A pequena prisão

Hela Briki, Ressonância, 2013
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Por IGOR MENDES*

Trecho, selecionado pelo autor, do Posfácio à nova edição do livro recém-lançado

O que é a reativação do fascismo? como combatê-la?

O discurso de “lei e ordem”, comumente associado a um elemento religioso e moral, tem sido um dos catalisadores da emergência de um fenômeno mundial: a reativação do fascismo, acontecimento mais relevante entre a primeira edição de “A pequena prisão”, de 2017, e esta, de 2024, incluídas a pandemia de Covid-19 e o desgoverno de Jair Bolsonaro. Este fascismo bebe na fonte daquilo que o célebre jurista argentino, Raul Zaffaroni, chamou de “direito penal do inimigo”. Na Europa e nos Estados Unidos, o “inimigo” é o imigrante, representado como terrorista; na América Latina, o pobre nativo, representado como traficante.

Além dos muros muito reais de concreto armado, erguem-se muros intransponíveis de segregação social e cultural, incubados no fim do último século e princípio deste pela autoproclamada “maior democracia ocidental”, com suas infames “guerra às drogas” e “guerra ao terror”, usadas como pretexto não apenas para a violação do direito internacional, mas também para a hipervigilância e ódio contra os considerados dissidentes e/ou indesejáveis (aliás, após o genocídio televisionado em Gaza, perpetrado pelas hordas de Benjamin Netanyahu, haverá ainda algo que se possa chamar de direito internacional?).

Claro que, como um radial, esta guerra civil contra os pobres se espraiou pelas periferias e foi reinterpretada por inúmeros chefetes políticos locais, que vão desde pastores fundamentalistas a “anarco-capitalistas”, que têm em comum o fato de representarem o que há de pior no enxurro da vida política nacional dos seus respectivos países.  A economia política deste “salto para trás” foi constituída por níveis cataclísmicos de desemprego, desalento e precarização inaudita das relações de trabalho, assim como a destruição dos sindicatos e do mínimo de organização operária, empurrando milhões e milhões de pessoas para o selvagem “cada um por si” da economia dita informal – nem me refiro à marginal, única que apresenta constante dinamismo nos guetos e favelas das antigas áreas industriais.

Entre o discurso liberal moderado, que defende a democracia burguesa em abstrato, mas dilapida ou consente que se dilapidem os direitos (sobretudo os econômico-sociais) concretos, perante o qual capitularam 90% das forças que se declaram de esquerda, de um lado, e o messianismo cínico dos pescadores de águas turvas, que dizem que se houver menos proteção e mais competição os melhores se sobressairão “naturalmente”, de outro – é sedutor considerar-se pertencer à vaga categoria dos “melhores”, ainda mais, se isto estiver associado a uma larga trajetória de frustrações e ressentimentos  –, não apenas setores médios desesperados em cair em meio à “massa”, mas mesmo vastas camadas de trabalhadores pobres têm aderido à pregação destes últimos.

E isso não apesar, mas pelo fato mesmo de que têm sido as maiores vítimas da ordem estabelecida: os ricos, protegidos em suas bolhas inexpugnáveis, são praticamente imunes aos assaltos e à criminalidade ordinária, que atingem, sobretudo, os pobres; isso também vale para as consequências do vício implacável das drogas, que resulta numa lista interminável de tragédias familiares na base de nossa pirâmide social.

Uma vez que os serviços públicos são pessimamente ofertados, há uma lógica interna no raciocínio: “bem, já que não me dão, ao menos que não me cobrem impostos”; ou, “se eu não tenho carteira assinada nem estabilidade, e ralo como um burro de carga para botar comida em casa, então que seja igual para todo mundo”. É um igualitarismo invertido, “se me foi negado, que se negue a todos”, cuja filosofia subjacente é um misto de darwinismo social com niilismo.

A respeito da popularidade que a ideia de “livre competição” tinha entre os trabalhadores pauperizados no século XIX, Raymond Williams assinala que: “Contudo, temos a sobrevivência dos mais aptos, a luta pela existência – ninguém teve de inventar estas descrições como descrições da sociedade do século XIX, uma vez que elas eram a experiência diária da maioria das pessoas. Milhões de pessoas desse país saíam cada dia sabendo que deveriam ser mais fortes e mais astutos que seus colegas se quisessem sobreviver ou levar algo para sua família. A ideia é, de certa forma, tão popular entre as vítimas desse processo competitivo quanto entre seus promotores, por corresponder muito diretamente à sua experiência de vida diária. Independentemente da possibilidade de alguém conceber uma ordem social melhor, a ideia parece se adequar à experiência da vida tal como ela é habitualmente vivida.”.[i]

A atualidade desta citação prova, dentre outras coisas, o retorno da vida a uma situação de desproteção social decimonônica. Neste contexto, uma esquerda prisioneira de “respeitabilidade burguesa”, cuja base social são os (ainda) contemplados pelas leis trabalhistas e algumas garantias fundamentais, não consegue se comunicar com estes que todos os dias se expõem ao tudo ou nada das ruas. Não é um problema técnico: são sociabilidades radicalmente distintas.

