Por DANIEL SANTIAGO B. DA SILVA*
O ideal da branquitude é imposto sobre as pessoas na sociedade e nas instituições brasileiras forçadamente
Antes de falar sobre o mito da democracia, é importante ter em mente, o conceito desses termos, para entender a construção dessa ideologia. O termo democracia é derivado da palavra grega “Demokratìa”, composta de Dèmos (povo) e Kràtos (poder), democracia em seu conceito, seria “poder do povo”. Esses termos, da ideia de participação popular e harmonia social e política.
Durante a contemporaneidade, a democracia se tornou ampla nas esferas sociais, como a participação sociopolítica da população de um determinado país, nas diversas esferas que afetam a coletividade, desde participação em movimentos sociais e estudantis, protestos, discussões públicas, ou seja, atividade que abrange outras questões, além da política formal. Quanto ao conceito de “mito”, que se deriva do “mythos”, significando “narrativa” ou história”, por outro lado, no senso comum, o mito é considerado uma mentira ou algo falso, é nesses dois conceitos que o “mito da democracia” se encontra.
Na sociedade se acreditou e se acredita na ideia da “democracia racial”, uma ideologia nacional que se expandiu em 1930, durante a Era Vargas[i](1930-45), em que uma forte onda de nacionalismo se intensifica, trazendo uma característica de Estado Ocidental, a “essência unificadora” (CLASTRES, 2004, p. 61), transformando o “múltiplo no Um” (CLASTRES, 2004, p. 59), em que uma ideia de “brasileiro”, como um único povo, se torna base.
Essa concepção é reforçada por intelectuais e intérpretes brasileiros, como Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala, um livro que contribui com a construção de uma possível “democracia racial” no brasil. Segundo essa ideologia, o povo brasileiro, teria se misturado tanto, que teria chegado a uma dita “democracia racial” no qual as desigualdades não se dariam a uma questão racial, trazendo enfoque que existe uma harmonia entre as etnias brasileiras, a negra, indígena e branca.
Como no Brasil não havia “apartheid”[ii] e uma “segregação racial explícita”[iii]como nos Estados Unidos, como “não tinha” essa explicita forma do racismo, acreditava-se que as pessoas não poderiam ser racistas e que o país estava livre do racismo. Porém não se precisa desses aspectos do racismo explícito, para existir o racismo em um país.
A tendência de comparar outros países com o Brasil, é um dos pontos chaves para uma ilusão de Brazil (Brasil com “z”, remete a idealização e narrativa do que é o Brasil, mas não a verdadeira realidade do país, que é cruel e perverso) internacional e nacional não racista, o racismo velado “é sofisticado e perverso, essa forma de racismo”(CARNEIRO, 2022, Youtube), é uma democracia falsa, que não existe, essa ideologia reproduz uma forma de pensar do que seria o “Brazil” com “Z”, e não o “Brasil” com “S”, o verdadeiro, o da violência, da descriminação, a do racismo. O filme Rio de Janeiro: city of splendour (1936), mostra como essa falsa democracia racial é vista internacionalmente, e reforçada nacionalmente.
“A cor de pele nem sempre determina a posição social de alguém, a linha de cor racial, na verdade, parece tão tênue que se tornou um refúgio de tolerância para todas as raças.” (JAMES A. FITZPATRICK, 1936).
Perpetuando uma ideologia que não condiz com a realidade, que é reforçada, através de uma cegueira racial. No país em que a maioria da população é negra, e esse grupo étnico estão em situações de desvantagens, como desigualdades econômicas, as moradias e condições de vidas são precárias, uma não representação de pessoas negras nas mídias, cultura e sistema de educação, maioria no sistema carcerário, e o extermínio da população negra, sendo assim, sim, a cor de pele influencia na posição social.
O “mito da democracia racial” foi difundido e se intensificado internamente e externamente, mostrando uma ideia de “Brazil”, que não é verdade. Essa concepção coloca a coletividade e individualidade negra em um lugar de permanecer estático, pois se não existe racismo, não existe um problema, e se não existe um problema, ele não precisa ser combatido e contestado culturalmente, socialmente, politicamente e psicologicamente.
