Controle penal do capital

Ricardo Hamilton, Crescimento e forma, 2014
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Por MARCO MONDAINI*

Prefácio ao livro recém-lançado de Silmara Mendes

1.

Seja por intermédio de Goethe, no Fausto de 1790 (“Tudo que existe merece perecer”), ou de Marx e Engels, no Manifesto Comunista de 1848 (“Tudo que é sólido desmancha no ar”), uma parcela da modernidade soube expressar a finitude da existência humana, bem como a historicidade que atravessa o ser social e o conjunto das suas manifestações.

Entretanto, uma outra parcela da mesma modernidade sempre se esforçou por fazer crer que o mundo oriundo daquilo que Eric Hobsbawm definiu como “dupla revolução” (Revolução Francesa e Revolução Industrial) e suas instituições, após uma série de processos socioeconômicos e ideopolíticos, deveriam ser devidamente naturalizados.

Os exemplos disso não são poucos, a começar pelo permanente trabalho de naturalização da desigualdade social levado a cabo nos marcos do modo de produção capitalista, como que a ignorar a existência de um certo clássico escrito por Jean-Jacques Rousseau ainda no ano de 1755: O discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.

Instituição criada concomitantemente à afirmação e expansão do capitalismo na parte do globo costumeiramente chamada de ocidental, a prisão sempre foi observada por um senso comum punitivista, cada vez mais expressivo hoje em dia, como tendo um caráter desprovido de historicidade, com raízes que se confundiriam com os primórdios da humanidade – uma expressão geralmente utilizada quando da ausência de referências cronológicas mais precisas.

Tal qual a desigualdade social, para o campo da modernidade denominado por Max Horkheimer de Teoria Tradicional, o sistema prisional seria inato às sociedades humanas, carregando em si as marcas de um roteiro naturalizador da experiência humana, a saber: por sempre terem existido, as prisões sempre existirão.

2.

Neste Controle penal do capital: a era do encarceramento em massa no Brasil, a assistente social, professora e doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, Silmara Mendes, apresenta ao público leitor uma importante contribuição no sentido de desnaturalizar o sistema prisional, com os pés apoiados na Teoria Crítica e o olhar direcionado à realidade brasileira.

Para tanto, a autora reuniu a experiência de quem conheceu nas suas profundezas o sistema prisional do estado de Alagoas (na condição de ex-diretora do Presídio Feminino Santa Luzia, ex-diretora do Núcleo Estadual de Atendimento Socioeducativo da Secretaria de Justiça e Defesa Social e ex-Diretora do Sistema Penitenciário – DESIPE), formação teórico-metodológica no campo marxista temperado pelas reflexões lukacsianas e esforço de investigação social de quem tem o faro de pesquisadora na busca das fontes a serem utilizadas.

Assentada nesse tripé, Silmara Mendes procurou demonstrar no seu Controle penal do capital como as determinações ontológicas do capital incidem diretamente sobre o processo de encarceramento em massa iniciado nos Estados Unidos da América, na década de 1980, e aportado no Brasil na virada do século XX ao século XXI.

Com este livro, o público leitor poderá compreender melhor como, num intervalo de tempo de aproximadamente três séculos e meio, a função da prisão foi modificada significativamente dentro do modo de produção capitalista – da sua invenção naquele que viria a ser o primeiro país capitalista do mundo (a Inglaterra), no século XVII, à hiperinflação carcerária iniciada nos Estados Unidos da América sob a presidência do republicano Ronald Reagan, na década de 1980.

Nas primeiras houses of correction e workhouses britânicas, o objetivo fundamental da prisão era a disciplinarização de corpos e almas de trabalhadores pobres que se recusavam à submissão a novas formas de trabalho, após sua expulsão forçada do meio rural para as novas cidades tornadas aceleradamente espaços de produção fabril.

No capitalismo em crise, na sequência dos trinta anos dourados do pós-Segunda Guerra Mundial, a prisão transforma-se num espaço de contenção das classes subalternas sobrantes em decorrência, por um lado, da substituição do modelo fordista pelo modelo toyotista de produção e seu corolário, o processo de restruturação produtiva; e, por outro lado, da queda do Welfare State keynesiano diante da ofensiva neoliberal e da financeirização da economia em termos globais.

Dessa refuncionalização do sistema prisional como resultado da crise do capitalismo, resultará a reconfiguração do seu aparelho estatal e das suas formas de administração da pobreza. O imperativo da criminalização desta última trazia no seu bojo a necessidade da constituição de um Estado Penal direcionado ao controle social de uma parcela da sociedade por meio de critérios essencialmente de classe e raça, o que, na particularidade brasileira analisada meticulosamente neste livro, será potencializado pelo seu passado escravista colonial.

Um Estado Penal enraizado num passado que insiste em não passar, o qual, nos marcos de um processo de encarceramento em massa que nos assola, localiza a prisão como a última trincheira da imposição do sofrimento pelo capitalismo.

*Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da UFPE e apresentador do programa Trilhas da Democracia. Autor, entre outros livros, de A invenção da democracia como valor universal (Alameda) [https://amzn.to/3KCQcZt]

Referência


Silmara Mendes. Controle penal do capital: a era do encarceramento em massa no Brasil. São Paulo, Editora Dialética, 2025, 308 págs. [https://amzn.to/4ors9Q3]


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