Para estes milhões de expropriados (material e espiritualmente) da ordem capitalista, o fim do mundo parece mais exequível e próximo do que a transformação para melhor deste mundo. Não por acaso, possamos talvez considerar a distopia como a melhor tradução do espírito do tempo, tema abordado à exaustão em filmes, séries e livros. Extinta a expectativa de futuro, que se arranque tudo, a qualquer custo, do presente. Nesse mar de náufragos, quando desapareceu a boia da consciência coletiva que nascia do trabalho concentrado, a única instituição estável que sobrou, da qual ainda se espera alguma solidariedade, foi a família celular, que deve ser salvaguardada contra a “degeneração cosmopolita”.

Combater a representação religiosa destas populações ao invés de combater o mundo sem coração que as desumaniza, como diria Karl Marx, seria um erro crasso e uma batalha perdida, além de um estúpido elitismo travestido de “progressismo”.[ii] Poucas coisas podem ser mais incoerentes, ou odiosas, do que pretensos “democratas” que defendem a ferro e fogo “ajustes fiscais” contra os trabalhadores: é como se defendessem a pena de morte, enquanto injuriam os carrascos… Por isso, o dito neoliberalismo econômico alimenta, protege e é inseparável do fascismo político, como a aliança Pinochet e Friedman exemplifica.

Que se evite chamar o fenômeno pelo nome, isto é, de fascismo, não me parece o mais apropriado: em essência, é a mesma contrarrevolução preventiva, o mesmo feroz acerto de contas contra os “excedentes” e resistentes, o mesmo discurso militarista e, logo, a prática do emparedamento e extermínio. Que este fascismo reativado não seja igual no Brasil, nos Estados Unidos ou no Leste Europeu, não desautoriza a chamá-lo assim, porque tampouco os fascismos clássicos (alemão, italiano e japonês) eram idênticos entre si.

Na verdade, um traço permanente de indefinição, a tentativa de se apresentar como uma alternativa acima ou além das contradições sociais – o que inclui eventuais discursos contra o “establishment” ou o difuso “sistema” – sempre foi uma das condições para que uma ideologia ligada aos setores mais rapaces da oligarquia financeira pudesse angariar uma ampla e heterogênea base de massas.

É o que diz Johann Chapoutot, em seu excelente livro intitulado A revolução cultural nazista: “Dado seu caráter de miscelânea, dotada de forte coerência graças ao postulado da raça, a ‘visão de mundo’ nazista podia ser apropriada de diferentes maneiras pelos indivíduos mais diversos. A agregação de múltiplos elementos fazia com que sempre houvesse uma razão, uma ideia, um argumento para ser ou se tornar nazista: nacionalismo, racismo, antissemitismo, expansionismo a Leste, anticristianismo… Presentes todos esses fatores, qualquer um se sentia autorizado a aderir ao discurso nazista por pelo menos um dos motivos”.[iii]

É o que vemos: há de tudo um pouco no fascismo do século XXI, desde fundamentalismo religioso até terraplanismo e sociedades de pessoas que acreditam em experiências paranormais –quem não se lembra das manifestações golpistas ocorridas no Brasil entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, em que houve quem acendesse celulares para que alienígenas pudessem tomar conhecimento e se compadecer da triste situação dos autointulados “patriotas”? Não por acaso, o mais importante ideólogo brasileiro deste campo é um astrólogo com passado em seitas ocultistas, transformado em paladino da cristandade.

A “coerência interna” não se obtém por uma identidade própria definida, mas pela radical diferenciação, obtida pela desumanização, do que se considera “o outro”. Ademais, para que possa atrair os descontentes, é mister emprestar a este reacionarismo desvairado um aspecto transgressor. Se, no passado, o fascismo clássico lançou mão de uma agitação anticapitalista para mobilizar os trabalhadores profundamente atingidos pelas consequências da Guerra Mundial e da crise de 1929, no presente esse aspecto transgressor é menos econômico (no econômico, via de regra, essas forças cerram fileiras com o ultraliberalismo de Chicago, embora na Europa Ocidental haja manifestações em defesa do Estado de bem-estar social para os considerados nativos) e mais comportamental e linguístico, entendido como “o direito de falar o que se pensa sem ter que ser politicamente correto”.

Uma aparente incoerência discursiva, que recorre declaradamente à mentira se necessário, que fala uma coisa e o seu contrário na mesma frase, que despreza o que vulgarmente se chama de “cultura” (em geral, quando enunciada desta forma, a cultura erudita) não é fragilidade, mas a força deste movimento, porque tal ocasionismo pode ser atraente em algum momento para qualquer um e é quase impossível de ser derrotado pelo debate. Afinal, quantos argumentos se podem reunir contra o irracionalismo?