A narrativa tem como premissa a ideia de que no Brasil não existe racismo, ela tem uma perspectiva distorcida sobre as relações raciais brasileira, trazendo uma “realidade” de harmonia racial entre os grupos étnicos no país, que na realidade é apenas uma narrativa, como trás o conceito e senso comum do que é um mito. Essa falsa democracia nas décadas seguintes se tornou uma parte fundamental do Estado brasileiro e da narrativa de uma branquitude e Brasil “não racista”, que é reforçada até os dias de hoje, trazendo uma profundidade da teoria, que se enraizou no imaginário popular da sociedade.
Nesse contexto, durante toda construção de um Brasil, a participação política das pessoas negras, era restrita, limitado, excludente e seletiva, pessoas negras eram excluídas desse sistema, de forma totalmente sistemática, em que a coletividade negra, eram considerados sub-humano,[iv] e por isso não eram cidadãos para participar da “democracia” no país. O mito passou a ser questionado por autores como Abdias do Nascimento, que levaram para o debate público e acadêmico, as distorções dessa premissa, colocando enfoque as situações de genocídios, preconceitos, discriminação e estereótipos raciais, em relação ao povo negro, na sociedade e Estado brasileiro.
Sobre os mecanismos
Abdias do Nascimento, no capítulo IX, menciona que as classes dominantes, que é uma elite branca, têm o controle de todos os aparelhos sociais no país, e como isso influências nossas concepções, contribuindo também para um genocídio do negro, através desses aparelhamentos sociais, em que se perpetua o racismo, e uma negação dele, como por exemplo, a ideia de uma “democracia racial” no Brasil.
Esses instrumentos são utilizados para perpetuar o racismo, e dessa discriminação destruir o negro enquanto indivíduo e coletivo construtor e portador de sua própria identidade cultural no país. Esses aparelhos criam mecanismos de dificuldades teóricos e práticos, que impedem e afetam os negros em sua construção social e psicológica dentro da sociedade, “Tanto os obstáculos teóricos quanto os práticos têm prevenidos descendentes africanos de se afirmarem como íntegros válidos, auto-identificados elementos da vida cultural e social brasileira.” (NASCIMENTO, 1978, p. 94).
Os meios de controle social e cultural brasileiro, têm como base a disseminação de ideologias falsas, como a concepção de uma democracia racial, que ao serem reproduzidas sem questionamento influencia o imaginário das massas, gerando um “racismo inconsciente”, que é perpetuado.
O “racismo inconsciente”, um tipo de “viés inconsciente”, em que se cria um preconceito automático que influencia as decisões sem que as pessoas percebam. Isso se torna tão profundo que atravessa as próprias pessoas negras, afetando-as psicologicamente, socialmente e fisicamente. Esses aspectos são perpetuados pela branquitude, que ocupa um lugar de superioridade e “vantagem estrutural em sociedades estruturadas pelo racismo” (SCHUCMAN, 2000? n.p).
A branquitude frequentemente culpa os negros, responsabilizando-os injustamente por questões econômicas, políticas, sociais e criminais. Essa culpabilidade perpetua o racismo “inconsciente”, estrutural e consciente, ignorando a desigualdade sistêmica e social, a repressão institucional, a discriminação e a exclusão social, e desvia a atenção dos problemas sociais complexos para um grupo historicamente marginalizado, o negro.
O sistema educacional
“O sistema educacional [brasileiro] é usado como aparelhamento de controle nesta estrutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro – elementar, secundário, universitário – o elenco das matérias ensinadas, como se se executasse o que havia predito a frase de Sílvio Romero, constitui um ritual da formalidade e da ostentação da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira? Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há alguma referência ao africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas para longe do chão universitário como gado leproso. […] e constitui um difícil desafio aos raros universitários afro-brasileiros” (NASCIMENTO, 1978, p. 95)
Abdias do Nascimento enfatiza que não existe uma educação antirracista nesse sistema, seja nos níveis elementar, secundário ou universitário. Nas escolas, a história africana não é ensinada, e nas universidades, não se fala de uma identidade negra, a possibilidade de se abordar a identidade negra no contexto educacional é “o mesmo que provocar todas as iras do inferno” (NASCIMENTO, 1978, p. 95). Em paralelo, apesar da crescente visibilidade da educação antirracista no século XXI, o sistema educacional brasileiro ainda é defasado e ultrapassado, sem considerar adequadamente a realidade do negro brasileiro.
