Um banco laranja

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

O vil metal virou marca desejante, e o que ele deseja é você

Quando era discreto o charme da burguesia, as casas bancárias eram discretas também. Seus donos se compraziam no anonimato. No máximo, permitiam que gravassem, em letras de bronze, pequenas, o nome do estabelecimento na fachada lateral do edifício, sem espalhafato. Bastava um sobrenome, um topônimo, nada mais. O comércio do dinheiro se fazia em silêncio. Banqueiros fugiam dos holofotes e dos logotipos vistosos. Não queriam nada com a fama. A fortuna os satisfazia.

Agora, a paisagem fiduciária mudou. Olhando para os comerciais de banqueiros na TV, a gente até se espanta. Há peças verdadeiramente espetaculares – espetacular, aqui, no sentido que o filósofo Guy Debord emprestou à palavra (emprestou sem juros): “O espetáculo é o capital em tamanho grau de acumulação que se torna imagem”. Os efeitos especiais de vídeo valem mais do que mil letras de câmbio. A pecúnia perdeu a inibição. O vil metal virou marca desejante, e o que ele deseja é você.

As empresas que mercadejam bufunfa ofertam paixão para saciar a demanda do cliente. Desejam emprestar sentido à subjetividade do freguês (nesse caso, “emprestar” com juros). Pretendem carimbar um logotipo nos sonhos pessoais que você acalenta, nos seus projetos. Querem ser sócias das modestas cobiças dos milhões de seres que portam cartões de crédito no bolso ou no celular. Bancos, agora, têm sex appeal.

Nestes dias em que espoucam as fluorescências festivas de final de ano, uma dessas organizações privadas, com agências instaladas em cidades e cidadezinhas, vem divulgando filmes promocionais para nos dizer que seu coração é “feito de futuro”. A campanha é bem-feita. O slogan, realmente espetacular (com royalties imateriais para Guy Debord). Um achado publicitário, uma fórmula convidativa para celebrar o réveillon.

Todo mundo tem, bem lá no fundo da alma endividada, a aspiração de ter lugar no futuro. Todo mundo almeja habitar o futuro. E, apresentada dessa forma tentadora, a ideia de um banco “feito de futuro” vem investida de força mágica, anímica, principalmente quando nos faz crer que ser “feito de futuro” é uma ambição que não cobra de ninguém o preço de jogar fora o passado. Futuro e passado se dão as mãos e se fortalecem, segundo o mantra do comercial, que, com isso, consegue fisgar a imaginação de quem quer perder nem o passado, nem o futuro e nem o presente.

Para melhor propagar sua receita de fusão temporal, o anunciante financeiro contratou a atriz Fernanda Montenegro, cuja magnitude paira acima do tempo. Com uma história pessoal mais rica do que todo o capital financeiro de todo o século XX, acrescido aí o primeiro quinto do século XXI, a grande dama das artes brasileiras declara que nasceu e renasceu muitas vezes, na pele das personagens que encarnou. Ela convence e arrebata. Como suas personagens fazem parte da memória afetiva de tanta gente, o espectador, sedento de esperança, ávido por uma fábula que dê conta de renovar suas energias depreciadas, aceita se emocionar.

O comercial foi gravado num teatro espaçoso e sóbrio. O lugar está vazio. Não está propriamente às escuras; muitos pontos de luz em tons quentes, pontilhando as frisas, criam um ambiente de aconchego. Na fala cadenciada, a biografia da atriz vai se entrelaçando com a história do banco que a contratou. Ela declama frases fortes: “Eu me transformei muitas vezes para ser eu mesma”. O duplo sentido logo se estabelece. Será que fala de si? Ou será que fala da banca?

“Me fiz pedra”, ela diz, mas logo trata de qualificar: “Em movimento”. A ênfase que ela aporta a esse “em movimento” elucida tudo. Ela se refere a uma pedra que rola, que não se acomoda. O gesto das mãos, com os indicadores girando um em torno do outro, reforçam a mensagem já impregnada ao imaginário contemporâneo: rocha (rock) e mudança (and roll).

A partir daí, a ambiguidade dá lugar a propaganda desinibida. A rocha tem menos a ver com a grande dama do que com a avantajada empresa bancária. Itaú, como se sabe, significa “pedra preta” em tupi-guarani. É essa rocha pretende “atravessar o tempo” – mudando cor. A pedra preta não quer mais ser preta. A pedra preta quer ser laranja.