Uma coisa, contudo, é incontornável: fascista ainda é sinônimo de pária. Cunhar isto custou muito caro nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, de modo que seria uma injustificável concessão deixá-lo de usar contra seus continuadores, obrigando-os assim a se revelarem em praça pública.

É claro que seria um erro banalizar a expressão e a luta contra o fascismo, ainda mais, se ela for usada como pretexto para suspender a mobilização pelos direitos dos trabalhadores – é sempre este o sentido que busca imprimir a burguesia liberal e seus irmãos siameses social-democratas –, mas quando se constata que no Brasil chegaram-se a organizar atos preparatórios para um golpe de Estado, no final de 2022, ancorados numa nada desprezível capacidade de mobilização, deve-se pensar que este seria um problema de menor gravidade frente a se subestimar a quadra que atravessamos e as suas possíveis consequências, porque a subestimação é uma outra forma de se capitular à malfadada política de apaziguamento.

Estas forças retrógradas não poderiam vencer no longo prazo; mas, uma vez instaladas no poder (não me refiro ao governo somente), também não poderiam ser deslocadas rapidamente, mormente porque sua ascensão em vários dos principais centros políticos mundiais indica e prepara o terreno para uma nova rodada de guerras imperialistas.

É preciso obstar seu caminho e responder às suas provocações, medida por medida, sempre que se levantem. Escrever livros e manifestos é necessário, sem dúvida, mas é ainda mais necessário levantar lutas sociais efetivas e defender um programa econômico contraposto aos ditames do Consenso de Washington, sobre cujas ruínas prolifera esta nossa bela contemporaneidade. Através da luta por interesses concretos, como salário digno, moradia, serviços públicos, direitos civis etc, e só através da luta, pode-se separar o núcleo duro deste fascismo contemporâneo, os agentes políticos que atuam com conhecimento de causa, financiados por poderosíssimos lobbies internacionais (como o da indústria de armas), dos milhões de pobres descontentes que eles buscam arregimentar, em última instância, contra seus próprios interesses. Este é o calcanhar de Aquiles da besta, hoje como ontem. Se “fascista” é sinônimo de pária, “antifascismo” conserva um forte apelo mobilizador.

Agora, que não se confunda isto com a defesa, da minha parte, de um estreito economicismo. É necessário, também, fazer a luta política e ideológica pública, e disputar tanto o passado quanto o futuro, que as forças da reação buscam mitificar. O pragmatismo estreito, que só vê a necessidade de fazer concessões e adiar os grandes embates, tem nos levado, de passo em passo, para a borda do precipício, porque a defesa de um estado de desolação é algo pouquíssimo comovente.

É preciso recuperar um sentido de esperança histórica, que nada tem a ver com um ingênuo determinismo, porque a história não é um ente com vontade própria, mas com a consciência de que são as mulheres e homens tais como existem hoje que escrevem o seu destino – a economia e a política do tempo são apenas o pano de fundo, o palco onde as nossas ações se desenrolam. A despossessão e a miséria também têm, no seio de toda sua negatividade, uma potência transformadora latente: é urgente mobilizá-la.

Os intelectuais de modo geral, e os artistas em particular, têm muito a contribuir neste sentido, porque a criação estética tem o poderoso condão de reunir o que na vida ainda está quebradiço, antecipando no presente o que ainda não deveio como efetividade. Do mesmo modo, é necessário fomentar e estender novas modalidades de inventividade política, nascidas do chão das lutas, não para renunciar, mas para realizar com êxito em nosso tempo o assalto aos céus, a redenção dos condenados da terra.

Em suma, quem queira entender, e transformar, a bárbara realidade das prisões precisa em primeiro lugar entender e transformar a sociedade que se parece, ela própria, cada vez mais, a uma imensa prisão. Esta convicção, que está no cerne deste livro, permanece inalterada da minha parte.

*Igor Mendes é escritor e professor. Autor, entre outros livros, de Junho febril (n-1 edições).

Referência


Igor Mendes. A pequena prisão. São Paulo, n-1 edições, 2024. [https://amzn.to/4i9k1As]

Notas


[i] Raymond Williams, Cultura e materialismo. São Paulo, Unesp, p. 122-123.

[ii] Quem queira ter uma ideia clara do que digo, que vá à porta de um presídio em dia de visitas: afora a polícia, a única instituição presente são as igrejas evangélicas, que fazem as vezes, a um só tempo, de consultório médico, agência de empregos e assistência jurídica.

[iii] Johann Chapoutot, A revolução cultural nazista, ed. Da Vinci, pág. 19.


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