A contração do Ocidente

Imagem: Suzy Hazelwood
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS*

É tão difícil imaginar o Ocidente como um espaço subalterno como imaginá-lo numa relação igualitária e pacífica com outros espaços geopolíticos

O que os ocidentais designam por Ocidente ou civilização ocidental é um espaço geopolítico que emergiu no século XVI e se expandiu continuamente até ao século XX. Na véspera da Primeira Guerra Mundial, cerca de 90% do globo terrestre era ocidental ou dominado pelo Ocidente: Europa, Rússia, as Américas, África, Oceania e boa parte da Ásia (com parciais exceções do Japão e da China). A partir de então o Ocidente começou a contrair: primeiro com a revolução Russa de 1917 e a emergência do bloco soviético, depois, a partir de meados do século, com os movimentos de descolonização.

O espaço terrestre (e logo depois, o extraterrestre) passou a ser um campo de intensa disputa. Entretanto, o que os ocidentais entendiam por Ocidente foi-se modificando. Começara por ser cristianismo, colonialismo, passando a capitalismo e imperialismo, para se ir metamorfoseando em democracia, direitos humanos, descolonização, auto-determinação, “relações internacionais baseadas em regras” – tornando sempre claro que as regras eram estabelecidas pelo Ocidente e apenas se cumpriam quando servissem os interesses deste – e, finalmente, em globalização.

Em meados do século passado, o Ocidente havia encolhido tanto que um conjunto de países recém-independentes tomou a decisão de não se alinhar nem com o Ocidente nem com o bloco que emergira como seu rival, o bloco soviético. Assim se criou, a partir de 1955-61, o Movimentos dos Não-Alinhados. Com o fim do bloco soviético em 1991, o Ocidente pareceu passar por um momento de entusiástica expansão. Foi o tempo de Mikhail Gorbatchov e o seu desejo de a Rússia integrar a “casa comum” da Europa, com o apoio de George W. Bush pai, um desejo reafirmado por Vladimir Putin quando assumiu o poder.

Foi um período histórico curto, e os acontecimentos recentes mostram que, entretanto, o “tamanho” do Ocidente sofreu uma drástica contração. No seguimento da guerra da Ucrânia, o Ocidente decidiu, por sua própria iniciativa, que só seria ocidental quem aplicasse sanções à Rússia. São neste momento cerca de 21% dos países membros da ONU, o que não chega a ser 15% da população mundial. A continuar por este caminho, o Ocidente pode mesmo desaparecer. Várias questões se levantam.

 

Contração é declínio?

Pode pensar-se que a contração do Ocidente o favorece porque lhe permite focar-se sobre objetivos mais realistas com mais intensidade. A leitura atenta dos estrategistas do país hegemónico do Ocidente, os EUA, mostra, pelo contrário, que, sem aparentemente se darem conta da flagrante contração, mostram uma ambição ilimitada. Com a mesma facilidade com que preveem poder reduzir a Rússia (a maior potência nuclear) a uma ruína ou a um estado vassalo, preveem neutralizar a China (a caminho de ser a primeira economia mundial) e provocar em breve uma guerra em Taiwan (semelhante à da Ucrânia) com esse objetivo. Por outro lado, a história dos impérios mostra que a contração vai de par com declínio e que esse declínio é irreversível e implica muito sofrimento humano.

No estágio atual, as manifestações de fraqueza são paralelas às de força, o que torna a análise muito difícil. Dois exemplos contrastantes. Os EUA são a maior potência militar do mundo (ainda que não tenham ganho nenhuma guerra desde 1945) com bases militares em pelo menos 80 países. Um caso extremo de dominação é o da sua presença no Gana onde, por acordos estabelecidos em 2018, os EUA usam o aeroporto de Accra sem qualquer controle ou inspeção, os soldados norte-americanos não precisam sequer de passaporte para entrar no país, e gozam de imunidade extraterritorial, ou seja, se cometerem algum crime, por mais grave, não podem ser julgados pelos tribunais do Gana. Em sentido contrário, os milhares de sanções à Rússia estão, por agora, a causar mais dano no mundo ocidental do que no espaço geopolítico que o Ocidente está a construir como não-ocidental. As moedas de quem parece estar a ganhar a guerra são as que mais se desvalorizam. A inflação e a recessão que se avizinham levam o CEO da JP Morgan, Jamie Dimon, a afirmar que se aproxima um furacão.

