, vejamos as composições da artista, tais como “Coração Ateu”. Com sua escrita dura, de versos de difícil manejo, embalados por uma melodia triste, porém acolhedora, carrega, ainda, a forma que se vez padrão destas composições. Em “Codilheira”, parceria com Paulo César Pinheiro, encontramos estes versos: “Eu quero ler o coração dos comandantes, condenando os seus soldados pela orgia dos farsantes (…) Eu quero ler na sagração dos estandartes, uma frase escrita a fogo pelo punho de deus Marte”. Certa herança simbolista cravada na escrita da poesia moderna.

Em “Face a face”, composta com Cacaso, as palavras se digladiam pela voz do narrador-personagem. Este, encontrado em pleno embate com seus pequenos destinos e “trapaças da sorte”, o que se faz em um desafio métrico pelo tom de uma melodia precisa. Um romântico em fuga “girando feito piorra, até que a mágoa escorra – até que a raiva desate”.

São versos nem sempre simples, mas que foram ouvidos com a simplicidade direta e certeira do cancioneiro que maneja e entende bem os afetos e os sentimentos do nosso povo. Em “Cão sem dono”, poderíamos ouvir as vozes de Maísa ou Dolores Duran cantando os lamentos resignados dos seus versos:

É nas noites que eu passo sem sono
Entre o copo, a vitrola e a fumaça
Que ergo a torre do meu abandono
E que caio em desgraça
(…)
Solidão é o carrasco sombrio
E a saudade a vergasta
Se eu cantar a alegria sai falsa
Se eu calar a tristeza começa”

Ao fim, a personagem prefere a dança, se ergue, se ajeita, vai, mas se cala. Versos certeiros para um imaginário do povo brasileiro.

O mercado fonográfico e a mídia difundiram tal gênero da MPB como música romântica, como dizia-se em décadas passadas. Um gênero que ganha essa pecha muito mais pela musicalidade de suas melodias e o estilo de suas intérpretes no país das cantoras, como se dizia. Hoje, nos permitimos leituras e audições mais austeras. O amor pode até ter ido para outro lugar. O que não significa que tais versos tenham perdido qualquer sentido, pois são lembrados e reproduzidos entre o público atravessando as últimas gerações. Talvez, apenas nomeamos de outras formas (ou evitamos simbolizar?) aquele conteúdo afetivo das composições.

A partida de Sueli Costa também evoca o esquecimento e a negligência para com o compositor de música popular brasileira, um verdadeiro problema nacional. Num país que gosta de partidas e tem uma relação esquisita com a vida, a trajetória de Sueli Costa bem que poderia, agora, ganhar o destaque que não teve. Se dermos crédito a um dito popular, talvez, isto tenha se dado porque o auge de sua carreira aconteceu numa época em que, dizia Tom Jobim, o país não perdoava quem fazia sucesso.

*André Ricardo Dias é professor de filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IF Sertão PE).

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