Esse sistema educacional, profundamente eurocêntrico e com elementos americanizados, contribui para um grande “genocídio, efetivamente, na morte física, mas também na morte simbólica” (GARIGHAN, 2017, n.p), caracterizando um “genocídio étnico e cultural” (NASCIMENTO, 1978, p. 155), que é a destruição e apagamento sistêmica do conhecimento e identidade cultural, a morte da Weltanschauung[v] negra. O Brasil nunca reconheceu as manifestações culturais de origem africana desde a fundação da colônia, evidenciando uma falta de compromisso e negligência com toda uma etnia. Isso revela a construção de um Estado estruturalmente racista, espistemicida, etnocida e genocida, que visa apagar toda uma cultura, pois a existência dela afeta essa “unificação”.
“O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo mesmo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos situamos atualmente, constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um”. (CLASTRES, 2004, p. 60, 61.)
A estrutura brasileira não é pensada para o negro, mas sim para que ele falhe. Os negros são a maioria da população; porém, são minoria econômica e minoria no sistema educacional, principalmente no ensino superior. No contexto do século XX, as escolas públicas eram consideradas de boa qualidade, e os negros eram excluídos da participação nessas escolas.
As condições de moradia são de péssima qualidade; muitos moram em favelas (a população negra depois da abolição da escravidão no Brasil, foram morar em favelas, e com uma falta de planejamento do governo para poder realocar essa população), “[…], mas não teve medidas posteriores de cidadania para a população negra. O negro deixou a senzala para morar na favela” (SANTOS, 2008, n.p), e, sem “necessidades mínimas de higiene e conforto humano, esses locais são habitados principalmente por grupos negros.” (NASCIMENTO, 1978, p. 84). Essa estrutura, que não considera o negro brasileiro, porque vê ele como “mau, selvagem, imoral e feio”, é constituída a partir do Estado.
Negro é mau, é feio, é imoral, é selvagem
Abdias do Nascimento, no Capítulo VII, enfatiza que a associação entre “boa aparência” e “branco” se torna quase sinônima, a ponto de, na prática, serem consideradas equivalentes na lei. No dicionário Aurélio, que é uma das grandes referências em pesquisas de conceitos e semânticas de palavras utilizado no Brasil, reforça essa ideia:
“O ’Aurélio’ quanto aos termos negro e branco. Branco: ‘Diz-se do indivíduo da raça branca. Sem mácula, inocente, puro, cândido, ingênuo: alma branca’ (FERREIRA, 1986. p. 282, grifos nossos). Negro: ‘Diz-se do Indivíduo da raça negra, Sujo, encardido. Maldito, perverso. Escravo’ (op. cit.: 1187). Assim também refere-se aos derivados da palavra como por exemplo negrada, definido como ‘grupos de indivíduos dados a pândegas ou desordens’. (SOUZA, 2005, p. 106).
