Por RAQUEL MEISTER KO FREITAG*
O projeto ‘Competências básicas do português’ foi a primeira pesquisa linguística no Brasil a fazer uso do computador no processamento de dados linguísticos
1.
O ano de 1977 legou ao mundo dois marcos que, à sua maneira, revolucionaram seus campos e seguem vivos quase cinco décadas depois. Em maio, estreava nos cinemas Star Wars: episódio IV – Uma nova esperança, dirigido por George Lucas. Apesar de ser o primeiro filme da franquia, carregava em seu título o indicativo de que era o quarto episódio da saga, uma escolha ousada que apenas décadas depois faria sentido, quando a tecnologia permitiu a criação dos episódios anteriores.
Corta para o Brasil, neste ano foi publicado Competências básicas do português, o relatório de uma pesquisa coordenada por Mirian Lemle e Antony Julius Naro, com apoio da Fundação Ford, que se tornaria um dos pilares da sociolinguística brasileira.
Star Wars e Competências básicas do português, à primeira vista tão distintos, compartilham mais do que a coincidência cronológica. Ambos lançaram seus “episódios iniciais” no meio de uma narrativa maior, marcaram suas áreas por inovações tecnológicas e metodológicas, e deram origem a expansões, spin-offs e continuações que seguem influenciando gerações.
O projeto Competências básicas do português foi a primeira pesquisa linguística no Brasil a fazer uso do computador no processamento de dados linguísticos. Sua proposta era ambiciosa: entender as causas do analfabetismo funcional, a partir de uma análise empírica dos usos reais da língua.
A coleta de dados envolveu uma minuciosa etnografia de cada participante, que eram pessoas do Mobral que foram entrevistadas para constituir a amostra linguística a ser descrita, adicionando mais detalhes à estratificação social. O tratamento estatístico dos dados foi rigorosamente detalhado, evidenciando a preocupação com a reprodutibilidade.
Se Star Wars continuou a saga, e ainda gerou séries derivadas como The Mandalorian (Grogu fofinho!), o projeto Competências básicas do português também gerou desdobramentos, como o Censo da variação linguística, o PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua), e o VARSUL, voltado à diversidade linguística da Região Sul do Brasil.
Star Wars não começou pelo episódio I por limitações técnicas. De modo semelhante, o projeto Competências básicas do português foi visionário ao teorizar o processamento da variação linguística, com a ideia de saliência fônica, que explica como a proeminência sonora de certos elementos linguísticos favorece sua manutenção, e a proposta de uma medida de complexidade estrutural, que antecipa abordagens atuais de que omissões não devem ser vistas como “erros”, mas limitações de processamento.
2.
Nos anos 1970, testar essas hipóteses empiricamente enfrentava limitações. Hoje, com a democratização de tecnologias como rastreamento ocular, eletroencefalografia (EEG) e análise de tempos de leitura, podemos colocar à prova as previsões feitas em Competências básicas do português.
Mais do que um diagnóstico sobre o insucesso do Mobral, o projeto antecipou questões hoje centrais na agenda da pesquisa sociolinguística: os custos de processamento da variação linguística e sua articulação com a psicolinguística.
Com o uso de tecnologias como rastreamento ocular e EEG, estamos agora em condições de testar hipóteses levantadas há cinco décadas, avaliando, por exemplo, o impacto da ausência de marcas de plural no tempo de leitura e na carga cognitiva. A investigação dos custos cognitivos da variação linguística abre novas fronteiras no diálogo entre sociolinguística e ciências cognitivas e além.
Assim como a saga de George Lucas continua a inspirar novas histórias, o projeto de Mirian Lemle e Anthony continua sendo um marco metodológico, teórico e político na linguística brasileira.
Inovador, interdisciplinar e com visão de futuro, Competências básicas do português iniciou uma jornada numa galáxia muito distante no Brasil que continua indo ao infinito e além![1]
*Raquel Meister Ko Freitag é professora titular do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Referências
Almeida, W. C. (2023). Não chame de erro o que a linguística chama variação: processamento de variação linguística e de agramaticalidade no âmbito da concordância verbal variável. Revista de Estudos da Linguagem, 31(2), 510-550.
Chaves, R. G. (2014). Princípio de saliência fônica: isso não soa bem. Letrônica, 7(2), 522-550.
Freitag, R. M. K. (2016). Sociolinguística no/do Brasil. Cadernos de Estudos Linguísticos, 58(3), 445-460.
Freitag, R. M. K. (2018). Saliência estrutural, distribucional e sociocognitiva. Acta Scientiarum. Language and culture, 40(2) e41173.
Freitag, R. Variação linguística: diversidade e cotidiano. São Paulo: Contexto, 2025.
Nota
[1] Contei essa história no 4º Seminário 2025 do PEUL, realizado nos dias 3 e 4 de junho na Faculdade de Letras da UFRJ, com o tema “Contribuições da Sociolinguística no século XXI – teoria, interfaces e aplicações”. O título comportado da comunicação oral era “Competências Básicas do Português, 50 anos”, e no resumo eu me propus a destacar a relevância histórica, metodológica e teórica desse projeto pioneiro da sociolinguística variacionista no Brasil.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA





