 

Contração é perda de coesão interna?

A contração pode efetivamente significar mais coesão, e isso é bem visível. A liderança da União Europeia, isto é a Comissão, tem sido nos últimos vinte anos muito mais alinhada com os EUA que os países que integram a União. Viu-se com a viragem neoliberal e o apoio entusiasta à invasão do Iraque por parte de Durão Barroso e vemos agora com Ursula von der Leyen transformada em subsecretária de defesa dos EUA. A verdade é que esta coesão, se é eficaz na produção de políticas, pode ser desastrosa na gestão das consequências delas.

A Europa é um espaço geopolítico que desde o século XVI vive dos recursos de outros países que direta ou indiretamente domina e a quem impõe a troca desigual. Nada disso é possível quando o parceiro é os EUA ou os aliados deste. Além disso, a coesão é feita de incoerências: afinal a Rússia é o país com um PIB inferior ao de muitos países da Europa ou é uma potência que quer invadir a Europa, uma ameaça global que só pode ser travada com o investimento que já ronda cerca de 10 mil milhões de dólares em armas e segurança por parte dos EUA num país distante de que pouco restará se a guerra continuar por muito tempo?

A contração ocorre por razões internas ou externas? A literatura sobre o declínio e fim dos impérios mostra que, salvo os casos excepcionais em que os impérios são destruídos por forças externas – caso dos impérios Azteca e Inca com a chegada dos conquistadores espanhóis – dominam, em geral, os fatores internos, ainda que o declínio possa ser precipitado por fatores externos. É difícil destrinçar o interno do externo, e a específica identificação é sempre mais ideológica que outra coisa. Por exemplo, em 1964 o conhecido filósofo conservador norte-americano James Burnham publicava um livro intitulado O suicídio do Ocidente. Segundo ele, o liberalismo, então dominante nos EUA, era a ideologia desse declínio. Para os liberais da época, o liberalismo era, pelo contrário, a ideologia que permitiria uma nova hegemonia mundial ao Ocidente, mais pacífica e mais justa.

Hoje, o liberalismo morreu nos EUA (domina o neoliberalismo, que é o seu oposto) e mesmo os conservadores da velha guarda foram totalmente superados pelos neoconservadores. É por isso que Henry Kissinger (para muitos, um criminoso de guerra) incomodou os prosélitos anti-Rússia ao pedir negociações de paz em Davos. Seja como for, a guerra da Ucrânia é o grande acelerador da contração do Ocidente. Uma nova geração de países não alinhados está a emergir, de facto alinhados com a potência que o Ocidente quer isolar, a China. Os BRICS, a Organização para a cooperação de Xangai, o Fórum Económico Euroasiático são, entre outras, as novas faces do não-ocidente.

 

O que vem depois?

Não sabemos. É tão difícil imaginar o Ocidente como espaço subalterno no contexto mundial como imaginá-lo numa relação igualitária e pacífica com outros espaços geopolíticos. Apenas sabemos que para quem manda no Ocidente qualquer destas hipóteses é impossível ou, se possível, apocalíptica. Por isso se multiplicam as reuniões nos últimos meses, do Fórum Económico de Davos (Maio) à mais recente reunião do grupo Bilderberg (Junho). Nesta última, em que participaram 5 portugueses, dos 14 temas, 7 tinham a ver diretamente com os rivais do Ocidente. Saberemos o que discutiram e decidiram seguindo atentamente as capas de The Economist dos próximos meses.

*Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Lanari Bo Ricardo Antunes Slavoj Žižek Francisco de Oliveira Barros Júnior Andrés del Río Marcos Aurélio da Silva Liszt Vieira João Carlos Loebens Marilia Pacheco Fiorillo Valerio Arcary Luiz Werneck Vianna André Márcio Neves Soares Thomas Piketty Anselm Jappe Leonardo Boff Maria Rita Kehl Claudio Katz Leda Maria Paulani Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleutério F. S. Prado Ari Marcelo Solon Bruno Fabricio Alcebino da Silva Michel Goulart da Silva Ricardo Fabbrini Matheus Silveira de Souza José Micaelson Lacerda Morais Paulo Capel Narvai Flávio R. Kothe Paulo Sérgio Pinheiro José Dirceu Samuel Kilsztajn Daniel Brazil João Feres Júnior Luciano Nascimento José Raimundo Trindade Antônio Sales Rios Neto Manchetômetro Lincoln Secco Luiz Eduardo Soares Mariarosaria Fabris Michael Roberts Jorge Branco João Sette Whitaker Ferreira Francisco Pereira de Farias Berenice Bento Fernando Nogueira da Costa Julian Rodrigues Denilson Cordeiro Luiz Renato Martins Walnice Nogueira Galvão Osvaldo Coggiola Bento Prado Jr. Renato Dagnino Gabriel Cohn Anderson Alves Esteves Tales Ab'Sáber Marjorie C. Marona Paulo Nogueira Batista Jr Milton Pinheiro Ronald Rocha Juarez Guimarães Marcelo Guimarães Lima Vanderlei Tenório Fernão Pessoa Ramos Andrew Korybko José Costa Júnior Michael Löwy João Adolfo Hansen Sergio Amadeu da Silveira Eugênio Trivinho Jean Marc Von Der Weid Caio Bugiato Jean Pierre Chauvin Elias Jabbour Marcos Silva Annateresa Fabris José Geraldo Couto Luiz Carlos Bresser-Pereira Dênis de Moraes Chico Alencar Celso Frederico Gilberto Maringoni Érico Andrade Antonio Martins Ronald León Núñez Boaventura de Sousa Santos Armando Boito Heraldo Campos Jorge Luiz Souto Maior Antonino Infranca Kátia Gerab Baggio Flávio Aguiar Remy José Fontana Airton Paschoa José Luís Fiori Mário Maestri Bernardo Ricupero Atilio A. Boron Lorenzo Vitral Otaviano Helene Plínio de Arruda Sampaio Jr. Daniel Afonso da Silva Alexandre Aragão de Albuquerque Manuel Domingos Neto Ladislau Dowbor Priscila Figueiredo João Paulo Ayub Fonseca Marcelo Módolo Bruno Machado Vinício Carrilho Martinez Rafael R. Ioris Luiz Roberto Alves Luiz Bernardo Pericás Eliziário Andrade Luiz Marques João Carlos Salles Benicio Viero Schmidt Ricardo Abramovay Chico Whitaker Dennis Oliveira Lucas Fiaschetti Estevez Rodrigo de Faria Everaldo de Oliveira Andrade Celso Favaretto Gilberto Lopes Carla Teixeira Paulo Martins Ricardo Musse Vladimir Safatle Fábio Konder Comparato Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eleonora Albano Yuri Martins-Fontes Igor Felippe Santos Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Sacramento Tarso Genro Sandra Bitencourt Luís Fernando Vitagliano Afrânio Catani Gerson Almeida Tadeu Valadares Luis Felipe Miguel Henri Acselrad Alysson Leandro Mascaro Henry Burnett Paulo Fernandes Silveira Marilena Chauí Eduardo Borges Salem Nasser Francisco Fernandes Ladeira Carlos Tautz Ronaldo Tadeu de Souza Daniel Costa José Machado Moita Neto André Singer Rubens Pinto Lyra Marcus Ianoni Eugênio Bucci Leonardo Avritzer

NOVAS PUBLICAÇÕES