O “figurino”[vi] do branco é vestido por pessoas brancas, especificamente a branquitude, e o negro não precisa vestir um figurino, pois ele já existe na verossimilhança[vii] da inverossimilhança, isto é, uma verdade dentro de uma mentira, no imaginário da narrativa da branquitude, sempre se estigmatizando uma negritude. De acordo com o filósofo Frantz Fanon (1925-1961), no “inconsciente coletivo”, o negro é percebido como “mau”, “feio”, “imoral” e “selvagem”, mas o Branco, através desse figurino se torna o oposto: bom, bonito, moral e civilizado, ele pode não ser isso, mas na estrutura social não importa que ele não seja, pois no inconsciente social e ideário, o negro vai ser mau e o Branco Bom.[viii]
O ideal da branquitude é imposto sobre as pessoas na sociedade e nas instituições brasileiras forçadamente. E como isso é colocado de forma em que, principalmente pessoas alienadas, e as que também não são alienadas, de forma que elas não percebam essa manifestação do racismo inconsciente, por isso, esse “racismo”, se torna também “inconsciente”, pois ele está no “inconsciente social”.[ix]
Nesse contexto também revela a “ignorância branca”, na qual as pessoas que estão no topo dessa estrutura acreditam estar plenamente conscientes de suas ações, mas, na verdade, estão perpetuando ideais racistas que foram incutidos nelas ao longo de gerações e séculos, resultando em um racismo “consciente-inconsciente”, que consiste em reproduzir conscientemente e inconscientemente o racismo. Isto é, quando o racismo é reproduzido, as pessoas têm uma individualização desse racismo, entrando em processo de responsabilidade individual nessas relações raciais, mas como ele é “reproduzido”, e não produzido se torna também inconsciente, porque foi imposto no imaginário psicológico, cultural, social, educacional e político. Sendo assim, “inconsciente” esta depois do “consciente”, pois o inconsciente se sobressai, controlando sem você perceber.
Isso está longe de tirar a responsabilidade individual de quem está reproduzindo, mas o ponto principal ao entrar nessa questão, sobre “O genocídio do negro brasileiro”, é que o problema central reside na estrutura social e estatal da sociedade brasileira, que foi historicamente construída para “genocidar”,[x] marginalizar e desfavorecer a população negra, que não só reproduz, mas produz esse ideário da branquitude, em que o branco sempre estar na situação de bom, e o negro na situação de mau.
*Daniel Santiago B. da Silva é graduando em Gestão de Empreendimentos Econômicos Solidários no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
Referências
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Cap IX. p. 93.-95 Cap VII. pag. 82-85.
FANON, Frantz. Peles Negras, Máscaras Brancas.Bahia, Edufba. 2008. Cap 2. p. 53. Cap 5 p.121. Cap 6. p. 163 p. 144.
PEREIRA, Lucas. “Apartheid (África do Sul)”. Disponível em: Apartheid (África do Sul): entenda o que foi e como terminou – Toda Matéria (todamateria.com.br).
SANTOS, Gilney C. O que é lugar de fala. Saúde debate. RIO DE JANEIRO, V. 43, N. ESPECIAL 8, P. 360-362, DEZ 2019.
PENNA, Carla. GARCIA, Claudia A. Reflexões em torno do conceito de inconsciente Social. Revista Subjetividades, Fortaleza, 15(1): 46-56, abril., 2015.
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CAMPOS, Tiago S. Segregação racial nos Estados Unidos. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/historia-america/segregacao-racial-nos-estados-unidos.ht.
SOUSA, Francisca Maria do N. Linguagens Escolares e Produção do Preconceito. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/03. Brasília – DF, v. 1, p. 106, 2005.
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CLASTRES, Pierre. Do Etnocídio. In: Arqueologia da Violência. Pesquisas de Antropologia Política. São Paulo: Cosac e Naify, 2004 (pp. 59, 61, 186).
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Notas
[i] Período em que Getúlio Vargas (1882-1954), governou o Brasil.
[ii] Um de Regime de segregação racial institucionalizado na África do Sul entre 1948 e 1994.
[iii] “leis como Jim Crow, que trouxe a separação sistemática entre brancos e negros em transportes públicos, escolas e em aspectos da vida cotidiana, trazendo segregações sociais como os bairros pretos e brancos. Também a Redlining que sistematicamente nega empréstimos e serviços a bairros negros.”
[iv] Que é inferior ao que é considerado normal no ser humano.
[v] Visão de mundo, compreensão de mundo pelo sujeito. Na tradução Welt: Mundo, Anschauung: Concepção
[vi] Representando uma vestimenta social, em que quem veste está no ideário de forma sempre positiva, tornando-se um privilégio diante das instituições sociais.
[vii] O que parece real
[viii] Um está em minúsculo e outro em maiúsculos para reforçar essa ideia
[ix] “herança cultural, mitos e motivos desconhecidos e recalcados que pertencem a uma dada sociedade”.
[x] Neologismo criado a partir do termo “genocídio”.
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