A palavra “laranja”, porém, traz um constrangimento, por assim dizer, discreto. Quando associado a operações contábeis, o termo designa uma fraude: o “laranja” é alguém que empresta o nome (a troco de uma ninharia) para um negócio que beneficiará um espertalhão, cujo nome não vai aparecer. Se é assim, por que um banco faz tanta publicidade para ser visto como laranja? Muito simples: para ser dono de uma cor quente, positiva, e, com ela, simplificar sua comunicação. Você vai ver essa frequência cromática e vai pensar naquela agência bancária.

Laranja, por que não? Há cores piores. Há concorrentes que são vermelhos, e não há correntista que proteste quando deposita seus caraminguás no vermelho. Ninguém liga que a conta fique no vermelho. Então, viva o laranja. Se você fizer as contas, verá que vai sair barato.

Feliz ano novo, seja qual for a sua cor.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Valerio Arcary José Machado Moita Neto Ronald León Núñez Alexandre de Freitas Barbosa Eugênio Bucci Renato Dagnino José Micaelson Lacerda Morais Michael Roberts Denilson Cordeiro Slavoj Žižek Marilena Chauí Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Abramovay Everaldo de Oliveira Andrade Chico Alencar Igor Felippe Santos Jean Pierre Chauvin Samuel Kilsztajn Juarez Guimarães Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jorge Branco Tadeu Valadares Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Guimarães Lima Bento Prado Jr. Manuel Domingos Neto Marcos Aurélio da Silva Armando Boito Dênis de Moraes Priscila Figueiredo João Paulo Ayub Fonseca Leda Maria Paulani Ladislau Dowbor Gabriel Cohn Walnice Nogueira Galvão Marcelo Módolo Thomas Piketty Carla Teixeira Milton Pinheiro Eliziário Andrade Michel Goulart da Silva Remy José Fontana Chico Whitaker Kátia Gerab Baggio Leonardo Boff Claudio Katz Marjorie C. Marona Ari Marcelo Solon Daniel Afonso da Silva Antonio Martins Luciano Nascimento João Lanari Bo Daniel Costa Gilberto Lopes Tarso Genro Osvaldo Coggiola Luiz Eduardo Soares Anselm Jappe Benicio Viero Schmidt José Dirceu Francisco Pereira de Farias Rodrigo de Faria Sandra Bitencourt Fernando Nogueira da Costa Fábio Konder Comparato Julian Rodrigues Jorge Luiz Souto Maior Luiz Werneck Vianna Airton Paschoa Lucas Fiaschetti Estevez Luis Felipe Miguel José Geraldo Couto Manchetômetro Maria Rita Kehl Valerio Arcary João Feres Júnior Jean Marc Von Der Weid Andrés del Río Ricardo Antunes André Márcio Neves Soares Marcus Ianoni Luiz Roberto Alves Celso Favaretto Rafael R. Ioris Leonardo Sacramento Paulo Martins Eleonora Albano José Costa Júnior Francisco Fernandes Ladeira Gerson Almeida Antonino Infranca Atilio A. Boron João Adolfo Hansen Paulo Nogueira Batista Jr Liszt Vieira Bruno Machado Eduardo Borges Alexandre de Lima Castro Tranjan Afrânio Catani Vladimir Safatle Leonardo Avritzer Eleutério F. S. Prado Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Renato Martins Henri Acselrad Lorenzo Vitral Salem Nasser José Luís Fiori Luiz Marques João Sette Whitaker Ferreira Yuri Martins-Fontes Caio Bugiato Annateresa Fabris Bernardo Ricupero Paulo Capel Narvai Otaviano Helene Andrew Korybko João Carlos Loebens Marcos Silva Boaventura de Sousa Santos Luís Fernando Vitagliano Henry Burnett Flávio Aguiar Antônio Sales Rios Neto Francisco de Oliveira Barros Júnior Mário Maestri Marilia Pacheco Fiorillo Alysson Leandro Mascaro Carlos Tautz Celso Frederico Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Gilberto Maringoni Dennis Oliveira Matheus Silveira de Souza Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre Aragão de Albuquerque Vanderlei Tenório Ricardo Fabbrini Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eugênio Trivinho Heraldo Campos Tales Ab'Sáber André Singer Paulo Fernandes Silveira Mariarosaria Fabris Ronald Rocha Michael Löwy Berenice Bento Elias Jabbour Flávio R. Kothe Daniel Brazil Ricardo Musse Rubens Pinto Lyra José Raimundo Trindade Luiz Bernardo Pericás Lincoln Secco João Carlos Salles Fernão Pessoa Ramos Érico Andrade Vinício Carrilho Martinez

NOVAS PUBLICAÇÕES